quarta-feira, 24 de abril de 2024

SEM MEMÓRIA - Prof. Renato Dias Martino



Um psicanalista não pode se utilizar daquilo que ele registrou na memória. Isso é nocivo para o processo psicoterapêutico. Um psicanalista, segundo a orientação de Wilfred Bion, precisa ser sem memória, que ele possa rebaixar ao máximo o seu resgate dos dados que foram armazenados na memória.

LEMBRAR OU RECORDAR

 Precisamos, diferenciar duas experiências. A experiência de resgatar dados da memória e a experiência de recordar. Resgatar dados da memória é uma experiência calculista, é uma experiência que faz com que você tente se lembrar de alguma coisa para justificar algo que você não está conseguindo viver no presente. Recordar é algo que surge, é algo que brota é algo que vem por conta de uma configuração saudável do presente. RE, quer dizer de novo, COR, quer dizer coração e DAR, quer dizer doar. Então, recordar é dar mais uma vez para o coração e isso é saudável, isso é terapêutico. Eu poderia ficar aqui horas tentando te explicar a diferença de uma coisa e de outra, mas você vai precisar viver isso na sua prática, para você perceber que você não resgatou aquilo na memória, você não buscou aquilo para justificar alguma coisa que estava desconfortável no presente, mas aquilo brotou por conta de uma experiência afetiva que aconteceu no presente.

IMPORTÂNCIA DO PRESENTE 

 Quando eu realmente me importo com o que está acontecendo aqui e agora, aquilo que passou vai perdendo a importância. Aquilo que passou só ganha importância quando eu não estou sendo capaz de me importar com o presente, com aquilo que está acontecendo agora. Quanto mais eu me preocupo com o futuro, ou me entulho do passado, eu não consigo me ocupar do presente. 

JUSTIFICA O PRESENTE PELO PASSADO

Quando eu não estou conseguindo justificar o presente pelo próprio presente... Aliás, o presente não precisa de justificativa. Quando eu não consigo viver o presente pelo próprio presente, eu começo a tentar resgatar aquilo que passou para trazer álibis condenatórios para pessoa da qual eu estou discutindo. “É, mas, ontem não sei o que.” “É, mas, semana passada não sei o que mais.” Isso quer dizer que eu não estou conseguindo viver o presente, mas eu preciso resgatar alguma coisa que passou para justificar o meu descontentamento.

O BARQUEIRO

Quando a gente está angustiado quando a gente está ansioso a gente tende a resgatar dados da memória, a gente tende a resgatar algo do passado. Um barqueiro fazia o translado das pessoas de um porto para uma ilha. Ele era um barqueiro e fazia isso num ponto turístico. Um casal entrou, num dia de nevoeiro, entrou no barco para ser levado até a ilha e o barqueiro começou a remar olhando para trás. O sujeito que estava sendo transportado perguntou para ele assim: “mas por que que você fica olhando para trás?” Ele falou: “Porque o nevoeiro me obstrui a visão da ilha, então, eu preciso me basear no porto, até que esse nevoeiro possa se dissipar e eu consiga enxergar a ilha.” Então, todas as vezes que a gente tiver obstruído de olhar para frente, a gente vai olhar para trás, mas isso precisa ser temporário. Isso precisa ser só naquele momento, onde eu não tenho outra referência, porque se eu continuar olhando para trás, eu vou tropeçar no meu caminho.

REGRA RÍGIDA

Se eu tomo essa coisa de não resgatar dados da memória como uma regra rígida, que eu preciso ficar me policiando, você sabe o que que vai acontecer? Eu vou resgatar algum dado de memória porque eu sou humano, eu vou ficar preso nisso e não vou conseguir para frente, eu vou ficar me julgando e me cobrando de ter lembrado alguma coisa da memória e não consigo ir para frente. Então, eu lembrei ponto. Tudo bem! Não tem problema. Vamos embora. Vou tentar não lembrar mais.

