quinta-feira, 17 de agosto de 2023

O HUMANO E OS GRUPOS

 


Cada espécie de animal tem suas peculiaridades em sua natureza e não é diferente com a raça humana. No entanto, o humano parece ter uma característica que o diferencia de todas as outras e não me refiro aqui, a capacidade de pensar, já que a proposta de que outras espécies não pensam é somente uma suposição. A complexidade das manifestações dos animais permite, no máximo, que se levantem hipóteses sobre o funcionamento real, no âmbito não sensorial, quanto as capacidades de pensar, ou ainda, dos processos emocionais e afetivos. Me refiro aqui, sobre a diferença do humano em relação aos outros animais, quanto ao fato de que o primeiro é a criatura que mais se distancia de sua própria natureza. Não só se distancia da natureza, mas também faz distanciar, muitas outras espécies que utiliza às suas conveniências e ao seu bel-prazer. Distancia essas criaturas, seja forçando-as ao trabalho pesado, ou mesmo as domesticando e até transformando os bichinhos em produtos de compra e venda, para lucrar com isso. Isso, sem mencionar aqui, o trabalho escravo, onde o humano pratica da mesma crueldade com outro humano.

Sendo assim, inúmeras características que o humano manifesta, não fazem parte do seu campo instintual, ou seja, não são de sua natureza. Por conta de não estarem de acordo com sua natureza, essa ordem de características, são sempre via de obstrução do fluxo no funcionamento e no desenvolvimento emocional e afetivo, logo, propícia à desenvolvimento patológico. Mas, se certas características não são da natureza do humano e além disso, podem causar moléstias, por que motivo ele passa a manifestá-las? A resposta parece estar no oportunismo, ou ainda, pelo fato do sujeito se ver obrigado a isso.

Em 1921 é publicada a obra de Sigmund Freud (1856 - 1939) chamada PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EGO - na tradução da editora Imago. No capítulo intitulado INSTINTO GREGÁRIO, Freud deixa muito claro o fato de que o ser humano não é um animal que se agrega, que se enturma, que se agrupa naturalmente. Freud contrapõe a ideia de Wilfred Batten Lewis Trotter (1872 – 1939), de que o ser humano tem no seu instinto, um fator gregário. Segundo Trotter, o instinto de rebanho seria inato no ser humano, assim como são os instintos de autopreservação e o instinto sexual. O ser humano se agrupa sim e isso é obvio, porém o faz, por conta de conveniência, ou ainda, quando se vê obrigado a isso. Partindo do pressuposto de que o ser humano é naturalmente narcisista, isso se contrapõe a ideia de que possa trazer, de forma inata, qualquer sinal de instinto gregário.

Ora, se nos propusermos a fazer um experimento em que colocássemos um cabritinho solitário próximo a um rebanho do qual ele nunca tivesse convivido, automaticamente esse cabritinho iria se enfiar no meio do rebanho e se enturmaria com tamanha harmonia, que seria difícil de reconhecer que não pertencia a aquele bando. No entanto, se tentássemos colocar uma criança pequena, que tenha sedo criada em um lar em que as funções materna e paterna tenham sido bem cumpridas, sozinha, próxima de um grupo de pessoas desconhecidas dela, a última coisa que ela faria seria ir em direção essa turma. Ela teria medo dessas pessoas. Portanto, o ser humano não apresenta qualquer instinto gregário.

Na realidade, o bebê humano tem a tendencia de negar a existência do outro, no que Freud, em seu texto DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO MENTAL (1911), chamou de processo primário, conduzido pelo princípio do prazer. Evita isso até as últimas consequências, somente aos poucos e podendo contar, imperiosamente com um ambiente rico de afeto e reconhecimento dos limites, ele irá desenvolvendo a capacidade de tolerar e respeitar a presença desse outro. Ainda assim, ele não o faz naturalmente, mas sim, para que possa conseguir os benefícios que ele perceba que esse outro possa proporcionar. No mesmo texto, Freud chamou essa segunda etapa do desenvolvimento de processo secundário, regido pelo princípio de realidade. Quando o bebê percebe que precisa do outro e passa então a considerá-lo.

