sexta-feira, 22 de outubro de 2021

FANTASIA DE ONIPOTÊNCIA

 

Quando alguém, por ventura não tenha sido nutrido de amor e não tenha recebido suficiente reconhecimento, numa época em que ainda não conseguia retribuir, pode vir então, a desenvolver recursos defensivos para tentar aplacar essa falha geradora de insegurança. O delírio de grandeza é uma forma de defesa para aplacar o sentimento de insegurança daquele que não esteja conseguindo acreditar em si, por ter sido privado da confiança do outro.

Quando o bebê, que é naturalmente narcisista e carece de grande atenção do outro, não consegue receber esse cuidado de maneira bem sucedida, acaba por estender características narcisistas para fases posteriores, na vida adulta. Tende a desenvolver maneiras substitutivas para alcançar receber olhares de aprovação e exaltação de forma compulsiva.

Desejar resolver o problema do outro pode ser uma característica narcisista. Quando existe esse desejo, pouco tem a ver com compaixão ou altruísmo, mas serve como forma de obter satisfação, através de um sentimento de superioridade. O ímpeto de querer solucionar problemas de outras pessoas parece ser originário de fantasias de onipotência. Fruto da ilusão de que se consegue controlar tudo, ou de que detém o comando sobre tudo, num delírio de grandeza. 

Contudo, isso ocorre, enquanto o outro, de maneira suposta, não tenha a menor capacidade para tanto. Ou seja, um sente que tem a supremacia às custas da inferioridade do outro. Isso comumente é visto nas redes sociais, como uma forma de autopromoção ou ainda exibicionismo. 

No entanto, a realidade parece se configurar de forma bem diferente. Ninguém pode ser ajudado sem que antes se dê conta e admita que precisa de ajuda. Além do mais, aquilo que o julgado salvador imagina ser um problema, pode estar trazendo um benefício oculto para aquele que parece padecer. Sendo assim, não existirá solução até que haja uma mudança interna, onde nada que venha de fora poderá intervir. A não ser um ambiente acolhedor e tolerante do tempo que isso possa demandar.



sábado, 2 de outubro de 2021

DA TENDÊNCIA A IDOLATRIA


Não é novidade o fato de que o grupo humano carece de um líder para manter-se unido. Essa espécie de grupo tem a união muito breve no caso de não existir um integrante que possa cumprir a função de líder. Pelo fato de que não se encontra na origem da personalidade humana, um elemento instintivo de agregação é então necessário um líder para juntar e manter unido o grupo dessa ordem de seres. Isso fica muito claro na obra PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EGO, de Sigmund Freud (1856-1939), quando orientado por Gustave Le Bon (1841 — 1931), propõe que quando um grupo de seres humanos se junta, logo colocam-se sob a influência de um integrante que carrega algumas características peculiares.
Freud afirma que o grupo humano porta-se como se fosse um rebanho submisso e que não poderia manter-se sem um dominador. “Possui tal anseio de obediência, que se submete instintivamente a qualquer um que se indique a si próprio como chefe.” (Freud, 1921) Esse sujeito ora ocupando o lugar de líder deve receber um olhar de prestigio e que amiúde converte-se em idolatria. 
A questão da influencia do líder no grupo humano também é tratada por Wilfred R. Bion (1897-1979), em EXPERIÊNCIAS COMGRUPOS, onde propõe que o grupo humano guarda características do processo primário do funcionamento mental, ou seja, opera impulsivamente, reagindo defensivamente conforme as ansiedades geradas. Dentro dessa configuração, o grupo deve manifestar o que Bion descreveu como três modalidades de suposições básicas, que se estabelecem em relação ao líder. “Existe apenas uma espécie de grupo e uma espécie de homem que se aproximam deste sonho, e são o grupo básico o grupo dominado por uma das três suposições básicas: dependência, acasalamento e fuga ou luta e o homem que é capaz de perder sua identidade no rebanho.” (Bion,1961) 