ANGÚSTIA

Todas as vezes que o sujeito tenta intervir no passado, naquilo que ficou registrado na memória, para mudar aquilo, ou até para se julgar, se condenar por conta de alguma coisa que ficou no passado, isso gera um sentimento de angústia. Então, a angústia é essencialmente gerada por algo que ficou no passado e o sujeito tem o desejo de mudar. 


SINTOMA NEURÓTICO

O passado é justamente o tempo do sintoma neurótico. O sintoma neurótico é, por assim dizer, uma âncora que ficou no passado. Então, o sujeito viveu alguma coisa e não consegue soltar desta ideia e ele fica rememorando esta ideia, não permitindo que essa ideia fique no seu tempo adequado que é naquilo que passou e ele traz aquilo de volta. Quando aquilo vem, ele manifesta o seu sintoma dentro da configuração neurótica, o sujeito que tem a predominância neurótica na mente é aquele que está preso em alguma experiência que aconteceu no passado. Isso obstrui o fluxo do funcionamento emocional afetivo ou o fluxo da mente.

REGISTRO DO PASSADO

Quando a gente fala assim: “eu lembro” de algum fato, na verdade você não lembra do fato, você lembra daquilo que você pôde registrar deste fato. Ninguém é capaz de registrar um fato como um todo, mas você registra aquilo que foi possível obter enquanto panorama do que estava acontecendo. E muitas vezes, a gente julga isso como o todo. Aliás, este é um grande problema da história, com “HI” e dos livros de história. Quem escreveu o livro de história, quem registrou aquilo, na verdade registrou a partir de uma percepção de parte do que aconteceu, de uma ínfima parte do que que aconteceu. Porque, a maior parte do que aconteceu ele não pode registrar. Mas, ainda assim, aquilo é tido como uma verdade. Muitas vezes, o sujeito que tem a predominância neurótica da mente, muitas vezes o sujeito que tem um sintoma neurótico, padece por se condenar, por conta de um registro da memória que, na verdade é um fragmento e não é a totalidade do que aconteceu. E ele está ali, se condenando por alguma coisa que na verdade ele conseguiu registrar apenas um pedacinho do que aconteceu na totalidade.

DESAPEGO DO BENEFÍCIO

Para ser capaz de não ficar resgatando dados da memória, não ficar se lembrando de coisas que, na verdade já passaram e que hoje já não importam mais, eu preciso antes me desapegar me depreender do benefício que me faz ficar lembrando disso tudo. E muitas vezes, fica parecendo até meio estranho perguntar por exemplo para o outro, qual o benefício que ele tem de ficar se lembrando o tempo todo de uma experiência horrível que aconteceu no passado. Benefício de se sentir o “coitadinho”, tem o benefício de se sentir melhor do que o outro, porque conseguiu ultrapassar por aquela experiência. Só que esse benefício vem junto com uma série de ônus também.



quinta-feira, 18 de abril de 2024

BREVE REFLEXÃO SOBRE A PSICANÁLISE NOS TEMPOS DE HOJE

Das Mudanças Culturais e Tecnológicas


É função da psicanálise, independente da capacidade de cada psicanalista, a de transformação e adequação a novos modelos. Uma psicanálise enrijecida, ou cristalizada nos seus modelos é uma psicanálise morta e isso vale para cada sujeito que se propõe à sua prática. Com o fenômeno recente da pandemia do coronavírus, houve grande necessidade de adaptação tecnológica. O formato virtual, nos atendimentos online tornaram-se um importante recurso por conta da necessidade do afastamento físico, pelo risco de contágio. No entanto, no que se refere às questões culturais, não acredito que a psicanálise deva se ocupar de adaptação.  A atenção da psicanálise deve estar no âmbito do funcionamento emocional que, por sua vez, dá sustentação ao funcionamento afetivo e isso está compreendido numa dimensão independente das tendencias culturais ou ideológicas.

