A dificuldade que o
ser humano enfrenta ao lidar com a verdade tem na inveja um grande
representativo. Enquanto invejoso, o sujeito fica impedido de estar de acordo
com a verdade, obstruindo a experiência necessária da busca constante por ela.
O sujeito quando mente nega a verdade, ao passo que a inveja o força a vê-la
com maus olhos.
“Cada novo movimento
de reconhecimento da “verdade”, vem acompanhado por sensações que são agentes
de sentimentos de tristeza, susto, vergonha e inveja.”. (Martino, em Para Além
da Clínica, 2011). O grande problema na procura por estarmos de acordo com a
verdade é que quando se reconhece uma verdade, isso ocorre sempre em detrimento
de uma ilusão.
A manifestação da
inveja é o fator gerador do primeiro homicídio registrado na humanidade,
segundo o livro do Gênesis na Bíblia. “Caim mata Abel e o faz invejoso do seu
próprio irmão.”. (Martino, 2011). Esse fato revela o quão primitivo é esse
sentimento em nossa história. Primitivo, não só na história de nossa raça
(filogênese), mas também, na história de vida de cada um de nós (ontogênese).
1Adão conheceu Eva,
sua mulher, e ela concebeu e
deu à luz Caim, e
disse: “Possuí um homem com
a ajuda do Senhor.” 2
E deu em seguida à luz Abel,
irmão de Caim. Abel
tornou-se pastor e Caim lavrador.
3Passado algum tempo,
ofereceu Caim frutos
da terra em oblação ao
Senhor. 4Abel, de seu lado,
ofereceu dos
primogênitos do seu rebanho e das
gorduras dele; e o
Senhor olhou com agrado para
Abel e para sua
oblação, 5mas não olhou para Caim,
nem para os seus dons.
Caim ficou extremamente
irritado com isso, e o
seu semblante tornou-se abatido.
6O Senhor disse-lhe:
“Por que estás irado? E
por que está abatido o
teu semblante? 7Se praticares
o bem, sem dúvida
alguma poderás reabilitar-te.
Mas se precederes mal,
o pecado estará à tua porta,
espreitando-te; mas,
tu deverás dominá-lo”. 8Caim
disse então a Abel,
seu irmão: “Vamos ao campo.”
Logo que chegaram ao
campo, Caim atirou-se
sobre seu irmão e
matou-o. (Gn 4,1-9).
Sigmund Freud (1856 –
1939) havia alertado para a presença da inveja inerente à fase fálica do
desenvolvimento psíquico em seus TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE de
1905, “onde, segundo ele, a criança vive a fantasia de que todo ser humano
possui pênis.”. (Martino, 2011). O problema do reconhecimento do órgão genital
feminino por conta de sua disposição anatômica interna propicia à menina viver
certa inveja do pênis. Freud retoma o assunto em suas NOVAS CONFERÊNCIAS
INTRODUTÓRIAS SOBRE PSICANÁLISE, quando afirma que as meninas:
“Sentem-se injustiçadas, muitas vezes declaram
que querem ‘ter uma coisa assim, também’, e se tornam vítimas da ‘inveja do
pênis’; esta deixará marcas indeléveis em seu desenvolvimento e na formação de
seu caráter, não sendo superada, sequer nos casos mais favoráveis, sem um
extremo dispêndio de energia psíquica.” (Freud, 1932).
No entanto, mais tarde
Melanie Klein (1882-1960), expande esse tema com muita propriedade em sua obra
INVEJA E GRATIDÃO, publicada em 1957. Klein propõe que a inveja é vivida
originalmente na primeira fase do desenvolvimento emocional, onde a realidade do bebê
limita-se na experiência primitiva entre ele e a mãe. “Segundo Klein o bebê
inveja a mãe por ela ser capaz de proporcionar a ele algo que ele não seria
capaz de fazer sozinho.” (Martino, em O LIVRO DO DESAPEGO, 2015). São
satisfações de necessidades imperiosas para viver, da qual ele não consegue
prover por si mesmo. Assim, a inveja revela-se elemento natural do
desenvolvimento psíquico e que mediante à um cuidado dedicado da mãe, deve
evoluir para modelos mais amadurecidos de funcionamento mental.
