sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

DA LIGAÇÃO COM O OUTRO

Num olhar mais cuidadoso podemos perceber que em cada novo vínculo que estabelecemos em nossa vida afetiva, revivemos cada fase do desenvolvimento desse relacionamento assim como quando fizemos isso pela primeira vez na vida. Mesmo tendo boa consciência de que estamos conhecendo alguém novo, tendemos a usar nessa nova relação, modelos de vínculo que já usamos anteriormente com outras pessoas.
Repetimos nessa nova relação, características que em sua maior parte coincidem com experiências já vividas. Essa é a base do que Sigmund Freud (1856 - 1939), chamou de mecanismo de transferência, ocorrente em todas as relações, mas que se manifesta no paciente em atendimento, de forma marcante.  No vértice de Wilfred R. Bion (1897 – 1979), os conceitos de “transformação” e “invariância”, aparecem em seu trabalho AS TRANSFORMAÇÕES de 1965, invocando o pintor quando reproduz na tela certa paisagem.
O artista necessita das invariâncias para que o observador (que não tem conhecimento da paisagem original) reconheça que aquilo que está no quadro é uma representação dessa paisagem original. Não obstante, esse mesmo artista revela também da capacidade de transformação, para partir do real sensório, compreendido no contato com a paisagem original (no caso pelo órgão da visão) e então representá-la em formato de pintura.
Pois bem, usando esse mesmo modelo, pensemos agora, na forma como nos relacionamos com as pessoas e coisas do mundo. Se assim fizermos, perceberemos algo muito próximo.
Algumas características das fases do desenvolvimento desse vínculo estão na ordem das transformações e por evoluírem se distanciam muito das formas primitivas de ligação afetiva. Entretanto, outras se mantêm na ordem das invariâncias enquanto persistem inalteradas até a vida adulta. Esta segunda ordem de características vinculares se mantém, repetindo-se em cada nova ligação que nos dispõe no mundo.
Através da psicanálise aprendemos o quanto não temos consciência daquilo que realmente nos motiva nas escolhas e o fato de que, aquilo que faz nos aproximarmos das coisas está longe do nosso conhecimento. Porém, não precisamos entender muito sobre as teorias do pensar para percebermos que fazemos isso justamente pelo mecanismo da identificação. Se observarmos o comportamento das crianças, isso fica bem claro. Aproximamo-nos das pessoas e coisas do mundo pois, de alguma forma nos vemos nelas. Isso é característico das crianças, mas em um olhar mais atento, perceberemos que se encontra fortemente inalterado nos adultos. Esse é o primeiro e maior motivo que nos leva a nos ligarmos a aquilo que existe além de nós mesmos. Quanto a isso Freud escreve em uma das melhores definições do conceito de identificação encontrada em sua vasta obra.
Em seu notável PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANALISE DO EGO, o pai da psicanálise propõe a identificação como sendo “a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa.” (Freud, 1921). 
Freud nos mostra que isso acontece em conformidade com a primeira fase do desenvolvimento emocional. Nessa fase se entra em contato com o mundo através da boca, no que denominou fase oral. A área erógena do corpo, ou seja, a parte do corpo físico que se encontra mais sensível as excitações, está concentrada na boca. A boca é a parte do corpo (do eu) que entra em contato com o corpo do outro.
A necessidade nutritória (orgânica) está, nessa época da vida, fundida á satisfação de necessidades sexuais, protótipo das relações amorosas que devem se desenvolver. Nesse momento da vida, o vínculo afetivo coincide com a fonte de alimento. O ato de alimentar-se está, nessa época da vida, totalmente relacionado ao amor da mãe.