Não vejo diferença entre a psicanálise que possa ser aplicada num sujeito que viva na cultura brasileira, com a psicanálise que possa ser aplicada num outro sujeito de uma cultura diferente, ou ainda, na cultura do passado, ou mesmo, na contemporânea. A real psicanálise se presta a cuidar de elementos como amor, respeito, tristezas, ansiedades, angústias, e outros elementos do funcionamento emocional, desdobrando-se no âmbito afetivo. Estes elementos estão incluídos numa ordem que independem da tendencia cultural ou propostas ideológicas.

Da Ética Psicanalítica na Era Digital


A ética deve estar presente na prática da psicanálise, independente da modalidade de atendimento. A saber, a possibilidade de rebaixamento da influência moral para o enriquecimento ético é justamente, uma função da psicanálise. O respeito é elemento indispensável tanto no modelo presencial como no atendimento online. Da mesma maneira, dentro do âmbito das redes sociais, penso que um psicanalista real irá se manifestar dentro de uma atmosfera de respeito.


Da Patologização, do Diagnóstico Rotulador e o Medicamento que Alivia a Dor


Numa psicanálise real, que esteja cumprindo sua função, não se inclui os diagnósticos nas catalogações psiquiátricas. O respeito à forma de funcionar de cada um, em suas peculiaridades, assim como o respeito ao tempo que cada um leva nas transformações dentro do dos processos emocional e afetivos é indispensável numa prática bem-sucedida na clínica psicanalítica. A medicação psiquiátrica parece ser um fator obstrutor no fluxo bem-sucedido do processo psicanalítico, já que todo o trabalho da análise se inicia, se mantem, pela dor psíquica que é sua motriz. O que move o processo psicanalítico são as ansiedades e angústias, logo, quando esses sentimentos são suprimidos, o motivo da análise também se ausenta. A analisabilidade, ou seja, o nível de disposição ao processo psicoterapêutico, inclui a coragem de sofrer a dor para que se aprenda a tolerar desconfortos. Sem dor, sem psicanálise.

 

Da Formação dos Novos Psicanalistas


Vejo frequentemente nas redes sociais, divulgações de cursos de formação, cada vez mais breves. Na realidade, independente da época, a orientação de Freud, feita em 1919, em seu importante texto, SOBRE O ESTUDO DA PSICANÁLISE NAS UNIVERSIDADES, é elemento invariante na formação do psicanalista. O pai da psicanálise é categórico quando propõe o tripé contínuo e constante.

A análise pessoal, a supervisão feita por um colega mais experiente sobre os casos atendidos e o estudo teórico, de preferência em grupo. Isso qualifica o sujeito à prática da psicanálise, não um curso de formação. A dedicação à sua análise pessoal é mais importante do que os estudos teóricos, na formação do psicanalista. 




quinta-feira, 11 de abril de 2024

AMOR E FELICIDADE - Prof. Renato Dias Martino


Lá em 1914, no SOBRE O NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO, o Freud coloca a ideia lá, do amor feliz, para ele. Essa palavra feliz, para mim não faz muito sentido. Um amor feliz. Amor é dor. Amor não tem felicidade. Que felicidade tem no amor? Nenhuma! Amor é renúncia, amor é dor. Ama aquele que é capaz de tolerar a dor. Se você está buscando felicidade, não é amor que você vai buscar, você vai buscar paixão, você vai buscar qualquer outra coisa que é satisfação. A felicidade depende da ignorância. Quanto mais ignorante o sujeito for mais ele é feliz. O amor feliz para Freud que eu colocaria como amor saudável é aquele em que a libido objetal coincide com o a libido do ego. Este aí talvez, seria o amor saudável.

FELICIDADE E ALEGRIA

Um distanciamento enorme entre o conceito de felicidade principalmente este cultivado na contemporaneidade, com experiências como contentamento, alegria. Ninguém busca alegria, ninguém busca contentamento, elas são um estado de espírito que vem quando há uma configuração adequada para que elas possam vir. Agora, a felicidade é aquilo que o sujeito fica buscando o tempo todo, se ocupando em buscar, em detrimento de se preparar para tolerar dor. Se preparar para os dias difíceis. Felicidade se busca, alegria e contentamento vêm sem que eu precise buscar.

