O ser humano é uma criatura capaz de assimilar conhecimento, de saber sobre os fenômenos e coisas do mundo. É capaz, ainda de passar o que supostamente conheceu, aos outros e isso o torna um sujeito dito cognoscente. Ainda que isso do qual da o nome de conhecimento seja sempre parcial, já que na verdade, somos grandes ignorantes sobre o que de fato possa ser a realidade. Isso ocorre por que a realidade por si mesma parece não ser suscetível de ser conhecida, mas somente vivida no tempo presente, através do “estar sendo”. Sendo assim, quanto maior for a capacidade de tolerar e reconhecer a ignorância, tanto maior será a possibilidade de aprender com cada experiência vivida com a realidade, que por mais que possa ser registrada e armazenada na memória como saber adquirido, nunca será como a anterior. O que pode ser conhecido é tão somente aquilo que já passou e se já passou, não pode mais ser chamado de realidade. Portando, seria mais adequado o termo reconhecimento, como um ato de conhecer novamente a cada reencontro do que, simplesmente conhecimento, que pressupõe o já sabido e definitivamente conhecido. De qualquer forma, os seres humanos criam certo código do qual comungam entre si, tentando representar o que supostamente possa ser a realidade.
Sigmund Freud (1856 – 1939) cogita em seus TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE, de 1905, sobre o impulso natural pelo conhecimento ou pela pesquisa, no que chamou de pulsão epistemofílica na criança. Do Grego EPISTEME, “conhecimento”, mais PHILOS, “apreço” ou ainda, “amor”. A tendência inata por querer saber, a disposição conatural da busca pelo conhecimento. Freud propõe que essa tendência de investigação está ligada à esfera sexual e que de maneira alguma tem intuitos teóricos, mas sim práticos. Freud ainda enfatiza que são ativados pelo prenúncio de alguma experiência que possa o colocar inseguro em sua posição. Por exemplo, a chegada de um irmãozinho e o medo de que por conta disso não seja mais amado.
Mais tarde Melanie Klein (1882 — 1960), em sua obra PSICANÁLISE DA CRIANÇA, propõe que o conceito de pulsão epistemofílica, associado ao impulso de ver e tocar estão direcionados as tentativas de pesquisa do corpo materno. “Parece que seu primeiro objetivo é o interior do corpo da mãe que a criança considera, antes de tudo, como um objeto de gratificação oral e depois como acena onde tem lugar o coito dos pais e o lugar onde estão situados os bebês e o pênis do pai.” (Klein, 1932) Tudo que é estranho gera enorme insegurança. Para aplacar o desconforto de se sentir inseguro, deve ser de alguma forma dominado e conhecer é uma forma de tentar dominar. Klein propõe que o bebê quer forçar a entrada no corpo da mãe para se apossar dos seus conteúdos, assim como saber o que se passa ali. “Deste modo, seu desejo de saber o que há no interior daquele corpo se associa de muitas maneiras com desejo de forçar um caminho para o seu interior e um dos desejos reforça e toma o lugar do outro.” (Klein, 1932)
No entanto, por mais que Klein proponha uma conotação impulsiva gerada pela epistemofilia, por outro lado, conforme haja certo amadurecimento emocional, a pulsão epistemofílica passa a ter importância, principalmente em relação ao desenvolvimento intelectual da criança. E essa importância está justamente, na possibilidade de adiar a ação. Isso ocorre através do desviado do impulso da ação motora para atividade mental do conhecimento. “Dessa forma, com o auxílio do instinto epistemofílico, o ato substituto pode, por seu lado, ser substituído por atos preparatórios do pensamento.” (Freud, 1909) Em contrapartida, a repressão precoce do “impulso por saber” parece ser muito danosa. O histórico da vida de pacientes que apresentam características obsessivas parece revelar, quase sempre, um precoce desenvolvimento, seguido por uma repressão muito cedo do impulso de olhar e conhecer.
Para Wilfred Bion (1897 – 1979), em sua obra APRENDER COM A EXPERIÊNCIA, de 1962, três formas de vinculação: por amor (L), por ódio (H) e por conhecimento (K) e esse terceiro parece ser oriundo da pulsão epistemofílica. Para Bion, o pensamento humano é epistemologicamente anterior ao pensador, sendo que o antes do bebê tornar-se um ser cognoscente, ele tem uma expectativa intata que por sua vez, gera pré-concepções do que conhecerá posteriormente. O bebê nasce com a expectativa inata do seio e seu instinto de auto preservação o fará procurá-lo para que possa sobreviver. Para Bion, o pensar inicia-se a partir da frustração por não encontrar o seio. Isso ocorre se antes disso, tenha sido possível haver uma serie de experiências bem sucedidas com esse seio. O que o capacitará desenvolver tolerância à frustração da ausência e com isso o levando a pensar sobre o seio.
