Frente a tomada de
consciência que nos coloca de acordo com a realidade, a esperança parece ser
recurso fundamental. Uma vez que essa experiência inclui o reconhecimento da
vulnerabilidade da vida frente ao mundo. Sendo assim, a esperança aparece como
importante expediente para que não se caia no desespero. Cada experiência de
consciência, que leve à quebra do narcisismo, no deslocamento da posição que se
ocupava e se desfrutava de poder ou proteção, para outra disposição menos
favorecida, obriga o sujeito a se apoiar em algo para que não desista
definitivamente da caminhada.
Os golpes sofridos devem, entanto, contar com uma
cota de esperança para que seja possível enfrentar a busca por novos modelos.
Assim como em 1917, no texto UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE, onde
Sigmund Freud (1856-1939) levantou grandes desilusões sofridas pela humanidade,
ao longo da história, que configuram-se feridas narcísicas. Esses
desapontamentos careceram de esperança para serem superados.
Por maior que seja a
segurança trazida pela ciência, nos avanços da tecnologia, esta mesma
tecnologia presta-se a revelar, através de seu aparato, a magnitude de nossa
vulnerabilidade frente à natureza e ao mundo. Isso pode ser percebido de modo
macro, na imensidão infinita do espaço, que guarda grande mistério, sendo de
proporção inimaginável frente a minúscula dimensão do planeta terra.
Também
revela-sena força dos mares e dos ventos, nos desastres naturais, dos quais a
ciência não pode prever e menos ainda dar conta para prevenir grandes desastres.
Acontece também na dimensão micro, como é o caso das doenças físicas das quais
a medicina nada consegue fazer. Mesmo na fragilidade natural do corpo físico,
que ocorre com o avanço da idade. São inúmeras as nuances do mundo material que
revelam o quão vulnerável é o ser humano frente a natureza, requerendo uma boa
cota de esperança para que possa haver manutenção do “continuar vivendo”.
No entanto, esta
verdade não se revela tão somente na dimensão material. A mente guarda
manifestações que se revelam de forma inesperada e foi justamente Freud quem
nos alertou sobre a parte inconsciente do nosso psiquismo. A fragilidade do ser
humano que se revela pela imprevisibilidade do próprio humano, que
frequentemente comete atos violentos, como nos ataques terroristas, muitas
vezes provocando mortes em massa. Ainda, em relação a si mesmo, nos ataques de
autodestruição que muitas vezes o sujeito inflige a si próprio, num intuito de
se auto punir, por supostamente carregar algum sentimento de remorso. Frente ao reconhecimento desses fatos, só
mesmo a esperança parece ser recurso para que não nos desesperemos com as
possibilidades das mazelas.
Nesse contexto exposto
aqui é difícil não reconhecer a esperança como elemento fundamental para
propiciar um fluxo saudável da mente. A palavra esperança vem do verbo latino
SPERARE, que diz respeito a aguardar, esperar. Uma experiência que demanda de
grande tolerância, já que aquilo do que se tem esperança não está subordinado
ao tempo desejado por aquele que espera. A partir da esperança o fato que se
tem expectativa, ocorrerá independente de prazos pré-estipulados e ainda, não
exatamente como se espera ocorrer.
A primeira experiência
que o sujeito tem com a esperança parece acontecer muito cedo. O bebê, quando
nasce traz uma expectativa de mãe, mesmo antes de ter o menor conhecimento
sobre ela. “O bebê espera o seio antes de conhecê-lo e assim vive a primeira
chance de desenvolver a esperança.” (Martino, 2015). A meu ver, isso é o
protótipo do que irá se manifestar como esperança no adulto. Na medida em que
essa expectativa é suprida de forma suficiente, abre-se a primeira
possibilidade da configuração da esperança em tudo mais que a vida proporá. “A
mãe apazígua a angústia do bebê trazendo a esperança de que ele sobreviva e
essa é a questão imprescindível para que seja capaz de sonhar.”. (Martino,
2015).
