terça-feira, 22 de janeiro de 2019

SOBRE A SAÚDE E O FLUXO NATURAL DA VIDA

As condições favoráveis para se manter uma vida saudável parecem estar diretamente subordinadas à qualidade do funcionamento mental. Essa hipótese está baseada no fato de que a saúde mental é a base de todas as outras esferas da vida. Desde a dimensão material na saúde física, onde um sujeito fragilizado ou mesmo imaturo emocionalmente pode atentar contra si mesmo, consciente ou inconscientemente, até no âmbito mais expansivo como na espiritualidade, onde o sujeito mentalmente incapaz pode voltar elementos dessa ordem contra si próprio. “Na verdade, um ser humano imaturo emocionalmente, fica comprometido em qualquer que seja sua capacidade.”. (Martino, 2013). Assim sendo, enquanto integrado emocionalmente, passa a ser possível ao sujeito conseguir dar manutenção à todas as áreas de sua vida, criando a possibilidade de bem-estar e ainda propiciando a viabilidade da expansão no desenvolvimento do ser. 
A saúde mental, por sua vez, depende do desenvolvimento da capacidade de respeitar o fluxo natural da vida. Para tanto é necessário abrir mão de uma série de resistências que além de causar desgaste desnecessário de energia, ainda obstrui e dificulta o desenvolvimento na expansão da consciência. Um exercício de desapego às expectativas geradoras de ansiedade. O cultivo de expectativas gera inquietação que só faz por perturbar a paz interior, que é condição indispensável para a expansão da capacidade de reconhecimento da realidade. “A expansão da capacidade mental, no movimento de transcendência para além do si mesmo, por sua vez, parece ter íntima relação com o desenvolvimento da capacidade de tolerar desconfortos.”. (Martino, 2015). Sem que se possa desenvolver recursos para tolerar os desconfortos inerentes ao reconhecimento da realidade, aquilo que se vê é tão somente o que se deseja que seja e nunca o que realmente pode ser. 
Estamos tratando do desejo que cega para a tomada de consciência da realidade. Inevitavelmente as expectativas irão surgir. “Do ponto de vista psicanalítico, poderíamos empregar, como modelo, a teoria de que o bebe tem uma disposição inata que corresponde à expectativa de um seio.”. Assim como nos orienta Wilfred Ruprecht Bion (1897 — 1979), em seu ensaio UMA TEORIA SOBRE O PENSAR, publicado originalmente no Jornal Internacional de Psicanálise de 1962, e que pode ser encontrado na publicação dos ESTUDOS PSICANALÍTICOS REVISADOS de 1967. De tal modo, as expectativas surgirão por si só e invariavelmente, daí por diante a experiência dependerá da capacidade do sujeito em tolerar frustrações, para que possam ser renunciadas em nome do respeito que se deve ao tempo que cada processo leva para ocorrer. 


“Uma pessoa que não se perturba com o incessante fluxo de desejos - que entram como rios no oceano, o qual está sempre sendo cheio, mas permanece sempre estável - é a única que pode alcançar a paz, e não o homem que luta para satisfazer tais desejos.”. (Texto 70, no Resumo do Conteúdo do Bhagavad-Gita).


