FATOR OBSTRUTOR
A culpa é uma das questões fundamentais, ou o cerne da disfunção emocional. A culpa é um elemento fundamental para obstruir o fluxo do desenvolvimento emocional e do funcionamento emocional, comprometendo também o funcionamento afetivo. O sujeito fica obstruído de funcionar emocionalmente e obstruído de funcionar afetivamente, ou seja, nos vínculos com os outros por conta do sentimento de culpa.
CULPA
A dúvida é, qual é a diferença entre o sentimento de culpa e a culpa? Primeiro vamos falar sobre a culpa e logo de início eu vou já colocar aqui um pressuposto: a culpa é questionável. Todas as vezes que a gente falar sobre culpa nós precisamos olhar para isso atentamente, cuidadosamente porque a culpa sempre é questionável. Se o sujeito realmente tem culpa. O sujeito no trânsito atropela uma pessoa. Ele passa passou no sinal vermelho, por exemplo, atropelou essa pessoa e essa pessoa morre. Ele é culpado pela morte dessa pessoa. É culpa dele que esta pessoa morreu. Quando a gente afirma que é culpa dele, a gente está negando todo o contexto que configurou a situação que levou esse sujeito passar no sinal vermelho e atropelar esta pessoa que veio a óbito. Se a gente negar tudo isso, realmente a culpa dele, mas pode ter havido uma contingência muito maior que levou ele fazer isso sem que ele pudesse ter outra opção, ter outra escolha. Então, existe uma contingência, existe uma configuração maior que é responsável por esta morte. Esta culpa é questionável. No entanto, se ele for julgado, se ele for na justiça, nada disso vai ser considerado. O considerado é que ele atropelou uma pessoa porque passou no semáforo vermelho e esta pessoa veio a óbito. Ele é culpado. Doloso ou culposo, o juiz vai avaliar para ver se é isso, mas de qualquer forma, ele é culpado por isso. Mas isso tudo é questionável, se a gente tiver um olhar mais cuidadoso.
CULPA QUESTIONÁVEL
A expressão culpa é aplicável quando o sujeito realmente cometeu algum delito, ou algum mal, ou alguma atitude que venha a lesar alguém. Então, isto é culpa. O sujeito tem culpa. Isso dentro da linguagem coloquial, ignorando todo esse olhar atento e cuidadoso que vai no final das contas, questionar a própria culpa.
SENTIMENTO DE CULPA
Nós estamos falando assim, o sujeito é culpado por algum fato que aconteceu, porque a atitude dele levou a isso a acontecer. Agora, nós vamos falar de sentimento de culpa, que é completamente diferente. Tem um abismo entre o sujeito ser culpado e o sujeito se sentir culpado. O sentimento de culpa existe independente da culpa efetivamente. Um sujeito pode carregar um sentimento de culpa sem ter culpa alguma. Um sujeito, por exemplo, ele pode se sentir culpado de sentir alegrias, de realizar alguma coisa, de ter algum sucesso, enquanto um irmão não consegue fazer o mesmo. Enquanto um irmão não consegue ser bem-sucedido o outro pode se sentir culpado por desfrutar de alegrias e sucessos na sua vida. Este é um sentimento de culpa Ele não tem culpa que o irmão não seja capaz de realizar assim como ele e ser bem-sucedido como ele, mas ele pode se sentir culpado por isso. Então, este é um sentimento de culpa. Ele tem culpa? De maneira alguma, mas ainda assim cada sucesso que ele tem cada alegria que ele tem vem junto com um sentimento de culpa.
AUTOPUNIÇÃO
O sentimento de culpa vai se desdobrar, vai ter uma cadeia de desdobramentos extremamente perigosa. O sujeito se sente culpado, ele se julga, se condena e passa então a se autopunir. E esta autopunição, muitas vezes, vai se manifestar naquilo que a gente, muitas vezes chama de autossabotagem. Ele vai sabotar todas as suas conquistas, todos os seus sucessos, muitas vezes desenvolve uma doença crônica. Ele desenvolve uma doença grave, ele não consegue se curar dessa doença porque esta doença, muitas vezes vem como uma autopunição. Então, ele cultiva essa doença, ele se autopune a partir dessa doença física, dessa doença somática e por mais que essa doença possa ser penosa, por mais que o fracasso possa ser penoso, não se compara com o desconforto que o sentimento de culpa pode trazer. Então, é como se ele dissesse assim: “Estou me sentindo culpado, mas veja como eu estou padecendo! Mas veja como eu sou fracassado!” E este fracasso ameniza o sentimento de culpa, porque serve como uma autopunição. Nenhum fracasso pode ser tão desconfortável quanto o sentimento de culpa. Então, ele carrega o sentimento de culpa e se autossabota como autopunição para amenizar o seu sentimento de culpa.