No andamento da obra de Bion é possível reconhecer três vértices do conhecimento humano, onde parece partir da ciência e da filosofia passando pela estética e pelas artes, expandindo para além, no campo do misticismo e nas formulações religiosas. Numa pesquisa cuidadosa, é possível, perceber certa evolução na ordem desses vértices, onde há uma sucessão que vai do mais saturado na rigorosidade das ciências exatas até o incerto, na possibilidade de abertura para inúmeros sentidos e significados possíveis presente no misticismo. Bion nos deixa uma valiosa contribuição da qual tentarei expandir nesse breve texto.
No âmbito do modelo científico-filosófico, é guardada certa exatidão das palavras, onde o cientista trata o saber de maneira unívoca, admitindo apenas uma interpretação, um único significado; sem abertura para ambiguidades. Porem, mesmo dentro da ciência é possível encontrarmos a abertura para um nível mais evoluído, como é o caso da mecânica quântica a partir dos estudos de Max Karl Ernst Ludwig Planck (1858- 1947). “Na visão geral da mecânica quântica os objetos de estudo são complementares, partículas/ondas, e devem ser interpretados através de probabilidade, onde o espaço e o tempo das partículas são conduzidos pelo princípio da incerteza.” (Martino, 2015) O princípio da incerteza é uma expansão introduzida por Werner Karl Heisenberg (1901-1976), em seu artigo SOBRE O CONTEÚDO INTUITIVO DA CINEMÁTICA QUÂNTICA E MECÂNICA 1927. “É um importante enunciado da mecânica quântica, que revela o fato de que não podemos determinar com precisão e simultaneamente a posição e o momento de uma partícula.” (Martino, 2018) Mas Heisenberg adverte para o fato de que a “boa física é inadvertidamente prejudicada por uma filosofia ruim”, que possam guiar o físico (Heisenberg, 1989). Sendo assim, a qualidade do estudo científico deve ser definida pela qualidade da filosofia que esteja o orientando.
No âmbito filosófico o pensamento pode se expandir pelo amor ao conhecimento, onde o questionamento sobre os fundamentos do que é realidade proporciona maior abertura nas possibilidades. Arthur Schopenhauer (1788 – 1860), apoia que é função do filósofo esclarecer os fenômenos do mundo e propõe que o rebaixamento da vontade (ou ‘negação da vontade’ assim como se encontra na tradução disponível) é fundamental nessa tarefa. “Ele propõe que, através do rebaixamento da vontade, podemos estar de acordo com a realidade última, justamente a dimensão da intuição.” (Martino, 2015) Isso, já que a vontade, ou ainda o desejo, contamina o possível reconhecimento da realidade.
Podemos aqui arriscar um exemplo da aplicabilidade do modelo científico-filosófico na formulação: “A tolerância, quando ausente do reconhecimento do limite converte-se em permissividade”. Poderíamos configurar essa formulação em termos matemáticos da seguinte maneira: “tolerância – limite = permissividade”. Isso forma uma equação que da mesma maneira, pode ser aplicada a formulação sobre a crueldade gerada na tentativa de introdução da verdade quando ausente de amor. No modelo matemático teríamos: "verdade - amor = crueldade". A saber, seu inverso também é verdade, já que o amor, menos verdade, resulta em paixão.
É claro que essas formulações sofrem grande empobrecimento na medida em que são reduzidas a formulas frias e suscetíveis de cálculos. Por conta disso, é prudente que estejam associadas à reflexão filosófica e, além disso, sempre disponível à aplicabilidade nas relações afetivas, onde realmente é possível um acordo com a realidade. Por mais que o modelo das ciências exatas seja fundamental, ainda assim, parece ser uma forma que limita o reconhecimento do real, restringido no âmbito material, exclui aquilo que transcende esse campo. Esse modelo busca certa linguagem unificada que possa representar o conhecimento empírico de forma universal. Isso traz benefícios, mas também traz grandes prejuízos. Isso fica mais evidente ainda quando tentamos aplicar na prática clínica da psicanálise. O próprio Bion alerta para esse fato. “As matemáticas disponíveis não fornecem formulações adequadas ao analista.” (Bion, 1970) Não é pelo fato de não estar disponível aos órgãos dos sentidos, que não exista.
Já no modelo estético-artístico, ocorre um salto onde é possível se utilizar da linguagem poética no âmbito imagético, propiciando certa abertura polissêmica de forma metafórica. Nesse campo, sentimentos e experiências emocionais-afetivas podem ser manifestas, por exemplo, através da uma música, de poesias, da pintura e por ai a fora. Bion propõe, num seminário realizado em Paris, em 1978 e publicado em 1986, que não seria interessante descartar hipóteses imaginativas, justificando que não sejam científicas. Bion compara essa atitude com a de jogar fora sementes de uma planta, com a justificativa de que não se trata de um carvalho ou um lírio. “Isso se aplica a tudo que ocorre no consultório. Mas eu digo que valeria a pena considerá-lo não o seu consultório; e, sim, o seu ateliê. Que espécie de artista é você? Um ceramista? Um pintor? Músico? Escritor?” (Bion, 1986) Para Bion, muitos psicanalistas não são capazes de reconhecer qual tipo de artistas possam ser. Sendo assim, a expressão estetico-artistica parece ser a manifestação mais primitiva das três, já que ao observarmos uma criança é possível perceber que ela canta antes de falar, dança antes de andar e desenha antes de escrever.