Essa é uma questão ligada à maturidade emocional na medida em que um bebê é intolerante a percepção da realidade como ela é. Para o bebê, em sua primeira infância, a mãe é uma extensão de seu desejo e levará um bom tempo de dedicação desta, para que ele possa reconhecer a realidade de que ela é outro ser, com suas próprias vontades. A saber, quando existe severa privação desse tipo de dedicação, o sujeito pode se tornar um adulto que guarda esse tipo de característica narcisista, onde imagina que as pessoas existem para satisfazer seus desejos. A formação da personalidade egoísta parece estar diretamente relacionada à ausência de dedicação ao bebê, que é naturalmente narcisista e necessita viver essa fase de maneira efetiva. Impossibilitado de passar por essa etapa do desenvolvimento, essa fase nunca passará. 
No entanto, ainda que seja esse um fator subordinado a maturidade emocional, também pode estar ligada a um estado de grande fragilidade, ou até mesmo de patologia no funcionamento mental. Isso pode fazer com que o sujeito se ligue demasiadamente à realidade material, ou ainda se relacione às pessoas como normalmente se relaciona com as coisas inanimadas. Um estado de coisas que lamentavelmente parece caracterizar nossa época contemporânea. O sujeito contemporâneo parece priorizar o “possuir” em detrimento do “estar sendo”. Talvez, pelo fato de que a presenças das funções maternas e paternas têm sido cada dia menos comum. 
Ainda assim, cada experiência tem seu tempo para acontecer e isso não está subordinado ao desejo daquele que anseia. Cada processo tem seu prazo de suceder. As exigências dentro desta esfera de experiências se configuram num absurdo. Uma ordem de ilusões dentre outras que o ser humano faz tanto para conservar e alimentar. As transformações, tanto no eu quanto no outro, não acontecem conforme o desejo de quem quer que seja. Na melhor das situações o que se pode fazer é preparar um ambiente acolhedor o suficiente para que seja possível receber as transformações que ocorrerão ao seu tempo e da forma que vier. 
Na pratica da clínica psicoterapêutica a expectativa de resolução de problemas, ou ainda o desejo do psicoterapeuta por atingir supostos resultados, são sempre danosos ao processo. “Na realidade, até a ânsia desmedida do paciente por melhoras pode impedi-lo de perceber já ter melhorado bastante, ainda que não dentro de suas expectativas.”. (Martino, 2018). Essa ordem de processos deve ocorrer independente de supostos resultados, ou ainda de pretensões do que se imagina ser chamado de melhora. Deve acontecer naturalmente, “independente de avaliações, seguindo seu curso natural, que deve variar enormemente de paciente para paciente.”. (Martino, 2018). Com isso, o fluxo da tomada de consciência irá ocorrer naturalmente a partir da dissolução das ilusões obstrutoras.
Ora, ainda que o sujeito contemporâneo pareça estar freqüentemente tentando mudar a realidade para se manter inalterado nas transformações do eu, a realidade como ela é, esta configurada desta forma para que possamos aprender com ela. Como humildes contempladores tentando intervir o menos possível pelo desejo nocivo do humano.“A disposição para a expansão da consciência mostra-se subordinada à capacidade de tolerar frustrações, sendo a dificuldade ou mesmo a incapacidade desta mesma ordem o principal impedimento, que dificulta as possibilidades dessa expansão mental.”. (Martino, 2015).
Conservamos a ilusão que somos seres superiores dentro da natureza, porém, isso não passa de uma fantasia narcisista que só faz nos afastarmos da própria natureza. Uma vida saudável é quando estamos sendo parte da natureza.


"Para tudo há uma ocasião, e um tempo para cada propósito debaixo do céu: tempo de nascer e tempo de morrer, tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou, tempo de matar e tempo de curar, tempo de derrubar e tempo de construir, tempo de chorar e tempo de rir, tempo de prantear e tempo de dançar, tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las, tempo de abraçar e tempo de se conter, tempo de procurar e tempo de desistir, tempo de guardar e tempo de lançar fora, tempo de rasgar e tempo de costurar, tempo de calar e tempo de falar, tempo de amar e tempo de odiar, tempo de lutar e tempo de viver em paz." Eclesiastes 3.1-8








BÍBLIA - A Bíblia sagrada. Tradução na Linguagem de Hoje. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil,1988.
BION, W. R. (1962) APRENDENDO COM A EXPERIÊNCIA. Rio de Janeiro: Imago,1962.
In: ESTUDOS PSICANALÍTICOS REVISADOS. Rio de Janeiro: Imago 1994.
MARTINO, Renato Dias. O AMOR E A EXPANSÃO DO PENSAR: das perspectivas dos vínculos no desenvolvimento da capacidade reflexiva – 1ª ed. São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2013.
______ O LIVRO DO DESAPEGO – 1ª ed. São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2015.
______ ACOLHIDA EM PSICOTERAPIA  – 1ª ed. São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2018.
PRABHUPADA, A. C. BhaktivedantaSwami. O BHAGAVAD-GITA – COMO ELE É. The Bhaktivedanta Book Trust. 1976.



