quarta-feira, 28 de agosto de 2019

AUTO SABOTAGEM: Sobre o Desejo de Fracassar


São inimagináveis os possíveis desdobramentos dos elementos que constituem os processos mentais. Por mais que nos dediquemos em estudos aprofundados, sempre seremos grandes ignorantes do que realmente ocorre no funcionamento psíquico. A lógica da vida cotidiana não se aplica às formulações do universo psíquico. Muitas vezes o que somos capazes de tomar conhecimento sobre o que ocorre na mente é simplesmente uma pequena nuance do que ocorre realmente. Alguns funcionamentos são tão estranhos que nos parecem absurdo. A auto sabotagem é uma experiência desse tipo, onde parece haver uma incongruência dentro do funcionamento emocional. A partir do senso comum, como conceber a ideia de que um sujeito possa desejar mal a si mesmo? Na realidade, tudo aquilo que somos capazes de entender guarda por trás de si, um complexo sistema do qual não está acessível ao nosso conhecimento. No caso da auto sabotagem, uma estrutura é criada não permitindo ao sujeito funcionar de forma diferente, a não ser que alguma experiência emocional reparadora possa ocorrer para mudar o curso dos acontecimentos. 
A intolerância às frustrações está na ordem dos motivos para um sujeito induzir-se ao fracasso. Um sujeito que sabota a si próprio, pode estar fazendo por medo de perder aquilo que eventualmente possa conseguir. Por não tolerar o desconforto da falta, o sujeito pode não se dedicar a realizações. Assim, por medo de perder a coisa boa, o sujeito fica com o que há de pior. No entanto, estar sendo bem-sucedido não se encerra na obra do realizar, mas na possibilidade de dar manutenção ao que se realiza. Assim, a incapacidade de se responsabilizar por aquilo que se realizou, também é um fator que pode levar alguém ao fracasso.
No entanto, não é só a dificuldade em se responsabilizar que pode estar implicada nesse processo, mas o sentimento de culpa cristalizado e reprimido pode gerar remorso e também conduzir a alguém a prejudicar a si próprio. O sujeito pode crer que tenha cometido alguma grave falta, desenvolvendo assim um sentimento de não merecimento, podendo levá-lo a buscar punir a si mesmo. Isso pode se manifestar como tentativas de sabotar a si próprio, onde ele passa a obstruir seu próprio caminho em suas realizações, tornando-se um fracassado. Atentando contra si mesmo, podendo até levá-lo ao suicídio. No sujeito que se sente culpado, o medo do sucesso é maior que o medo do fracasso.
Na clínica psicoterapêutica, pacientes que carregam grande culpa, são de difícil manejo, isso quando procuram tratamento. Por se sentir culpado, o sujeito inundado pela culpa, acredita que merece padecer e permanecendo assim, cria grandes resistências, não permitindo ser ajudado. Se julgando merecedor da doença, obstruído está o caminho para restabelecer a saúde. Vive um caos interno de autoacusações, do qual ajuíza ser merecedor. Nesse caso, quanto mais inteligente a pessoa for, tanto mais perigosa se torna a experiencia. Torna-se possível arquitetar inteligentemente inúmeros artifícios extremamente bem articulados para se auto punir. Quando não se está em paz consigo mesmo, o conhecimento que se possa ter, volta-se contra si próprio. Amiúde procura qualquer que seja a oportunidade para castigar a si mesmo. Encara cada dificuldade como sendo uma confirmação de sua penitencia. Para aquele que se sente culpado, toda adversidade é vista como punição.
Em 1917, Sigmund Freud (1856 – 1939) chama a atenção para a forma de funcionar daquele que tenha vivido uma perda significativa em relação à algo do qual não tenha tido a chance de se desapegar emocionalmente o suficiente. Freud denomina esse quadro de melancolia. Por conta de certa relação de extrema amarração, estabelece um vínculo ambíguo com o outro, onde depende, mas deseja não depender. Idolatra o outro por depender dele, mas o odeia por desejar a independência. Por conta da culpa por odiar aquele do qual depende, o melancólico se vê como sendo desprovido de valor, e se sente alguém desprezível. “Vemos como nele uma parte do ego se coloca contra a outra, julga-a criticamente, e, por assim dizer, toma-a como seu objeto.” (Freud, 1917). O vínculo que vivera com o objeto perdido não pudera evoluir para formas mais nobres do amor e se mantivera num modelo de submissão.
Portanto, a experiência afetiva é o que permeia qualquer que seja o processo psíquico e nesse caso não é diferente. A experiência de ser amado e a partir daí aprender a amar a si mesmo. Então, pela extensão do amor próprio aprende-se a amar o outro, isso configura a essência da vida psíquica saudável.
Por outro lado, a ausência do vínculo de amor e sinceridade, pode comprometer o desenvolvimento da personalidade, gerando danos difíceis de reparar. O sujeito que não tenha sido nutrido de amor e sinceridade, num vínculo de reconhecimento, pode desenvolver outra forma de conseguir atenção, ainda que essa forma desenvolvida não seja muito saudável. 
Por não ter conseguido ser amado, pode desenvolver o fracasso como meio de receber a atenção do outro que sente dó. Então, como não conseguiu ser reconhecido e amado, apela para a piedade do outro como última esperança de obter atenção. Não consegue acreditar (e muitas vezes isso realmente está longe de ser possível) que consiga desenvolver atributos que possam ser admirados pelo outro. Nunca foi amado e hoje não consegue ser amável. 
É óbvio que o olhar de pena não atende aos requisitos da demanda de amor, no entanto, o sujeito não tem escolha, enquanto na carência do olhar do outro.
Por se perceber nessa configuração o sujeito desenvolve ódio em relação a si mesmo. Sente-se alguém desprezível e muitas vezes, projeta esse sentimento no outro, que acaba convencido disso também. Aquele que conserva ódio voltado a si mesmo não pode se achar merecedor de qualquer sucesso. Não sendo capaz de dar chance para si próprio, não conseguirá oportunidade advinda de qualquer outra pessoa.
Em última análise, temos um problema de raízes muito primitivas, já que o amor próprio tem início no instinto de autopreservação. “Esse quadro de um delírio de inferioridade (principalmente moral) é completado pela insônia e pela recusa a se alimentar, e – o que é psicologicamente notável – por uma superação do instinto que compele todo ser vivo a se apegar à vida.” (Freud, 1917).
No entanto, se existe alguma esperança, esta se encontra na possibilidade da configuração de um ambiente emocional de acolhimento, onde o sujeito possa se dispor suficientemente a ser acolhido. “A culpa, quando pode contar com acolhimento, tem maior chance de converter-se em responsabilização, assim como a inveja, ao contar com o acolhimento, é convidada, na ocasião do reconhecimento, a converter-se em gratidão.”. (Martino, 2015).
Num vínculo saudável as experiências emocionais reparadoras passam a ser possíveis, na criação de recurso para lidar com possíveis faltas e falhas.








Freud, S. 1917, LUTO E MELANCOLIA, em OBRAS PSICOLÓGICAS COMPLETAS - Edição Standard Brasileira, IMAGO (1969-80).
Martino, R. D. 2015, O LIVRO DO DESAPEGO - 1. ed. - São José do Rio Preto, SP: Vitrine




Fone: 17- 991910375







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