Essa afirmação está apoiada no fato de que, na primeira infância
acontecem os registros mais marcantes, que definirão a maior parte das
características da personalidade.
Com isso revela-se o
fato de que a possibilidade de se desenvolver a real capacidade de esperança
deve acontecer, assim como ocorre entre mãe e bebê, através do estabelecimento
de vínculos que possam fornecer confiança. Aprender a confiar gera a esperança
e isso tem um pressuposto na capacidade de tolerar frustrações. Sem um vínculo
saudável o que se forma é simplesmente ilusão, que muitas vezes pode ser
confundida com esperança. Por mais que aquilo do que se tem esperança ainda não
tenha se realizado, mesmo assim, deve encontrar-se na ordem do que
é razoavelmente admissível. Nisso se difere da ilusão, que está distante do que
é provável.
“A saber, a ilusão é
talvez a pior forma de se esperar por algo, pois não conta com experiências
saudáveis com a realidade nessa expectativa; sendo que a melhor maneira de se
esperar por algo é pela esperança, naquilo que, apesar de estar fora do real,
se encontra dentro do possível.”. (Martino, 2015).
A esperança depende da
capacidade de tolerar frustrações e sincronicamente é geradora da expansão
desta mesma capacidade, num processo de retroalimentação para a ampliação. O
desenvolvimento da capacidade de esperança é fator fundamental no rebaixamento
da ansiedade gerada pelo desejo. E se aqui apoiamos a hipótese de que o medo é filho
do desejo, aquele que conserva esperança deve ser menos acometido por medos
infundados. Assim como no fato passado existe uma diferenciação entre uma
simples memória, que não passa de dados armazenados nos compartimentos mentais,
de uma recordação que é uma lembrança rica de amor, também existe uma distinção
sobre o fato futuro, entre as expectativas ilusórias, baseadas num desejo
egoísta, da esperança que é o que permite a tolerância necessária para que a
vida siga seu fluxo natural de expansão. A esperança do qual tratamos aqui não
diz respeito a esperar algo especifico, como acontece na expectativa do desejo,
mas sim, ser capaz de esperar que a vida siga seu andamento, antes de
antecipar-se e intervir no desenvolvimento do tempo natural das coisas. Nisso a
esperança passa a ser elemento fundamental da contemplação.
Um correlativo da
esperança é a fé. Enquanto a esperança está pautada no tempo futuro, libertando
da ânsia do desejo desmedido, a fé relaciona-se com o tempo presente e diz
respeito à confiança na existência de algo que não pode ser confirmado pelo
aparato sensorial. Esse termo vem do Latim FIDES e significa confiança, ou ainda
crença. Não é possível saber sobre o tempo presente, o que é possível é apenas
ter conhecimento parcial daquilo que já passou. No tempo presente só se pode
“estar sendo” e nunca “saber sobre”. Por conta disso o ato de fé passa a ser
fundamental para que não se evada tanto para o passado através das memórias
sobre o que já passou, quanto para o futuro através do desejo do que será.A
capacidade de fé ainda proporciona o reconhecimento de que as adversidades têm
um propósito nobre na função de propiciar aprendizado.
O conceito de fé é
quase sempre mal visto quando se trata da perspectiva científica. Um cientista,
usualmente não se prende a essa ordem de estados da mente, pois segue os
critérios do que é cientificamente comprovável,com rigor e objetividade. O
cientista, habitualmente se apóia em condições onde predominem o racional, num
saber acumulativo, relacionados à investigação metódica. Essa razão ainda deve
estar no domínio decerta lógica da experimentação e averiguação, de outra
maneira será enquadrada, não como informação científica, mas como conhecimento
filosófico.
Arthur Schopenhauer
(1788-1860) deixou um trabalho que foi publicado em 1860, somente após sua
morte, onde descreve sua visão quanto a fé.