Por fazer parte do
processo natural do desenvolvimento e como é próprio dos sentimentos, também
com a inveja não existe escolha quanto a sentir ou não, tão somente se sente.
De tal modo, a partir de então, conforme as experiências bem ou mal sucedidas,
pode se tomar consciência disso, ou não. Os possíveis desfechos que se possa ter
a partir da experiência de se sentir inveja, estão ligados ao grau de
desenvolvimento da maturidade emocional, que por sua vez depende diretamente da
capacidade de tolerar frustrações, na tomada de consciência.
Quanto maior for a
capacidade de tolerar o desconforto gerado pela falta, tanto maior a disposição
para a tomada de consciência da realidade.
Klein faz uma
distinção entre inveja, ciúmes e voracidade e descrever a inveja como sendo “um
sentimento raivoso de que outra pessoa possui e desfruta algo desejável- sendo
o impulso invejoso o de tirar este algo ou de estragá-lo." (Klein,1957).
Ainda assim, gostaria de expandir esse pensamento, separando a inveja (quando
ainda não consciente) em duas etapas, onde o segundo estágio pode seguir, por
sua vez, duas outras vertentes. A inveja parece ser marcada pela admiração que
se possa ter por alguém, em seus atributos, sem que se acredite ser possível
desenvolver em si próprio essas qualidades admiradas.
Essa experiência de
admiração sem capacidade me parece caracterizar-se como uma primeira fase. Daí
por diante alguns prováveis desenlaces podem ocorrer, numa segunda fase da
experiência.
Seguindo a semântica
da palavra, do latim, invídia, do "ver" (videre), desenvolve-se a
depreciação do objeto admirado, no olhar torto, ou ainda, num mau-olhado. Na
tentativa defensiva de se livrar do sentimento desconfortável de desejar
(necessitar) muito algo, do qual não se acredite ser capaz de conseguir por si
mesmo, o sujeito, então tomado pelo ódio, menospreza o valor disso. Com isso se
apazigua a sensação desconfortável.
Depreciar o objeto desejado atenua a inveja
do incapaz. A crítica, muitas vezes com a pretensão de ser construtiva é um bom
exemplo disso. Por outro lado, como que numa paixão cega, pode haver a
tentativa voraz de sugar tudo que o objeto admirado tenha de bom. No intuito de
esvair, esgotando o objeto de tudo que seja desejável, mas que pareça
inalcançável por si só. “Ao internalizar o seio tão vorazmente que na mente do
bebê o seio se torna inteiramente posse sua e por ele controlado, o bebê sente
que tudo de bom que ele atribui ao seio será dele próprio. Isso é usado para
contrabalançar a inveja.” (Klein, 1957). A bajulação é um exemplo disso, no que
popularmente chamamos de puxa-saco. Assim como na crítica, por de trás da bajulação esconde-se a inveja. Quando a inveja acomete o sujeito que não é capaz de percebê-la e com isso responsabilizar-se por esse sentimento, deve ocorrer a repressão, resultando ou na depreciação ou na voracidade. Fica claro que essas duas situações são permeadas pela incapacidade de tolerar a frustração gerada pela ausência do que se necessita ou deseja.
Na possibilidade da
tomada de consciência, abre-se um terceiro caminho no desenlace da experiência
da inveja. Ao se tomar consciência do sentimento, existe a oportunidade de
expansão da inveja em modelos mais nobres de elaboração mental. No entanto, a
qualidade do vínculo que se possa estabelecer com o sujeito invejado é
fundamental para que seja possível esse desenlace da experiência. Quando se
admira alguma característica em alguém, pode se estabelecer um vínculo onde, a
partir do desenvolvimento do amor e da sinceridade, o sujeito pode passar
a desenvolver essa capacidade, ora invejada, ou ainda pode se estabelecer certa
parceria, onde um deve auxiliar o outro naquilo que ele não seja capaz de fazer
sozinho. Assim, se desenvolve a gratidão, que deve estar sempre permeada pela
generosidade. A inveja está para a capacidade de gratidão como pólo oposto,
enquanto indicativo na escala evolutiva da maturidade emocional.
