quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

SOBRE A DEISINTEGRAÇÃO

Dentre as inúmeras características presentes, parece-me que existe uma configuração unanime nos casos que chegam com demandas para psicoterapia. Me refiro a condição da desintegração psíquica. Independentemente do tipo da queixa, parece existir grande evidência de desintegração presente em todos os casos que a clínica psicanalítica recebe. Na verdade, essa é a origem do conflito que passa a gerar turbulência emocional no paciente psicoterapêutico.
Vale lembrar que, a tendência a desintegração está presente, numa certa cota, em todos nós, até mesmo no sujeito supostamente mais saudável emocionalmente. Essa cota tem a ver com o que Sigmund Freud (1856 - 1939) denominou pulsão de morte (1920), tendência que age no funcionamento mental, lado a lado com a pulsão de vida.
A pulsão de morte é marcada pela fragmentação do eu, assim como de tudo que é percebido, com a função de desvincular as partes. A pulsão de morte age na carência da pulsão de vida, que, por sua vez, tem função de ligação. 
Melanie Klein (1882 - 1960), expandindo para além de Freud, propõe a fragmentação como característica central da maneira primitiva do bebê funcionar, descrita por ela como posição esquizoparanóide (1930).
Esquizo, que significa dividido e paranoide, que quer dizer perseguidor. Esse funcionamento mental tem a função de separar aquilo que é prazeroso do que é desconfortável, mantendo um afastado do outro. Frente a situações intoleráveis, ocorre a fragmentação para evitar o sofrimento. Os fragmentos intoleráveis são lançados no objeto através de mecanismo descrito por Klein de identificação projetiva. “O ego ainda está muito pouco integrado e, portanto, passível de cindir a si próprio, suas emoções e seus objetos internos e externos; mas a cisão também é uma das defesas fundamentais contra a ansiedade persecutória.” (Klein, 1955)
Contudo, conforme o vínculo entre mãe bebê vai se desenvolvendo, a posição esquizoparanóide evolui para a posição depressiva, onde ocorre a integração do eu e também do objeto percebido. “Eu diria que, mesmo que a cisão e a projeção operem intensamente, a desintegração do ego nunca é completa, enquanto a vida existir.” (Klein, 1955) Em suas NOTAS SOBRE ALGUNS MECANISMOS ESQUIZÓIDES, Klein descreve a capacidade do bebê de suplantar a desintegração temporária devido a grande resiliência e capacidade de recuperação da mente da criança.
No fluxo do desenvolvimento saudável, a desintegração, experimentada pelo bebê é transitória. “A gratificação por parte do objeto bom externo, entre outros fatores, ajuda reiteradamente a transpor esses estados esquizoides.” (Klein, 1946) Nisso o amor da mãe é o maior recurso integrador para o bebê e acolhedor de ansiedades psicóticas. “Através dos processos alternantes de desintegração e integração, desenvolve-se gradualmente um ego mais integrado, com maior capacidade de lidar com a ansiedade persecutória.” (Klein, 1952)
Num sujeito em que a parte neurótica da mente esteja predominante, temos a desintegração ocorrendo através do mecanismo de repressão. A partir de partes reprimidas, por conta do impulso que foi rejeitado no mundo externo, ocorre uma divisão do eu. Nessa configuração, uma parte pressiona na direção do impulso e outra parte reprime essa tendência, criando assim, uma tensão conflituosa. “O desenvolvimento de conceitos fundamentais para a psicanálise, como é o caso da ideia de repressão, tem seu embasamento nessa ordem de incapacidades, geradoras de divisão do eu, que assim dividido passa a desenvolver sintomas para manter-se funcionando.” (Martino. 2018)
Já no sujeito que tenha a predominância do desligamento com a realidade, ocorre certa desintegração psicótica. Essa forma de fragmentação acontece por conta da cisão de partes da personalidade que são negadas no eu e então projetadas no outro. Por conta de o ego não poder contar com uma formação bem estruturada, o sujeito não consegue se utilizar do mecanismo de defesa da repressão. Isso ocorre por não ser capaz de tolerar a tensão gerada. Então, ele cinde, nega de si mesmo o que não tolerou e projeta num objeto do mundo externo que seja um possível continente de projeção. 