Prof. Renato Dias Martino
Psicoterapeuta e Escritor

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

DESDÉM: o filho da inveja

A ampliação da inteligência acontece para suprir uma série de funções na experiência do desenvolvimento da vida. A combinação do impulso natural de querer conhecer com os desafios do mundo promovem a aumento da inteligência. Nas crianças isso ocorre de maneira muito intensa. A inteligência vai se estruturando para dar conta do que aguça a criança em suas demandas.
Entanto, muitas vezes a inteligência desenvolvida pode se concentrar na função de observar imperfeições, reparar equívocos, revelar falhas e então angariar justificativas para criticar as realizações do outro. É quando um sujeito com grande habilidade intelectual faz uso desse recurso para atacar e desdenhar a realização alheia.
Isso confirma a tese de que a inteligência não garante o funcionamento saudável da mente e ainda, revela-se nesse contexto um sujeito incapaz de lidar com suas próprias frustrações, assim como suas limitações. Trata-se de alguém emocionalmente imaturo, que padece de um mal, e, portanto carece de cuidado.  
O sujeito que se coloca a desdenhar do outro denuncia com isso, sua própria inveja. Inveja que é,  antes de tudo, um sinal de desrespeito à própria capacidade de realização. O invejoso é um desrespeitoso de si mesmo. Duvidando de si mesmo, tende a menosprezar o outro.
O invejoso desdenha do outro na tentativa de apaziguar o desconforto gerado por se sentir inferior. O sujeito que funciona assim o faz por talvez nunca ter sido reconhecido em suas realizações, no andamento das fases fundamentais no desenvolvimento da infância. Por conta disso, agora se tornou um crítico obstinado, que insiste em julgar, recriminar e achar defeito em tudo e em todos. 
Incapaz de acreditar que possa conseguir o que deseja e, por outro lado, sendo muito pouco capaz de renunciar aquilo que realmente não é possível (enquanto o outro consegue), o que resta ao invejoso é, ou se apossar indevidamente disso, ou então desvalorizar o objeto de desejo. Quando definitivamente reconhece ser inviável se apossar do objeto desejado, isso passa a ser percebido como ruim, desinteressante, sem valor, pois é visto com maus olhos. “A inveja, por sua vez, pode conduzir a percepção de maneira alterada quando vê essa mesma realidade com maus olhos, olhos invejosos.”. (Martino, em O LIVRO DO DESAPEGO, 2015). 
Só o prejuízo do outro é motivo de alegria do sujeito invejoso. Para o invejoso, o mal-estar do outro causa seu bem-estar. Assim como escreve Melanie Klein (1882-1960) em sua obra INVEJA E GRATIDÃO: "O invejoso passa mal à vista da fruição. Sente-se à vontade apenas com o infortúnio dos outros." (Klein, 1957).
O filosofo Baruch de Espinoza (1632 — 1677) descreve a inveja como sendo “o ódio que afeta o homem de tal modo que ele se entristece com a felicidade de outrem e, ao contrário, se alegra com o mal de outrem.”. De tal modo, nada pode trazer satisfação ao invejoso que não seja o mal do outro. Isso, pois, por mais que imagine poder se apossar do objeto de desejo, aquilo que realmente deseja é ser o que outro é e não ter o que o outro tem.

“O sonho do invejoso é ocupar o lugar do outro, logo, o ambiente de rivalidade deve culminar na exclusão, ou do eu, ou do outro.” (Martino, em PARA ALÉM DA CLÍNICA, 2011).

O grande problema é que, quanto maior a estruturação do recurso defensivo de desvalorizar a realização do outro, a possibilidade de desenvolver a capacidade de realização do sujeito fica cada vez mais difícil. Instala-se o que coloquialmente chamamos de “zona de conforto”, onde se nivela a configuração num nível abaixo do que o sujeito julga ser capaz. Nada pode se destacar além daquilo que o invejoso é capaz. Do contrário, será intensamente atacado até que perca seu valor. Pelo menos na fantasia do invejoso. 
Na realidade, tratamentos aqui de um modelo de personalidade que normalmente é desenvolvida num ambiente empobrecido de tolerância, privado de reconhecimento e ausente de afeto sincero. O invejoso normalmente é alguém que viveu as fases fundamentais de seu desenvolvimento num ambientes em que a disputa sobrepõe o companheirismo e a autoconfiança é muito pouco, ou quase nada ampliada. Dessa forma, qualquer mínima manifestação de crescimento, ou evolução, deve ser alvo de ataques.

Na atmosfera onde impera a inveja, não há espaço para qualquer que seja a mostra de gratidão. Isso, pois gratidão pode ser confundida com inferioridade, já que revela reconhecimento da capacidade do outro. Contudo, para que se dissolva a predominância da inveja no funcionamento mental é necessário que se desenvolva a capacidade de reconhecimento na dimensão da gratidão. E, para que isso seja possível é indispensável à autoestima bem estruturada, onde o sujeito possa contar minimamente com certo nível de autoconfiança. 

KLEIN, M. (1957). INVEJA E GRATIDÃO. In: Obras Completas. Buenos Aires: Paidós-Hormé, 1974. tomo VI.
SPINOZA, B. (1999). ÉTICA. Trad. de Bernard Pautrat. Paris: Seuil. (Ed. bilíngue).
MARTINO, R. D. MARTINO, Renato Dias. PARA ALÉM DA CLÍNICA.1ª ed. São José do Rio Preto, São Paulo: Editora Inteligência 3, 2011.
______________.O LIVRO DO DESAPEGO - 1. ed. São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2015.





Prof. Renato Dias Martino
Psicoterapeuta e Escritor
Alameda Franca n° 80, Jardim Rosena,
São José Do Rio Preto – SP
Fone: 17 991910375
prof.renatodiasmartino@gmail.com
http://pensar-seasi-mesmo.blogspot.com