“A principio, a satisfação das zonas erógenas deve ter-se associado com a necessidade de alimento. A atividade sexual apoia primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida, e só depois torna-se independente dela. Quem já viu uma criança saciada recuar do peito e cair no sono, com as faces coradas e um sorriso beatífico, a de dizer a si mesmo que essa imagem persiste também como norma da expressão da satisfação sexual em épocas posteriores da vida.” (Freud, 1921). 
Dessa forma é que Freud, em 1905 nos seus TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE, descreve a fusão de satisfações ocorrente no ato de mamar. Nessa época da vida, o bebê começa a criar recurso para perceber o outro e a si mesmo. Lentamente começa a se perceber desligado, porém, dependente da mãe e faz isso através de uma batalha com impulsos de retornar a segurança do seu ventre. Num desejo de retornar a posição de unificação do funcionamento mental com a mãe. O bebê suga o seio da mãe no intuito de satisfazer a libido concentrada na boca, alimentar-se do leite, mas também com a ânsia de incorporá-lo. O sentimento de liberdade, tão almejado para o adulto é extremamente desconfortável no bebê.
Nessa época da vida as transformações ocorrem de forma intensa, o bebê vive um fluxo de libido enorme emanando do seu interior, clamando pelo encontro com o outro e isso gera enorme oportunidade de crescimento. Contudo, a transformação em si é um conceito que traz a conotação da desorganização, do desordenado, do caótico. São libidos livres, soltas sem muita definição de direção ou de objeto. Bion chamou isso de elementos beta, em sua obra APRENDER COM A EXPERIÊNCIA de 1962. Por não ter capacidade de reconhecer o que realmente precisa, o bebê apenas chora e conta com a atenção e o cuidado daquele (mãe) que se sensibilizará com seu choro e o assistirá com seus cuidados.
De qualquer forma, nunca se tem certeza na transformação, por mais que exista certo grau de previsão. “O termo ‘transformação’ desorienta, a menos que se reconheçam limitações da implicação de ‘forma’.” (Bion, 1965). Nesse contexto a constância da forma é imprescindível para um desenvolvimento saudável desses conteúdos mentais que brotam no bebê. Na verdade, a invariância onde se encontra o ponto de apoio é o ambiente proporcionado na ação da maternagem.
Segundo Freud, esse modelo de ligação deve dar lugar a outro modelo mais evoluído de vínculo, o que chamou de ligação objetal. Num esquema progressivo do processo, poderíamos sugerir a seguinte sequência : a identificação é sinal de que se prenuncia a perda do objeto como parte do eu. Inicia-se a necessidade de reconhecer o outro além do eu, mas ainda com a condição de que esse outro seja uma extensão do próprio eu (como na ligação umbilical). Identifica-se com o outro e passa a ser igual a ele. Isso se da, pois nesse período talvez seja a única forma de admitir o desligamento. Na impossibilidade da incorporação que induziria a “ser” o outro, o processo leva a querer “obter” o outro. Nessa etapa é que se abandona a posição de objeto (aquele que é desejado) e conquista-se o status de sujeito, ou seja, aquele que deseja (o objeto). A ideia importante está no fato de poder diferenciar-se do objeto. Agora com a consciência das diferenças entre o eu e o outro, pode se estabelecer certo vínculo saudável. Podemos afirmar que está pronto para aprender a amar. Quem só ama o igual ainda não aprendeu amar.
No entanto, cada evolução nos processos mentais, que conduz á maior capacidade de estabelecer vínculos saudáveis com as pessoas e coisas do mundo, também estará sempre permeada de resistências. O que se espera na vida adulta é que possa ter seguido um processo de desenvolvimento mental saudável, e que grande parte dessas características possam também ter sido elaboradas, dando lugar a modelos mais amadurecidos de relacionamento.  Características possessivas nos relacionamentos e tentativas de incorporar o outro como sendo parte de si mesmo, são sintomas claros de alguém que, mesmo na idade adulta, ainda guarda grande parte de características vinculares imaturas (invariantes), contudo, tenta bravamente evoluir (transformação) emocionalmente e em sua forma de ligação efetiva.