Uma forma de suposições básicas predomina a fim de evitar experiências emocionais peculiares das outras duas suposições. “Assim, quando um grupo é impregnado pelas emoções do grupo de dependência os estados emocionais do grupo de luta-fuga e do grupo de acasalamento encontram-se em inatividade temporária.” (Bion, 1961) O líder parece ter a função de movimentaras emoções relacionadas as suposições básicas, no balanceamento das tensões que ocorrem entre a mentalidade de grupo e a autonomia do indivíduo. 
O suposto básico da “dependência” tem seu funcionamento primitivo, a partir da necessidade de segurança, busca proteção num líder com características carismáticas guiando-se por suas propostas. Nesse modelo a idolatria do líder pare ser exacerbada. “Mas o grupo constituído para perpetuar o estado de dependência significa, para o individuo, que ele está sendo ávido em exigir mais que sua parte justa de atenção paterna.” (Bion, 1961) Certa voracidade gera um conflito evidente entre essa forma de suposição básica e as necessidades e obrigações do sujeito enquanto adulto. Ao mesmo tempo em que o grupo idolatra o líder, também exige muito dele, assim como numa relação imatura de uma criança com seus pais.
“Nas outras duas culturas, o embate se dá entre a suposição básica do que é exigido do individuo como adulto e aquilo que este, como adulto, sente-se preparado para dar.” (Bion, 1961) Enquanto regido pelo suposto básico da dependência, o líder ganha a função de salvar o grupo, antes de tudo da possível desintegração, que sempre ronda essa espécie de organização. “De qualquer modo, seu estado de ânimo contrasta com aquele que experimentam quando, havendo jogado todas as suas preocupações sobre o líder, sentam-se e ficam esperando que ele solucione todos os seus problemas.” (Bion, 1961) A grande idolatria criada pelo grupo, quando regido por essa suposição, gera muitas dificuldades e na verdade impede que qualquer membro possa manifestar sua opinião, já que isso denota, aos olhos do grupo, oposição a o líder. 
Já no pressuposto básico de “luta e fuga”, segundo Bion, o grupo manifesta certa ansiedade paranoide. Sendo assim, nesse pressuposto, o líder deve também ter características paranoides e tirânicas. O sentimento persecutório faz com que o grupo se torne altamente defensivo, lutando ou fugindo das situações. “O tipo de liderança que é reconhecido como apropriado é a liderança do homem que mobiliza o grupo para atacar alguém, ou, alternativamente, para liderá-lo na fuga.” (Bion, 1961) Normalmente cria um inimigo externo do qual se atribui todo o mal e contra ele o grupo se mantém unido. Essa forma de suposição já se mostra um tanto mais evoluída que a suposição de dependência. 
No pressuposto básico do “acasalamento” o sentimento de esperança é a fundamentação, onde o grupo anseia pela geração de um elemento salvador que virá socorrê-lo de todas as dificuldades.  Uma “esperança messiânica”, onde um casal ou um par do grupo gerará um filho (elemento) que salvará a todos de qualquer moléstia. “Para que os sentimentos de esperança sejam sustentados, é essencial que o ‘líder’ do grupo, diferentemente dos líderes do grupo de dependência e do grupo de luta-fuga, esteja por nascer.” (Bion, 1961) Nascerá uma pessoa ou mesmo uma ideia que livrará o grupo do ódio, da destrutividade e do desespero. 
A partir dos modelos propostos até aqui, fica claro que a indispensável presença de um sujeito do qual seja atribuído características diferenciadas e mais evoluídas do que as dos outros membros para que um grupo humano possa existir. Sendo assim, a idolatria passa a ser elemento inerente à imposição da vida na sociedade. Do Grego, a palavra idolatria vem da junção de EIDOS = “forma”, mais LATREIA = “adoração”. Um líder religioso, um dirigente político, um artista famoso, uma celebridade, um professor, ou mesmo uma pessoa comum do convívio. Todos são potenciais objetos de projeções de idolatria. Mas, temos aqui um perigo.
A tendência a idolatria pode levar o sujeito que ora idolatra a um nível drástico de subserviência, muitas vezes até mesmo permitindo ser abusado por aquele que seja objeto de idolatria. 