“A fé e o saber não se
dão bem dentro da mesma cabeça: são como o lobo e o cordeiro dentro de uma
jaula; e o saber é justamente o lobo, que ameaça devorar seu vizinho.O saber é
feito de uma matéria mais dura do que a fé, de modo que, quando colidem,a
última se quebra.” (Schopenhauer, em A ARTE DE INSULTAR, 1860).
Apesar da relação usual
da ciência com a fé, Wilfed R. Bion (1897 — 1979), em sua obra ATENÇÃO E
INTERPRETAÇÃO de 1970, introduz a fé como elemento fundamental na prática do
analista. Para Bion enquanto memórias e desejos não são bem vindos na prática
clínica, à fé de que existe uma realidade última é de fundamental importância
para o psicanalista. A fé na verdade que se configura infinita, desprovida de
forma e que, justamente por conta disso, não podendo ser alcançada pelo
conhecimento, somente será alcançada pela fé. É possível saber sobre ela, mas
não conhecê-la. Não pode ser reduzida a nada; não há qualquer conceito que possa
defini-la relativamente, nenhuma categoria pode ser abrangente o suficiente
para contê-la.
No entanto, Bion
orienta que para que se possa atingir este estado de mente é necessário alguma
renuncia por parte do analista. “O primeiro ponto é o analista impor a si mesmo
uma disciplina positiva de evitar memória e desejo. Não quero dizer com isso
que seja suficiente “esquecer”: é necessário um ato positivo de abstenção de
memória e desejo.” (Bion, 1970). Isso corresponde a busca por certa purificação
da percepção da realidade, que permite o desenvolvimento da capacidade de
alcançar o não sensorial. A realidade última da qual Bion se refere é
representada pelo símbolo “O” e é inerente aos objetos dos quais a consciência
tem contato pelas funções mentais derivadas do sensório, mas que está para além
dessa dimensão da percepção. Por conta disso,na relação com “O” requer-se fé
para se alcançar.
A despeito da visão
usual dos cientistas comuns o “ato de fé”, segundo Bion, “trata-se de uma
afirmação científica, pois para mim “fé” é um estado de mente científico e deve
ser reconhecido como tal.”. (Bion, 1970).
Entretanto, essa “fé” configura-se na
ausência de restos de memória e desejo. Ainda assim, por mais que seja
necessário estar desapegado do aparato sensorial, que por sua vez, está
subordinado à memória e ao desejo, a memória e o desejo devem contribuído com
elementos para a formulação do conhecimento sobre a realidade última, na
transformação de “K” (knowledge = conhecimento) para “O” e de “O” para “K”.
O termo ciência tem
origem no Latim SCIENTIA e quer dizer “conhecimento”, de SCIRE, “conhecer,
saber”. Comumente, a pesquisa científica tem a conotação da busca pela verdade
através do domínio da razão. No entanto, estando a realidade para além da
racionalidade a ciência deve ir para além do paradigma da razão para que seja
possível ingressar no acordo com a realidade. Para tanto, o ato de fé, no estado
intuitivo gerado pela renuncia de memória e desejo é fundamental. Na dedicação
em sua pesquisa, a realidade pode ser percebida e reconhecida. Sabemos que ela
existe, mas não podemos conhece-la. A realidade não pode ser dividida,
configura-se na totalidade. O método usado pela ciência no intuito de
compreender seu objeto de estudo é o de análise e para isso deve dividir esse
objeto, o desvinculando do todo. Assim, as partes tornam-se inteligíveis à
ciência tradicional,do conhecimento humano.
“Para tanto, é
necessário dividir o tempo num período estipulado, enquanto na verdade
encontra-se na dimensão do eterno, assim como é preciso dividir o espaço, que
na realidade configura-se na dimensão do infinito, para que seja possível a
compreensão, já que o conhecimento não consegue abranger tais dimensões da
realidade.”. (Martino, em Psicanálise do Acolhimento Vol. 1, 2017).