Bem, quando é utilizado o vértice místico-religioso ocorre uma expansão onde o sentido não pode ser apreendido pelo aparato sensorial. Ainda assim, empenhamo-nos em expressar esse reconhecimento através do acordo entre os três vértices. Onde ocorra uma concordância, em que um vértice não tenha a função de disputar com o outro, ou ainda, servir de substituição. A proposta da filosofia de Schopenhauer, do rebaixamento da vontade, por exemplo, não é uma ideia original sua, mas é uma antiga proposta presente no cristianismo, nas escrituras védicas, no budismo, assim como de outras formulações religiosas. Nos estudos da mecânica quântica encontramos grande expansão no acordo entre o vértice científico-filosófico e o modelo místico-religioso. Na dimensão estético-artística a contemplação da beleza de algo está subordinada ao reconhecimento da verdade do que se contempla e não ao que se gostaria que fosse. Isso é tratado de maneira cuidadosa e expansiva pelo físico quântico indiano contemporâneo Amit Goswami, propõe em sua obra DEUS NÃO ESTÁ MORTO: Evidências Científicas da Existência Divina existe a possibilidade de trazer à baila a ideia de Deus na ciência no evento do colapso da função de onda.
Bion, talvez tenha sido um dos maiores pensadores dentre os que trouxeram as formulações místico-religiosas para um acordo com os outros vértices do conhecimento humano e o fez através da psicanálise. Bion chamou a atenção para o que denominou “O” da experiência. “Vou usar o símbolo ‘O’ para denotar aquilo que é a realidade última, representada por termos como 'realidade última', verdade absoluta, a divindade, o infinito, a coisa-em-si.” (Bion, 1970) Para Bion, “O” não pode ser conhecido, a não ser de forma fortuita ou imprevisível. “O” é sempre mistério e ausente de contorno, entretanto pode ser apreendido por meio da experiência. Para Bion a formulação de “O” é essencial tanto para a ciência quanto e para a religião. “Os místicos religiosos provavelmente foram aqueles que chegaram mais perto de conseguir expressar a experiência da verdade absoluta.” (Bion, 1970).
Um bom exemplo do acordo que pode ocorrer entre o que é do âmbito místicos-religioso e os outros vértices, está na Bíblia Sagrada do cristianismo, onde nos livros de Mateus 22:37, Marcos 12:30 e Lucas 10:27, encontramos a situação em que um dos estudiosos da lei indaga Jesus, que responde: “amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. ” (Mateus 22:37,38,39). No primeiro mandamento, entende-se por “Senhor”, o “O” da experiência, proposto por Bion, ou ainda, no âmbito filosófico, temos a proposta de Friedrich Nietzsche (1844 -1900), no que chama de “Amor Fati” que significa “amor pelo inevitável”. “Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo – (...) – mas amá-lo...” (Nietzsche, em HUMANO, DEMASIADO HUMANO, 1878). O “O” da experiência de Bion parece estar de acordo com o “fato” de Nietzsche, que deve ser amado, assim como com o “Senhor” do cristianismo, do qual se deve respeitar a vontade. Na frase da oração do Pai Nosso, “Seja feita a vossa vontade”, temos a expressão do acordo com a realidade última. O segundo grande mandamento está diretamente de acordo com a proposta de Freud quanto a amar a si mesmo (libido do ego) e o amor que se possa ter pelo outro (libido objetal), quando escreve que “um verdadeiro amor feliz corresponde à condição primeira na qual a libido objetal e a libido do ego não podem ser distinguidas.” (Freud, 1914). Essa formulação, por si só tem uma conotação estético-artística, pela natural poesia e beleza contidas na própria ideia.
Na realidade o papel dos vértices do conhecimento é o de trazer esperança, apaziguando ansiedades e angústias, geradas naturalmente no caminho do reconhecimento de nossa ínfima posição frente o universo, assim como nossa grande ignorância quanto à realidade. Isso ocorre com o modelo científico-filosófico nos orientando quanto à necessidade de renunciarmos ao desejo do que gostaríamos que a realidade fosse para entrarmos num acordo com o que a realidade de fato é. O vértice estético-artístico enriquecendo de ilustrações e alegorias as mazelas da vida. E o âmbito místico-religioso nos orientado para que as coisas deste mundo terreno-material não nos afetem tanto.
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Um comentário:
Querido professor Renato , que belíssima obra , o Sr transitou por vários pensadores, inclusive por suas riquíssimas obras , gratidão por nos nutrir com sua sabedoria 🙏❤️
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