“A culpa, quando pode
contar com acolhimento, tem maior chance de converter-se em responsabilização,
assim como a inveja, ao contar com o acolhimento, é convidada, na ocasião do
reconhecimento, a converter-se em gratidão.”.
(Martino, em O LIVRO DO DESAPEGO, 2015).
Mas, a inveja está
longe de ser uma característica individual, sendo então um atributo do vínculo,
que só irá manter-se na relação em que as partes compartilhem desse sentimento.
Mesmo que seja no vínculo consigo mesmo, numa inveja de si mesmo.
Quando a continência
necessária que o bebê precisa não é cumprida pelo ambiente acolhedor (mãe), a
tendência à desintegração se torna predominante e isso pode gerar severa
fragmentação da personalidade. Uma parte do eu pode se voltar contra a outra
impedindo as oportunidades de realização. Na ocasião de uma parte ter sucesso,
logo a outra passa a depreciar, desvalorizando e neutralizando a alegria pelo
provável sucesso. Num movimento de destrutividade contra si mesmo, onde uma
parte inveja o sucesso da outra. De qualquer forma, por se tratar de um
atributo vincular, o invejoso e o invejado devem compartilhar da inveja, caso
contrário esse quadro deve se dissolver. Wilfred R. Bion (1897 - 1979) alerta
sobre isso quando propõe que: “Inveja gera inveja, e essa emoção
autoperpetuante finalmente destrói, tanto o hospedeiro como o parasita. Não se
pode atribuir inveja a uma parte ou outra; na realidade ela é uma função da
relação.”. (Bion, em ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO, 1970).
Uma mulher que quando
criança possa não ter recebido a dedicação necessária e tenha sentido que foi
privada dos cuidados por parte de sua mãe pode ter sua inveja potencializada.
Essa mulher hoje, ora sendo mãe, pode sentir inveja (mesmo que inconsciente) de
seu filho e negligenciar os cuidados à ele, estendendo assim a inveja para a
próxima geração. Tendo como pressuposto que a inveja é elemento constitucional
da vida do bebê, já que a mãe possui tudo que ele necessita e deseja, essa mãe
deve ser idealizada e a falta da satisfação esperada pelo bebê será
interpretada por ele como sendo uma expressão de maldade da mãe, gerando assim,
a inveja.
O sujeito invejado só
pode ser atingido pelo invejoso, tanto com as tentativas de depreciação, quanto
nas tentativas vorazes de ser esvaído por ele, através do interesse que se
possa conservar no que o invejoso sente ou pensa. Na medida em que o sujeito se
desinteressa pela relação, a inveja perde a força até se desfazer.
BÍBLIA CATÓLICA. Versão eletrônica 1.0,
2005.
Bion, W. R. ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1970)
Bion, W. R. ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1970)
Freud. S. NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS SOBRE
PSICANÁLISE Vol. XXII(1933 [1932])
KLEIN. M. INVEJA E GRATIDÃO. Rio de
Janeiro: Imago Edi¬tora, 1957.
MARTINO, Renato Dias. PARA ALÉM DA
CLÍNICA.Renato Dias Martino - 1. ed. São José do Rio Preto, São Paulo: Editora
Inteligência 3, 2011.
_____ . O LIVRO DO DESAPEGO, 1. ed. São
José do Rio Preto, SP : Vitrine Literária Editora, 2015.
Fone: 17991910375
prof.renatodiasmartino@gmail.com
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Um comentário:
Eu poderia pensar que a Inveja também poderia contribuir com as minhas conquistas, quando eu atravessado pela conquista do outro, sentindo-me inferior, produzo algo similar?
Poderia dizer que a maioria do que se conquista é originado da inveja, visto que segundo sua afirmação, é constitutiva dos sentimentos humanos?
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