quarta-feira, 3 de junho de 2020

CUIDAR DE SI, CUIDAR DO OUTRO


O que leva alguém a acreditar no real poder de escolha do ser humano tem grande influência na crença de que já nascemos capacitados para inúmeras atitudes. Acreditar que todos conseguem desenvolver as mesmas capacidades, independente das condições em que vivem, isenta o sujeito de se responsabilizar por cada ato da humanidade. É um atalho tão facilitador quanto superficial o de acreditar que aquele que não “vê” a realidade e vive a se envolver nas ilusões, o faz por que escolheu esse modo de viver.
Esse é um grande impasse entre a realidade e a justiça dos homens. Quando, num tribunal, um sujeito é condenado por algum crime que tenha cometido, isso ocorre sem que se considere a história de sua vida, onde não houvera configuração necessária para que houvesse chance de vir a agir diferente do que tenha feito. Já que, o que é possível fazer é tão somente retirar o suposto criminoso do convívio social, para evitar que cometa mais crimes. No entanto, não é possível fornecer ao condenado, condições que permitam que consiga realmente desenvolver suas capacidades. Justamente o que lhe faltou e o que o levou se tornar alguém incapaz de fazer diferente do que fez.
A capacidade de amar é um bom exemplo de um elemento que não é inato do ser humano. Ainda que exista a possibilidade de desenvolvê-la, essa capacidade carece fundamentalmente de modelos para que isso ocorra. Não se aprende a amar por meio de orientações pedagógicas, métodos didáticos ou de doutrinação, mas através de experiências vividas junto de alguém que nos ama. No princípio da vida, a dependência é a configuração do vínculo simbiótico entre mãe e bebê. Lentamente a criança vai aprendendo amar através do amor que a mãe dedica a ela. Sendo assim, poderíamos afirmar que o amor nasce da dependência e vai se desenvolvendo e expandindo.
Num primeiro momento a criança aprende a amar a si mesma pelo amor da mãe e também do pai. Essa experiência inicial parte do que em seu texto SOBRE O NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO, Sigmund Freud (1856 – 1939) chamou de narcisismo primário. Na lenda grega Narciso era um belo jovem que se apaixonara por sua imagem refletida no rio. A criança sente que ela é a coisa mais importante na vida dos pais e essa importância passa a ser internalizada pela própria criança, que passa a ter-se como o que há de mais importante para si mesma. A partir daí, devagar, passa a se qualificar para retribuir esse amor aos pais. Num primeiro momento retribui o amor que recebeu e que foi a base do amor próprio, e posteriormente passa a se qualificar a expandir esse amor a outras pessoas.
Portanto, alguém não pode ser capaz de amar outra pessoa sem antes ter aprendido a amar a si mesmo. O amor que possa vir a ser dedicado ao outro é sempre uma extensão da consideração que se tenha por si próprio. Portanto, a auto-estima sempre deve fundamentar a qualidade dos vínculos. A capacidade de amar o outro tem um pressuposto no amor próprio, entretanto, só pode ser capaz de amar a si mesmo aquele que foi um dia amado pelo outro.
A dedicação de cuidado é um fator da capacidade de amar e sendo assim também é aprendida por meio de modelos. O amor nasce na disposição ao cuidado e se propaga através dessa dedicação. A criança vai aprendendo a cuidar de si mesma a partir do cuidado zeloso dos pais dedicados a ela. Dessa maneira vai aprendendo a cuidar de si mesma, nos moldes de como foi cuidada. Do mesmo modo, esse cuidado dedicado será estendido ao outro. Isso inclui a dedicação ao cuidado dos próprios pais, quando em situação onde eles não estiverem sendo capazes de cuidar bem de si mesmos. Cuida bem do outro aquele que cuida bem de si mesmo.
Nessa altura do texto, o leitor pode estar se perguntando: quer dizer que quem não foi amado na infância não terá mais a chance de desenvolver a capacidade de amar a si mesmo e em consequência disso, ao outro? A resposta é simples, contudo, não tão simples é conseguir a configuração necessária para que seja possível o desenvolvimento da capacidade de amar e de cuidar, num adulto que não tenha sido cuidado e amado suficientemente em sua infância. Naturalmente que existirão outras oportunidades de se encontrar fontes afetivas na vida adulta, no entanto é evidente que a chance é bem menor para aquele que não conseguiu isso no seio do lar, em sua infância.
Um processo de psicoterapia, quando bem sucedido pode ser um bom ambiente para que isso possa acontecer. Para isso é necessário um encontro entre um paciente que esteja realmente disposto a se dedicar a esse doloroso processo e um psicoterapeuta que esteja realmente preparado para tanto.

Freud. S. SOBRE O NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO (1914)









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