Antes de desenvolver a capacidade de convívio com o outro, o bebê imagina que o outro é parte dele mesmo e não uma outra pessoa, e Freud (1921) chamou essa experiência de ligação por identificação. Mesmo sendo uma característica das vinculações do bebê, em seus primeiros meses de vida, muitos adultos ainda guardam grandes cotas dessa forma de se relacionar com o outro. Bem, quando o bebê passa a reconhecer o outro, por desenvolver maior capacidade, mas ainda assim, não estabeleceu um laço íntimo, ou ainda, não vê qualquer benefício que possa obter desse outro, ele prontamente o recusa, o rejeita e chora muito, até que consiga se afastar. Se colocarmos quatro, ou cinco crianças pequenininhas sozinhas numa sala por uma hora, quando voltarmos para checar, muito provavelmente deverá ter ocorrido uma série de violências entre elas, deixando sérios ferimentos. Freud chama a atenção para o fato de que, usualmente, o filho que seja mais velho, deseja, de forma inconsciente ou nem tanto, afastar o mais novo, dos pais e tirar dele qualquer regalia.

Engana-se aquele que imagina que o ser humano em geral, quando adulto, evolui muito no que se refere a capacidade de altruísmo, ou na atitude de doar-se. O desenvolvimento da capacidade de amar é algo que carece de enorme dedicação daqueles que exercem as funções materna e paterna, para que a criança possa se tornar um adulto que realmente desenvolveu essa ordem de capacidade. A ligação pelo amor verdadeiro é rara, na maioria dos casos as pessoas estão ligadas, ou por conveniência, ou por culpa. Mesmo no fim da vida essa questão se torna mais delicada, ou ainda, pode piorar bastante. A maior parte das pessoas se afastará do outro, assim que ele não puder mais trazer benefícios a elas.

Se concordamos até esse ponto do texto, como encontrar o mínimo de instinto de agregação nessa criatura descrita aqui? A palavra gregário vem do latim GREX, que quer dizer rebanho. Muitos os animais manifestam esta ordem de instinto: algumas espécies de aves; caprinos; equinos selvagens; suínos e também grandes mamíferos, como é o caso de búfalos e elefantes. O instinto gregário se manifesta em animais independente do fato de serem eles frágeis ou fortes, independentemente de serem eles capazes ou não de se protegerem sozinhos de seus predadores.

O ser humano, por sua vez, não apresenta o menor vestígio agregador que seja inato, até onde é possível reconhecer. Um animal de rebanho se agrupa independente de um líder, no entanto, o que realmente mantém a coesão é organização do grupo de seres humanos é justamente a presença do líder. Quando existe a presença do instinto gregário não há a necessidade de um líder para que se forme e se mantenha o grupo.

“A exposição de Trotter, porém, está aberta, com mais justiça ainda que as outras, à objeção de levar muito pouco em conta o papel do líder num grupo, ao passo que nos inclinamos, antes, para o juízo oposto, ou seja, de que é impossível apreender a natureza de um grupo se se desprezar o líder.” (Freud, 1921) No grupo humano, o líder parece substituir o “ideal de eu” de cada integrante, onde o modelo do “deveria ser” é projetado naquele que ocupa a liderança do bando, fazendo com que essa cobrança interna passe a ser rebaixada de maneira drástica no funcionamento emocional de cada um. Aquilo que faz se criar e também o que mantém a ligação mútua entre os membros do grupo humano parece ser uma identificação com o líder e que é comungada entre os membros. Sendo assim, quando líder se ausenta por longo tempo, ocorre o que chamamos de pânico, onde a ligação recíproca entre os membros do grupo tende a se dissolver. Com isso, ou o grupo se desfaz, ou um novo líder deve emergir.

Fatos não faltarão a aquele que dirija um olhar dedicado à psicologia dos grupos humanos para revelar que essa espécie de animal não é naturalmente de grupo, mas parece ter a natureza de um animal de horda. Assim como os grandes primatas, também os humanos tem a natureza de se manterem numa espécie muito peculiar de grupo restrito, na sua primeira esfera familiar. Quando um integrante da horda que se aproxima da vida adulta, começa a se desenvolver e ganha certa autonomia, inicia-se conflitos e disputas forçando-o a se deslocar desta esfera. Portanto, tratamos aqui de um ser que não tem no seu instinto, a tendência de se agrupar, mas começa a se agrupar dentro disso que chamamos de civilização, de sociedade, porque existe uma conveniência ou então, por se ver forçado a isso. Entretanto, é necessário um trabalho dedicado para que ele consiga desenvolver tal capacidade de coexistência.

Ele precisará rebaixar sua urgência de satisfação, aprendendo a tolerar frustrações, para que possa se adaptar a vida em sociedade. Mas não faz isso naturalmente, o faz porque isso é imposto a ele. A educação obriga este sujeito a doutrinar-se para conviver em sociedade. Ele não faz isso espontaneamente, mas quando bebê, o humano quer possuir e ficar com a mãe só para ele. Sendo assim, sem a introdução de um modelo de vínculo de amor sincero e reconhecimento de limites ele persistirá nesse intuito. No reconhecimento da figura paterna, que o impedirá de ter a mãe só para ele, o bebê humano projeta nessa figura, todo o ódio e hostilidade. Sendo que, muitas vezes ataca até mesmo a mãe quando frustra suas expectativas.

