terça-feira, 24 de março de 2020

SOBRE A FALHA NA FUNÇÃO PATERNA


Para quem tem o mínimo de conhecimento sobre as formulações psicanalíticas é muito clara a série de possíveis danos na estruturação da personalidade daquele que não pode contar com a presença da função paterna nas etapas fundamentais do desenvolvimento. Já tive oportunidade em outra ocasião para levantar algumas das possíveis consequências dessa ausência e aqui tentarei trazer à baila outros possíveis desdobramentos desta triste experiência de privação.
No entanto, não é necessária muita pesquisa e muito menos é preciso ser um estudioso da psicanálise para ter acesso à realidade dos fatos. Para tanto, mais importante que ter acesso a estudos sobre o tema, ou ainda, mais importante do que contar com bom nível de desenvolvimento intelectual, é fundamental o desenvolvimento da maturidade emocional, na capacidade de estabelecer um acordo com a realidade. Esse possível acordo permite reconhecer a essência das condições mínimas necessárias para que uma criança possa se desenvolver emocionalmente de forma saudável. Para isso é necessária a elaboração das partes da mente que estejam fixadas e por conta disso, tendendo a manter uma forma saturada de funcionar. Essa experiência promove uma expansão mental. A expansão da mente possibilita gradativamente a dissolução de certos conceitos que se encontravam impregnados de certezas, como algo inquestionável, que devem se manter através da arrogância. Com isso é possível promover a integração da mente, onde a realidade (desconfortável) é desvelada carecendo de responsabilização.
Muitas vezes, o sujeito que não teve a presença da função paterna pode criar aversão a essa figura, tendendo a acreditar que não é necessária. Isso ocorre principalmente se ele conseguiu seguir sua vida, ainda que não reconheça os prejuízos ocorridos por conta da ausência do cumprimento dessa função fundamental. Dessa maneira, amiúde corroborado por movimentos sociais que apoiam a inutilidade da figura masculina na família e na estruturação da personalidade, corre-se o risco da normatização do prejuízo por aqueles que conseguiram sobreviver mesmo privados da função paterna.
Bem, quando dissolvidos os preconceitos e livre de falsos conceitos em relação a essa função básica, então é possível perceber com clareza os prejuízos na vida daquele que não teve a função paterna cumprida suficientemente. O sujeito que tenha sido submetido a privação da presença paterna tenderá buscar esse suprimento, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, pelo resto da vida. Donald Woods Winnicott (1896 — 1971) explana de maneira muito interessante, em seu trabalho PRIVAÇÃO E DELINQUÊNCIA, o tema da busca pelo suprimento daquilo que faltou.
“Quando uma criança rouba fora de casa, ainda está procurando a mãe, mas procura-a com maior sentimento de frustração, necessitando cada vez mais encontrar, ao mesmo tempo, a autoridade paterna que pode pôr e porá limite ao efeito concreto de seu comportamento impulsivo e à atuação das ideias que lhe ocorrem quando está excitada.”. (Winnicott, 1946)
No entanto, a função paterna não é o pai. A função paterna não precisa necessariamente ser desempenhada pelo pai biológico e por outro lado, não é por que o sujeito ocupa essa posição consanguínea, que lhe garante a capacidade de cumprir essa função, da qual demanda certa maturidade emocional o suficiente para tanto.
Ainda assim, essa função não pode ser cumprida pelo tio, pelo avô ou por qualquer que seja o homem que esteja vinculado por um laço parental, já que a função paterna deve trazer a possibilidade de sinalizar o limite edípico, inerente à sexualidade humana. Em outras palavras, a função paterna tem o papel de libertar a criança do vínculo incestuoso.  A criança percebe que existe uma integração entre mãe e pai, onde não exista brechas que a permitam invadir. Com isso ela vai se percebendo inadequada na intimidade do casal e gradualmente vai se libertando, para assim, viver sua própria autonomia. Grande parte dos transtornos mentais está ligada à relação fusionada com a mãe, que não pode ser dissolvida por conta da ausência da função paterna.
Além disso, é um fato constatável em uma breve pesquisa nas estatísticas que, a ausência da função paterna está implicada na vida das crianças de rua, ou das que fogem de casa, assim como no alto índice de suicídios de jovens. Dificilmente casos de estupradores, envolvimento com drogas e abuso de álcool, não têm histórico de falha no cumprimento da função paterna. Da mesma maneira o contingente das prisões tem como marca peculiar, a ausência dessa função na história de vida. Nas mulheres, a ausência do cumprimento bem-sucedido da função paterna, afeta como deficiência do estabelecimento de modelos, onde deve comprometer diretamente a capacidade de avaliar homens em que venham a se envolver afetivamente.
Por conta disso, a maior parte das mães solteiras, ou na gravidez fora do casamento, e em consequência disso maior incidência de abortos, estão ligadas à ausência da função paterna. Até mesmo na maior incidência de estudantes que desistem do Ensino Médio, antes de concluir. Todas essas desventuras têm maior incidência em famílias onde a função paterna, ou está ausente, ou não foi cumprida suficientemente.
Importante deixar claro que a função paterna não se restringe à presença física de um sujeito masculino, nem mesmo está restrita na ação de prover recursos materiais, por mais que sejam esses também, fatores dessa função. Para além disso, essa função abrange muito mais.
A função paterna deve servir a proteger e prover o exercício da maternagem, num momento onde àquela que exerce a função materna não pode se preocupar com nada, pois está ocupada dos cuidados do bebê. A função paterna está encarregada do desenvolvimento na capacidade de reconhecimento dos limites, assim como garantir a segurança no lar. Dois fatores que se desdobram na capacidade de perceber as fronteiras de sua própria personalidade, aprendendo a respeitá-las e por consequência, estender isso ao outro.
Em última instancia a presença paterna quando bem cumprida também deve se encarregar de desenvolver a capacidade do sujeito em confiar em si mesmo.








Winnicott, D. W. (2002). ALGUNS ASPECTOS PSICOLÓGICOS DA DELINQUÊNCIA JUVENIL. In D. W. Winnicott. (2002/1984a). PRIVAÇÃO E DELINQUÊNCIA. (3ª ed.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1946.) 








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