Penso ser importante
salientar que, apesar de Bion diferenciar o “ato de fé”, atribuído a
metodologia científica, do significado religioso, as formulações religiosas
devem contribuir muito mais que as formulações das exatas, assim como coloca em
sua obra Transformações. “Ainda assim, os enunciados religiosos mais atendem
aos requisitos de transformações em O, que os da matemática.”. (Bion, 1965).
Ora, se o cientista critica a fé como inadequada deve então excluir da ciência
grande parte da vida e d reconhecimento da própria realidade. Não é incomum que
tais cientistas critiquem a psicanálise por não ser ela um método científico.
Mas com a ajuda de Bion, é possível observar que da mesma forma, um artista
pode não reconhecer a psicanálise como arte e também o religioso reconhecê-la
como não- religiosa. São questões inabaláveis, já que cada representante de sua
classe pode reconhecer características que julgue invalidar, apesar de a
psicanálise não ter o compromisso de ser nenhuma dessas coisas, deve então,
nutrir-se de todas essas áreas do pensamento humano. O grande problema surge
quando a aplicabilidade do método psicanalítico descaracteriza-se a ponto de
“não ser psicanálise”.
Bem, a psicanálise
necessita da ciência, precisa de uma determinação no tempo e no espaço. Toda
infra-estrutura que fornece aparato material para o psicanalista é graças a
ciência e a tecnologia. A possibilidade de comunicar as teorias psicanalíticas
nas publicações é mérito da ciência. Mas, o fato de a psicanálise
estar subordinada à realidade última, é o que traz o questionamento de não ser
ela cientifica. “Isso não significa que o método psicanalítico não é
científico, mas sim que o termo ‘ciência’, como tem sido comumente usado até
agora para descrever uma atitude para com os objetos dos sentidos, não é
adequado para representar uma abordagem daquelas realidades com as quais a
“ciência psicanalítica” tem que lidar.”.
(Bion, 1970).
Na realidade, a ciência
esbarra em inúmeras variáveis, que podem obstruir o reconhecimento da
realidade. Existem conveniências para que a pesquisa da verdade seja obstruída.
Fortunas de indústrias se sustentam por conta de ilusões que são alimentadas. A
dificuldade na tolerância, é um grande motivos. A maior dificuldade no
reconhecimento da realidade e a incapacidade em tolera-la. Se manter ignorante
traz inúmeros benefícios. Um sujeito ignorante é, sem dúvidas, muito mais
feliz. Assim com lê-se em Eclesiastes, 1-18: “Porque quanto maior era a minha
sabedoria, maiores eram as minhas preocupações; aumentar os conhecimentos
apenas traz consigo aumento de aflições.”.
Prof. Renato Dias Martino
Fone: 17-991910375
prof.renatodiasmartino@gmail.com
http://pensar-seasi-mesmo.blogspot.com.br/
Fone: 17-991910375
prof.renatodiasmartino@gmail.com
http://pensar-seasi-mesmo.blogspot.com.br/
Bíblia
Sagrada. Editora. 1991.
Bion. W. R.
ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO(1970). Imago, Rio de Janeiro, 1991.
_____ . As
Transformações (1965). Imago, Rio de Janeiro, 1991.
FREUD, S. Uma
dificuldade no caminho da psicanálise (1917). Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas de S. Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1995,Volume XVII.
MARTINO,
Renato Dias. O LIVRO DO DESAPEGO - 1. ed. -- São José do Rio Preto, SP: Vitrine
Literária Editora, 2015.
_______________
PSICANÁLISE DO ACOLHIMENTO VOL. 1, 1. ed. São José do Rio Preto, SP: Vitrine
Literária Editora, 2017.
Schopenhauer,
Arthur, 1788-1860. A ARTE DE INSULTAR / Arthur Schopenhauer: organização e
ensaio de Franco Volpi. — São Paulo: Martins Fontes,.2003.— (Breves encontros).
Título original: Die KunstzuBeleidigen. "Tradução: Eduardo Brandão
(italiano) e Karina Jannini (alemão) Bibliografia. ISBN 85-336-1803-4. 1.
Nenhum comentário:
Postar um comentário