Sendo devidamente qualificado emocional e afetivamente, a partir das funções materna e paterna bem cumpridas, ele passa a ser capaz, então, de participar de grupos específicos, grupos de trabalho. Segundo Wilfred Bion (1897 - 1979), em seu livro EXPERIÊNCIAS COM GRUPOS, o grupo de trabalho carece de um ajustamento à uma tarefa específica proposta. Deve ser organizado em funções, estruturas e atividades para cumprir a tarefa principal, que tenha sido previamente estabelecida e concordada pelos membros. Apesar de não ser formado naturalmente, esse modelo de grupo, mesmo que artificial, parece ser realmente nutridor. Contudo, ainda assim, o convívio prolongado em grupo não faz parte da natureza do ser humano e, por conta disso, parece trazer muito mais prejuízos do que benefícios.

O ser humano parece só conviver em grupos quando e enquanto não esteja dando conta de manter-se por si só. Busca grupos externos quando não encontra harmonia dentro da sua horda, na sua restrita estrutura familiar, ou ainda, quando ele não pode contar com esta pequena esfera, ou mesmo, quando a estreita esfera familiar não é acolhedora o suficiente para que ele possa se manter ali. Quando o sujeito começa a desenvolver certa autonomia, logo passa a questionar a vida em grupo. Assim que começa a sentir-se com boa autonomia, confiando nele mesmo, inicia frequentes questionamentos sobre o grupo que, enquanto vulnerável, se mantivera aparentemente muito bem adaptado.

O sujeito que acredita em si mesmo, confiando em si próprio, tem muito pouco interesse nos grupos e pouquíssima disponibilidade para se manter neles, mas tende a dedica-se muito mais a sua estreita esfera familiar, no que aqui estamos chamando de horda. No desenvolvimento do processo psicoterapêutico, isso fica evidente. Na medida em que o paciente vai expandindo sua capacidade emocional, quando ele vai crescendo e se alargando em sua capacidade afetiva, a partir do processo psicanalítico e com isso, vai desenvolvendo um pouco mais de autoconfiança, logo passa a questionar os grupos em que frequenta. Questiona os grupos, sejam eles religiosos, organizações profissionais, ou qualquer outro modelo. Muitas vezes, o paciente busca psicoterapia justamente por ter sido ferido ao participar de grupos que são insalubres. Ambientes onde são frequentes as humilhações veladas, torturas emocionais ocultas, assédios morais dissimulados, assim como disputas, muitas vezes injustas e constante clima de competitividade, que saturam o funcionamento emocional, acarretando num padecimento, amiúde sem que o sujeito sequer perceba que está adoecendo. Em grupo as características da essência do sujeito tendem a se dissolver. Emerge então, um teor primitivo, onde a capacidade de discernir a realidade fica ofuscada. O humano tem grande dificuldade de pensar enquanto inserido no grupo, tendendo a reconhecer como verdade, aquilo que o líder prega e o grupo acredita e comunga.

Ora, Freud (1921) deixa claro que os grupos se mantêm através de ilusões, não tolerando a verdade, tendendo se desfazer no contato com ela. Em sua obra ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO, Bion cogita sobre a relação entre o místico e o grupo, onde o místico destrói o grupo e o grupo destrói o místico. Ora, o místico é aquele que traz a verdade, traz o novo e o grupo não tolera isso. Sendo assim, quando o sujeito começa a abrir a consciência e expandir o seu acordo com a realidade, ele começa a questionar o grupo e o grupo passa a questioná-lo. A vida em grupo força o sujeito a dissimular, a ser falso, ativando e se mantendo através de seu falso eu. Não se consegue conviver em grupo sendo verdadeiro, já que, o sujeito fica exposto a ser atingido na vulnerabilidade do verdadeiro eu. Portanto, para o ser humano, a vida em grupo parece ser sempre perigosa e cheia de oportunidades de se desenvolver enfermidades emocionais e afetivas.

 

Referências

Bion, W. R. (1975). EXPERIÊNCIAS COM GRUPOS. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1961)

________. ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO, tradução de Paulo Cesar Sandler. - 2. ed. 1970 - Rio de Janeiro: Imago, 2006.

Freud. S. (1911). FORMULAÇÕES SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO MENTAL, In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

________. (1921). PSICOLOGIA DE GRUPO E A ANÁLISE DO EGO. In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969.


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