quinta-feira, 17 de outubro de 2019

O DESEJO QUE CEGA E A FERA NA JAULA EM “U”

O desejo que move o humano em direção às coisas do mundo é mesmo desejo que o cega para as possibilidades assim como obstrui o caminho para o reconhecimento da realidade, que se configura independente de suas expectativas. Expectativas que podem se manifestar tanto como vontade quanto como desejo. A vontade, assim como bem nos orientou Arthur Schopenhauer (1788-1860) em sua obra O MUNDO COMO VONTADE E COMO REPRESENTAÇÃO publicada em 1819, é inerente ao corpo, única forma de ser parcialmente conhecida. 


“Não conheço minha vontade na sua totalidade; não a conheço na sua unidade mais do que a conheço perfeitamente na sua essência; ela apenas me aparece nos seus atos isolados, por consequência no tempo, que é a forma fenomenal do meu corpo, como de todo objeto: além disso, o meu corpo é a condição do conhecimento da minha vontade.” (SCHOPENHAUER, 1819).

Sendo assim, a “vontade” é referente à necessidades básicas, instintivas sobre a qual o que se pode fazer é somente se aprender a adiá-las para que haja melhor adequação da satisfação. Já o “desejo” é uma formação da vontade contaminada pela influência externa. “No humano esse desejo (necessidade) se mistura com resquícios de experiências malsucedidas do desenvolvimento emocional, que se iniciam numa expectativa inata do encontro com o outro.”. (Martino, 2015).
Enquanto a vontade se manifesta em cada criatura desse mundo, o desejo parece ser próprio do humano que é diretamente influenciado pelo outro humano. Quanto a isso Wilfred Bion (1897 – 1979) nos alerta revelando que “Os desejos distorcem o julgamento através da seleção e supressão de material a ser julgado.” (Bion, 1967). Bem, diferente da vontade, que na melhor das hipóteses pode ser adiada, o desejo pode ser renunciado e a ampliação dessa ordem de renuncias nos coloca em acordo com a realidade.
Numa cruel experiência, pesquisadores puderam revelar o poder destruidor da vontade. Foi colocado um tigre faminto, que havia sido privado de se alimentar por vários dias, numa jaula em formato de “u”. Uma farta peça de carne fresca foi disposta bem em frente ao painel frontal da jaula. Contudo, o suculento pernil de cordeiro teria sido arranjado de uma forma onde a esfomeada criatura não pudesse alcançar. Mas, ainda assim, a parte de carne se encontrava próxima o bastante para que a fera se esmagasse, insistindo em investir repetidas vezes contra a grade, na tentativa de agarrar o objeto que saciaria sua avassaladora vontade. 
No polo oposto de onde se encontrava a porção de carne existia uma extensa abertura. Nos fundos do confinamento, uma larga abertura dava à grade o formato da letra “u”. Porém, tão sedenta pela refeição a fera não conseguia sequer olhar para trás e perceber que a jaula estava aberta às suas costas. Diferente disso o tigre mantinha-se se esticando, e debilmente persistindo em seu alvo. Sua condição de privação o deixou sem poder tolerar o mínimo necessário para enxergar a saída que estava no caminho oposto de sua desesperada vontade.
Essa fictícia metáfora sugere a satisfação da necessidade de nutrição representada pela fome do tigre. Ele teria sido obrigado a ficar sem se alimentar por longo período e isso gerou nele uma cegueira para tudo que não fosse seu objeto de satisfação. Pensemos então na situação da privação do olhar reconhecedor, na impossibilidade de satisfação da necessidade de reconhecimento. Enquanto o corpo necessita de comida, a personalidade precisa de reconhecimento através do amor e da verdade. Quando somos reconhecidos pelo olhar sincero e amoroso do outro, construímos, nesses mesmos moldes a noção de verdadeiro eu, e o eu se nutre disso.
Viver em condição de privação do olhar reconhecedor tem consequências análogas. Uma personalidade desnutrida e por conta disso intolerante, torna-se incapaz de refletir possibilidades e estabelecer um acordo com a realidade. Incide a intransigência impedindo o olhar para qualquer outra direção que não seja a aprovação do outro.  A arrogância talvez seja a característica mais marcante do empobrecido da personalidade que mostra especial rigidez nas ideias, sendo que a inflexibilidade impede qualquer chance de aprender com as experiências.



BION, W.R. (1967) NOTAS SOBRE MEMÓRIA E DESEJO. In Melanie Klein Hoje. Vol. 2, trad. B. P. Haber. Rio: Imago, 1990.
MARTINO, Renato Dias.O LIVRO DO DESAPEGO – 1ª ed. São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2015.
SCHOPENHAUER, A. (1819) O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. 









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