Bion, W. R. APRENDENDO COM A EXPERIÊNCIA. Rio de Janeiro: Imago, 1962.
__________. AS TRANSFORMAÇÕES. Rio de Janeiro, Imago, 1965.
Freud, S. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas - Edição Standard Brasileira, IMAGO (1969-80)






Fone: 17- 991910375

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

DA IRRESPONSABILIDADE HUMANA

Uma faca pode ser usada para cortar alimentos, ou mesmo passar manteiga no pão, contudo, a mesma faca pode ser utilizada para ferir, ameaçando a vida tanto do outro quanto de si mesmo. Um instrumento pode ser utilizado para inúmeros fins. Quando Wilfred Bion (1897 – 1979) apresentou sua Grade, que foi criada como um instrumento para exercitar e desenvolver a intuição do analista, concentrando e sintetizando muito das principais idéias desse pensador, ele a comparou com uma régua. Sendo que uma régua pode ser utilizada para inúmeros fins. 
Bion lembra-se que quando era uma criança, na escola o professor punia os alunos usando a régua para bater na palma da mão. “Não era para isso que a régua foi feita ou porque era marcada em polegadas e centímetros, mas funcionava. Isto é tudo a respeito do qual eu posso pretender para a grade. Algumas pessoas podem estar aptas para usá-la para diferentes propósitos” (Bion, 1974). Mesmo a psicanálise pode se enquadrar nisso, onde o suposto psicanalista pode se utilizar dos recursos psicanalíticos para infringir dor, ferir, menosprezar, se colocando superiores ao outro.
Enquanto o que determina a habilidade no uso de certo instrumento é a capacidade intelectual, o que define o bom ou mau uso que se possa fazer deste utensílio é a maturidade emocional. A saber, o intelecto se desenvolve independente das condições afetivas, por outro lado o desenvolvimento da maturidade emocional está diretamente subordinado à qualidade na saúde dos vínculos. O conhecimento intelectual se desenvolve pela doutrinação na educação, já a maturidade se desenvolve a partir de vínculos que possam nutrir de amor e sinceridade. A expansão da capacidade emocional se dá a partir da possibilidade de se viver situações difíceis, onde se possa contar com o amparo que proporcione o acolhimento nessa dificuldade. Qualifica o sujeito a lidar com suas emoções, o que é o fundamental para que tenha boa qualidade de vida, já que aquele que não consiga tolerar suas emoções encontrará dificuldade em qualquer que seja a experiência que possa se envolver.
A maturidade emocional está configurada justamente na capacidade de se responsabilizar por si mesmo. A criança percebe que existe alguém que se responsabiliza por ela e assim se sente confiante no campo das experiências. Quando a criança sente que alguém realmente se responsabiliza por ela, não apenas desfruta da proteção na situação atual, mas também tem um modelo para que ela possa aprender a se responsabilizar por si mesma. Sendo assim, a auto-responsabilização passa a ser um atributo da maturidade emocional.
Saber sobre, ou ter um conhecimento intelectual de algo não qualifica um sujeito a ser capaz de realmente viver uma experiência com o que supostamente se imagina saber. O que realmente importa é a disponibilidade para se experimentar da experiência de lidar com aquilo que realmente acontece. Uma coisa é saber sobre algo, outra coisa é ter vivido isso que se supõe saber. Um bom desempenho na experiência, onde seja possível o aprendizado e consequentemente o crescimento depende diretamente da vinculação saudável, que traga respaldo na vivência desse processo e propicie a maturação emocional. 
Até onde é possível se perceber, a configuração da sociedade contemporânea fornece inúmeras garantias que protegem o sujeito de possíveis abusos que possa sofrer no que se refere a serviços e produtos oferecidos ao consumidor, ou ainda, quanto ao empregado, em relação ao empregador. Órgãos governamentais ou não são criados, em defesa do consumidor, assim como do empregado. Uma conquista onde o sujeito se previne quanto a possíveis abusos, no entanto, por outro lado, vai gradualmente estimulando a isenção da autoresponsabilização. Isso obstrui a ampliação da maturidade emocional no desenvolvimento da autonomia da personalidade saudável, com prejuízo na possibilidade de se aprender com a experiência. Com isso, me parece ocorrer um fenômeno mórbido. O sujeito tem desenvolvido grande inteligência para se resguardar com seus direitos e muito pouco se dedica a assumir sua cota de responsabilidade nas experiências.
A vida em sociedade parece treinar as crianças (cada dia mais cedo) para serem empregados e consumidores. Na melhor das hipóteses, a expectativa é que se tornem doutores ou empresários bem-sucedidos. Em contrapartida, a instrução quanto às tarefas de cuidado com os filhos é cada dia mais rara. Quando na realidade, é isso que propiciará o desenvolvimento emocional. Mais rara ainda é a vivência num ambiente onde haja cuidados maternos dedicados e a presença da função paterna até, ao menos, o terceiro ano de vida, o que garantiria o mínimo de chance para se desenvolver a maturação emocional suficiente para se iniciar a experiência de sociabilização.

BION, Wilfred R. Bion’s brazilian lectures. 2 – Rio/São Paulo, 1974. Rio de Janeiro: Imago, (1974). 


Fone: 17- 991910375