AMAR E SER AMADO

Enquanto o bebê, e isso se estende ao adolescente e ao adulto, enquanto o sujeito estiver se sentindo desamparado, inseguro de si mesmo, ele não é capaz de amar. Ele vai se ligar as pessoas para obter um benefício, ele vai se ligar as pessoas por conveniência. Ele precisa desenvolver isso. E como é que ele desenvolve isso? Sendo amado! Ele precisa ser amado e ser amado realmente, para que ele possa aprender a amar a si mesmo, aprender a reconhecer o limite de si próprio e estender isso ao outro. Reconhecer o limite do outro e aprender a amar o outro.



quinta-feira, 4 de abril de 2024

BENEFÍCIO NO SINTOMA - Prof. Renato Dias Martino


O sujeito que tem uma dificuldade no funcionamento emocional afetivo, o sujeito que muitas vezes busca psicoterapia, manifesta um problema, ele manifesta um sintoma neurótico, ou um sintoma muitas vezes até psicótico, que na verdade, é alimentado pelas pessoas que convivem com ele. As pessoas têm um interesse que ele continue funcionando daquela forma e a memória é um elemento presente nisso que eu estou dizendo. Muitas vezes, o sujeito não consegue permitir a transformação dele próprio, porque as pessoas esperam que ele continue sendo a mesma pessoa e não permitem que ele se transforme. Cada característica que ele apresenta de transformação de si mesmo é seguido por uma reprovação do outro. E aí, ele começa a ficar com medo dessa transformação e muitas vezes obstrui essa transformação de acontecer.

GANHO PRIMÁRIO E SECUNDÁRIO

Os benefícios de uma neurose, ou os benefícios de uma psicose não são só do sujeito que apresenta aquelas características, mas também são das pessoas que convivem com ele. Cada sintoma que o sujeito apresenta, não é só um malefício, mas tem por trás um benefício. E na verdade, não só um, mas vários. O próprio Freud falou do benefício primário que é a vazão da pulsão que estava ali reprimida e o benefício secundário que passar a ser visto pelo outro por conta daquele sintoma.

BENEFÍCIO DO OUTRO

Como o sujeito se sente saudável quando ele convive com alguém supostamente doente emocionalmente! Então, ele se sente o saudável e fala assim: “Esse daí tem problema.” “Esse aí precisa de terapia.” “Eu sou o saudável, eu não preciso.” Conviver com alguém, atribuindo a ele um problema psicológico é extremamente conveniente para aquele que não é capaz de se responsabilizar pelos seus problemas.

CORAGEM DO MAIS SAUDÁVEL 

A maioria das pessoas que procuram psicoterapia, são justamente as pessoas mais saudáveis da casa, da família. São justamente essas pessoas que tiveram a coragem de buscar ajuda, enquanto os outros estão extremamente implicados em seus sintomas e muito bem articulados com eles.

CHANTAGEM EMOCIONAL  

Uma pessoa fica o tempo todo condenando a outra por algo que aconteceu no ano passado, há cinco anos atrás, há dez anos atrás. Ela passa uma vida justificando a sua incapacidade de estabelecer um vínculo saudável com essa pessoa, por algo que aconteceu há muito tempo atrás e fica ali torturando, incitando remorso nessa pessoa, para conseguir um benefício com isso. Sendo que hoje aquilo já não existe mais. O sujeito que não está sendo capaz de amar pode encontrar na culpa um elemento que garanta que ele não vai ser abandonado. Ele não conseguia que o outro se dedicasse a ele pelo amor e agora, a partir de um evento que ele pode condenar o outro e incitar o remorso, ele começa a conseguir que o outro faça as coisas para ele.