Seja ela no âmbito neurótico, em forma de repressão, ou no modelo psicótico, como cisão, a desintegração é sintoma de situações nocivas a vida.  Uma forma de defesa frente a um possível colapso no funcionamento emocional. Uma maneira de defender-se por conta de alguma configuração que não esteja funcionando de forma saudável. Além disso, toda forma de desintegração implica num empobrecimento no todo da personalidade, pois além de não poder contar com a energia da personalidade total, ainda ocorre uma inversão de energia, onde uma parte se volta contra a outra.
Provavelmente todo ser vivo reage a incitações nocivas com desintegração. A desintegração que ocorre no funcionamento mental do sujeito, também acontece no âmbito da sociedade, já que o grupo funciona analogamente ao funcionamento do indivíduo. Da mesma maneira, a fragmentação na configuração da sociedade também é um sinal de adoecimento. Jiddu Krishnamurti (1895 — 1986), nos alertou quanto a isso. "Isto é, a sociedade se está tornando sempre cristalizada, estática, e, por isso, desintegrando-se, constantemente.” (Krishnamurti. A PRIMEIRA E ÚLTIMA LIBERDADE, 1976). A sociedade está doente quando se divide por tom de pele, nacionalidade, gênero, orientação sexual... Ora, aquilo que ocorre no âmbito social, antes ocorreu na esfera emocional e afetivo. Aquele que desrespeita um negro, também desrespeita um branco, um pardo, um verde, ou qualquer que seja a cor. Isso ocorre, pois antes de tudo, não aprendeu a respeitar a si mesmo. Não pode haver mudança social sem transformação no ‘eu’.
“Por mais leis que se promulguem, e por mais sábias que elas sejam, a sociedade continua sempre no processo de decomposição, porque a revolução deve operar-se interiormente, e não, apenas, no exterior." (Krishnamurti, 1976).
Bem, quando tratamos de um sujeito que apresente desintegração psíquica, meios como o processo da psicoterapia são recursos por excelência para propiciar experiencias emocionais e afetivas que possam trazer grande chance de integração. No entanto, quando tratamos das massas, parece que não podemos contar com tanta esperança assim. A sociedade por si só, não é uma formação natural, já que o ser humano não tem um instinto agregador, logo já nasce conflituosa. Freud nos orientou de forma muito clara, em seu texto PSICOLOGIA DE GRUPO E A ANÁLISE DO EGO, de 1921, quanto a ausência de um instinto gregário no ser humano. Freud exemplifica esse fato lembrando que, “O medo da criança, quando está sozinha, tampouco é apaziguado pela visão de qualquer fortuito ‘membro da grei’; pelo contrário, é criado pela aproximação de um ‘estranho’ desse tipo.” (Freud, 1921) Sendo assim, exceto e tão-somente com a chegada da vida adulta, não se vê tendências gregárias ou convergência aos grupos nas crianças.
O ser humano tem sua natureza narcisista, aprendendo arduamente a conviver em sociedade e o faz por conta de conveniências, em grande parte, a partir das falhas na estrutura da família.
Buscamos inutilmente na sociedade, aquilo que nos faltou no seio do lar.



BION, W. R. SOBRE ALUCINAÇÃO, in ESTUDOS PSICANALÍTICOS REVISADOS - SECOND THOUGHTS, tradução de Wellington M. de Melo Dantas. 3ª ed. revisada - Rio de Janeiro: Imago, Ed., 1994, originalmente publicado no International Journal of Psycho-Analysis, vai. 39, parte 5, 1958.
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_______. O EGO E O ID. In J. Strachey, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 18). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1923)
MARTINO, Renato Dias. ACOLHIDA EM PSICOTERAPIA - 1. ed. - São José do Rio Preto: Vitrine Literária Editora, 2018.
KLEIN, M, (1930) A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO DE SÍMBOLOS NO DESENVOLVIMENTO DO EGO. In: ______ AMOR, CULPA E REPARAÇÃO. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 
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