sexta-feira, 9 de outubro de 2020

SOBRE O DESAPEGO


Se é que existem formas de se definir o que é psicanálise, aprender a perder é provavelmente uma delas. Os trabalhos na prática psicanalítica têm a função de lentamente e no tempo de cada um, ir capacitando o sujeito na tolerância às frustrações que é elemento constitucional da experiência do desapego. Tarefa difícil, já que a tendência ao apego é algo inerente ao processo mental desde sua mais remota fase do desenvolvimento. Na primeira infância somos totalmente apegados a aquela que cumpre a função materna. Isso ocorre no que se refere as necessidades mais básicas, como a nutrição, tanto de alimento quanto de afeto. Essa ordem de apegos é vital, sendo que a vida física assim como a mental deve sucumbir na sua ausência. Além disso, mesmo que o bebê ainda não possa perceber, também está apegado àquele que esteja cumprindo a função paterna, no que diz respeito à proteção, provisão, reconhecimento de limites e também na nutrição afetiva. Sendo que a falha na possibilidade dessa ordem de apegos pode acarretar em prejuízos severos no desenvolvimento da personalidade. 


Ainda assim, não é somente no âmbito constitucional que nos vemos apegados, mas é possível reconhecer certa tendência ao apego de tudo que de alguma forma possa trazer benefícios. Até mesmo sem que seja possível ter consciência desse ganho. Existe uma tendência que leva a nos apegar às pessoas e coisas mesmo sabendo que nos prejudicam, tendo grande dificuldade para nos desapegar. Existe uma tendência a nos apegamos no passado (e também ao futuro), ao ponto de ficarmos impedidos de viver o presente. Apegamo-nos ao que supostamente sabemos, sustentando esse conhecimento como verdade, chegando mesmo a nos perder em discussões infecundas, tentando provar essa veracidade ou mesmo tentando convencer ou outro disso. Prendemo-nos em coisas materiais e ao dinheiro, imaginando que com isso seja possível suprir falhas naquilo que somos, ou mesmo nas incapacidades afetivas. “Chegamos a nos apegar não só ao que é prazeroso, mas podemos nos apegar a aquilo que nos faz sofrer, ou nos coloca em perigo, numa tentativa de sabotagem contra nós mesmos, ou mesmo num esforço de autopunição por conta de um possível sentimento de culpa.” (Martino, 2015) Isso parece acontecer justamente por conta da dificuldade em tolerar frustrações. Sem a capacidade de tolerância à frustração não há a possibilidade de se desenvolver o desapego. A intolerância à frustração que é fundamental na convergência ao apego é tema de grande reflexão na psicanálise, sendo que a ampliação dessa capacidade é elemento principal no processo de maturação emocional e na capacitação afetiva. Tratamos da questão do desejo, onde se focaliza um objeto especifico e despreza-se todos os outros. 


A disposição para a expansão da consciência mostra-se subordinada à capacidade de tolerar frustrações na possibilidade de renunciar aos desejos, aprendendo a perder. “Além disso, a busca por tornar-se a si mesmo, que é o fundamento de qualquer que seja a teoria do pensar (como é o caso da psicanálise), inclui a tarefa de aprender a tolerar as coisas doloridas da vida com o mínimo possível de prejuízo na esperança.” (Martino, 2015) 

O desapego é uma experiência desobstrutora para que a vida siga seu fluxo natural. Não está na ordem das escolhas, mas está na perspectiva do acordo que se possa se estabelecer com a realidade que se configura num fluxo constante de transformações. É possível fugir da experiencia do desapego e isso traz a sensação de poder de escolha, no entanto, a realidade, ainda assim estará ali esperando. Podemos adiar aprender a tolerar frustrações, e o apego a realidade material pode ajudar nisso. Mas isso se configura num desacordo com a realidade. “De uma forma ou de outra, ao menos que morra antes, apresentará grande dificuldade, em reconhecer as limitações que, de maneira inevitável, chegarão com o avançar da idade.” (Martino, 2015)


Sendo assim, numa breve pesquisa nos estudos da psicanálise fica clara a importância da capacitação da tolerância às frustrações. Isso talvez se consagre a partir de1911, no texto de Sigmund Freud (1856 – 1939) FORMULAÇÕES SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIO¬NAMENTO MENTAL, claramente inspirado nas intuições de Arthur Schopenhauer (1788 - 1860) e que notoriamente inspirou os escritos de Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979).

“Essa ordem de experiência que conduz à capacitação emocional é de tamanha importância que chego a me questionar se não repousaria aí toda a temática psicanalítica.” (Martino, 2015)

Na prática da clínica psicanalítica, comumente o paciente traz como um grande problema algo que ele está extremamente apegado. E é função do psicanalista proporcionar um ambiente onde haja possibilidades reflexivas de como poderia ser a vida sem aquilo que o paciente tem como tão importante e é objeto de apego.


Uma experiência de quebra do narcisismo, onde se abre o caminho para aquilo que Bion (1966) chamou de mudança catastrófica. A partir de então passa-se a reconhecer a realidade através de outro vértice, em outra abertura, por outra expansão, sem aquilo que tanto se ansiava.