CONSCIÊNCIA
A culpa não pode ser inconsciente porque a culpa só acontece a partir de uma relação com o mundo externo. A partir da relação que eu tenho com o mundo externo, eu vou desenvolver um sentimento de culpa. Me sinto culpado por conta de uma relação com o outro e se existe o outro não posso chamar de inconsciente, porque no inconsciente não existe o outro. Este sentimento de culpa por ser muito desconfortável, pode ser mergulhado no inconsciente em algum momento, quando esse sujeito viver uma situação muito difícil ele pode reprimir este sentimento de culpa temporariamente de uma maneira tão drástica que ele pode fugir da consciência do sujeito quase que completamente. Mas isso não quer dizer que ele esteja no inconsciente, quer dizer que ele em algum momento esteve ali. Não quer dizer que o sentimento de culpa permaneça no inconsciente, porque nada permanece no inconsciente. Se foi registrado a partir das noções de tempo e espaço, não pode mais caber no inconsciente.
A CULPA É MINHA
Tem a expressão jocosa de que “se a culpa é minha eu coloco em quem eu quiser”. Normalmente o sujeito que carrega um sentimento de culpa, em alguns momentos, ele atribui essa culpa ao outro para dar uma amenizada nesse sentimento que ele está carregando.
ONIPOTÊNCIA
Muitas vezes, o sujeito carrega um sentimento de culpa, porque antes ele desenvolveu uma certa onipotência. Ele acredita que tudo que acontece de ruim foi por causa dele e não é isso, as coisas acontecem na vida, muitas vezes sem a minha intervenção.
VÍCIO NO FRACASSO
Existe uma um uma configuração onde o sujeito acaba por assim dizer, viciando no sentimento de culpa e isso pode acontecer, muitas vezes, porque ele se sentiu culpado, se autojulgou, se autocondenou e agora passa se autossabotar, destruindo o seu sucesso, sendo um fracassado. E isso é muito confortável. É uma zona de conforto muito grande ser o fracassado. Você não precisa dar manutenção para nada e isso é viciante. Uma vez que o sujeito passa a encontrar neste lugar do fracassado, e aí o sentimento de culpa retroalimenta este fracasso.
INTERVENÇÃO CLÍNICA
A intervenção que pode ser feita com o paciente em relação a esse sentimento de culpa é refletir com o paciente o absurdo que é carregar um sentimento de culpa. Seja ele porque o sujeito realmente teve uma atitude que causou um mal a alguma outra pessoa, ou por qualquer outro motivo que ele carrega o sentimento de culpa. Qualquer energia investida em carregar um sentimento de culpa é um desperdício, porque já passou, porque agora a gente precisa viver o hoje, porque tudo isso é uma grande ilusão, porque este sentimento de culpa é um grande absurdo.
3 Rs
O único antídoto para dissolver o sentimento de culpa é a responsabilização. E a responsabilização só pode acontecer a partir de dois outros fatores anteriores. três Rs. Ele precisa reconhecer aquilo que está gerando o sentimento de culpa, ele precisa aprender a respeitar isso que aconteceu e que gerou o sentimento de culpa e a partir daí, se responsabilizar por isso. quando eu me responsabilizo por alguma coisa não tem mais culpa.
MATURIDADE
Eu respondo por isso, logo me responsabilizo. Vamos voltar ao sujeito que passou no sinal vermelho. Sim, eu me responsabilizo por isso, mas não é culpa minha. Existiu uma configuração muito maior por trás disso. A capacidade de se responsabilizar é um desdobramento da maturidade emocional. Não existe como se responsabilizar sem que possa se desenvolver a maturidade emocional. É um desdobramento, é um fator da maturidade emocional.