Quando ocorre uma admiração exagerada para com o outro, isso acontece por conta de uma autodesvalorização. A idolatria incide em detrimento do amor próprio. É como se todas as virtudes, a nobreza, assim como todas as características saudáveis e sublimes estivessem reunidas tão somente no objeto de idolatria. No entanto, isso só pode acontecer com o esgotamento do valor de si mesmo, numa auto apreciação desfavorável. É como se o eu se tornasse insignificante perante o outro. Ainda assim, esse processo só deve ocorrer por meio de alucinação. Nenhum ser humano é digno de idolatria. 
A partir da situação de desvalorização de si mesmo, cria-se certa ambivalência. Por conta da auto depreciação, é gerado um ódio latente em relação ao objeto ora idolatrado. Quando se idolatra alguém, isso ocorre conscientemente, no entanto, gera-se um ódio velado. Por tanto, parece não ser possível existir tamanho investimento no outro sem que ocorra um empobrecimento no eu. Freud, descreve duas direções possíveis para a libido(importância): “libido do ego”, importância de si mesmo e “libido objetal” importância do outro. “Quanto mais uma é empregada, mais a outra se esvazia.” (Freud, 1914)Em cada idolatria existe um ódio velado. “A atitude da criança para com o pai é matizada por uma ambivalência peculiar.
O próprio pai constitui um perigo para a criança, talvez por causa do relacionamento anterior dela com a mãe. Assim, ela o teme tanto quanto anseia por ele e o admira.” (FREUD, 1927) A criança tem sentimentos de sentidos opostos em relação a aquele que apresente características de autoridade, onde odeia por ter o poder de dominá-la e admira pelo mesmo motivo. “O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força.” (FREUD, 1913) 
Na realidade, aquele que ora idealiza o outro com idolatria, o faz como uma consequência de certa incapacidade de reconhecer virtudes em si mesmo. Ou seja, não é a idolatria que consome o amor próprio, mas sim a falta de autoestima que gera a necessidade de idolatrar a outrem. Um ideal de eu é projetado no outro por conta da dificuldade de confiar no que se está sendo. Na formação de um grupo, esse ideal é comungado entre os integrantes, que também compartilham da incapacidade de acreditar em si mesmos. “Interpretamos esse prodígio com a significação de que o indivíduo abandona seu ideal do ego e o substitui pelo ideal do grupo, tal como é corporificado no líder.” (Freud, 1921). Tratamos da incapacidade de pensar por si mesmo. O sucesso no domínio dos governantes está na incapacidade de pensar da nação. Arthur Schopenhauer (1788-1860) trata desse tema em seus escritos, onde descreve o nacionalismo como o resultado de um estado de empobrecimento do amor próprio. 
"Nacionalismo -Todo pobre-diabo que não tem nada no mundo do que possa se orgulhar escolhe a nação a que pertence como último recurso para sentir orgulho: desse modo, ele se restabelece, sente-se grato e pronto para defender (com unhas e dentes) todos os erros e absurdos próprios dessa nação".(Schopenhauer, 1860) 
Assim sendo, a saúde emocional que é nutrida pelos vínculos, fica ameaçada. Onde couber idolatria não há espaço para vínculo saudável. Parece que quanto maior for a falha no cumprimento de funções fundamentais como as maternas e paternas, tanto maior a não integração da personalidade num sujeito coeso. Essa coesão consigo mesmo é o que pode trazer autonomia tornando o sujeito capaz de liderar a si mesmo. Por outro lado quanto maior a desintegração da personalidade, a fragmentação faz com que o sujeito não funcione como um indivíduo, mas como um grupo incapaz de concordância entre si.

Portanto, menor a capacidade de guiar-se por si mesmo e maior será a tendência de o sujeito buscar líderes para idolatria.




Referências: 

Bion, W. R. (1961). EXPERIÊNCIAS COM GRUPOS. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

FREUD, S. (1913). O TOTEM E TABU, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1969.Vol. XIII

_________. (1914). SOBRE O NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO ,Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1969. Vol. XIV.

_________. (1921). PSICOLOGIA DE GRUPO E ANÁLISE DO EGO. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1969. Vol. XVIII.

SCHOPENHAUER, Arthur. (1860). A ARTE DE INSULTAR, São Paulo: Martins Fontes, 2003.

_________. (1927). O FUTURO DE UMA ILUSÃO, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1969.  Vol. XXI