FRACASSADOS
O sujeito, muitas vezes, se sente culpado, ele se autocondena, ele se autopune, se torna um grande fracassado para se autopunir desta culpa que ele carrega e aí, ele encontra um grupo ideológico que também tem esta mesma configuração. O grupo dos fracassados! O grupo dos fracassados que estão ali tentando apontar um culpado externo. Grupos ideológicos funcionam desta forma. Eu me identifico como um fracassado, me junto com outros fracassados e agora nós vamos levantar a bandeira para reclamar.
CÍRCULO VICIOSO
Um irmão fracassado inveja um irmão bem-sucedido e a partir desse sentimento de inveja do irmão fracassado ele passa a depreciar este irmão bem-sucedido. Essa depreciação, a partir do reconhecimento que o irmão é fracassado, passa a agir nesse sujeito bem-sucedido como um agente que deteriora o seu sucesso. E aí, o que acontece? Ele passa a se sentir culpado porque o irmão não foi bem-sucedido assim como ele. Ele passa a não se sentir merecedor desse sucesso. Passa a se autossabotar e a partir desta autossabotagem ele também fracassa e passa a invejar aquele que consegue ser bem-sucedido sem se sentir culpado. Um círculo vicioso extremamente nocivo na vida do sujeito.
CULPA LATENTE
O sentimento de culpa, muitas vezes pode fazer parte do conteúdo latente, mas o conteúdo latente não é inconsciente. Estar latente não quer dizer que esteja inconsciente. O conteúdo latente está pré-consciente, porque ele uma vez viveu experiências no mundo externo. Não cabe no inconsciente qualquer noção do mundo externo. Se tem noção do mundo externo, não cabe mais no inconsciente, logo o sentimento de culpa não é inconsciente, não pode ser inconsciente.
CULPA REPRIMIDA
O sentimento de culpa, por se extremamente desconfortável, passa a ser reprimido e uma vez reprimido ele está condenado a flutuar no sistema pré-consciente. Ele é arremessado de volta em direção ao inconsciente, mas no inconsciente ele não consegue permanecer. Ele teve uma ação externa, ele teve um impulso e esse impulso não encontrou representação adequada no mundo externo. Ele foi pressionado de volta, em direção ao inconsciente, mas no inconsciente ele não permanece e também não permanece no pré-consciente, porque o pré-consciente é volátil. O pré-consciente não é um lugar fixo. As coisas, no pré-consciente, ora estão mais inconscientes e ora estão mais conscientes. Então, elas ficam flutuando ali. Ora elas pressionam em direção à ação, ao acting out, a atuação, a ação não pensada e ora elas estão sendo pressionadas para o inconsciente, para que o sujeito possa negá-la.
NÃO SE ENCAIXA
O reprimido não se encaixa em lugar nenhum. Ele não consegue mais se encaixar em nada. Ele não contra lugar algum para ele existir. O sentimento de culpa não tem lugar, ele não consegue encontrar lugar. Por mais que o sujeito coloque a culpa no outro, não não é culpa do outro. Por mais que ele traga para si mesmo, também não é culpa dele. Ele vai ficar se questionando o tempo inteiro e por isso é tão desconfortável. Porque traz uma sensação de insegurança. Ora eu estou me sentindo angustiado, ora eu estou me sentindo ansioso.
DESCULPAR
Se a culpa é questionável e o sentimento de culpa é um absurdo, a atitude de desculpar o outro também é absurda. Então, eu te culpo e eu tenho o poder de te desculpar. Se aquilo realmente aconteceu por conta de uma configuração muito maior não há o que se desculpar. É claro que a gente tem essa expressão de pedir desculpa para o outro, de pedir perdão para o outro, como uma expressão de atenção ao outro, de importar-se com o outro, mas é uma mera formalidade.
DESOBSTRUIR
Desculpar é um poder daquele que atribuiu culpa. Se eu atribui culpa, eu tenho o poder de desculpar. Logo de início já se mostra um absurdo. Se a culpa é questionável, por conta de toda uma contingência por trás daquilo que aconteceu e se o sentimento de culpa é um absurdo, desculpar também é. Quem sou eu para desculpar alguém? Esta pessoa fez aquilo que ela deu conta de fazer. Eu preciso ser capaz de desobstruir o caminho, tirando todas essas ilusões, essas alucinações de culpa, seja minha, seja do outro e continuar o fluxo da minha vida. Porque o sujeito que ainda está apegado ao sentimento de culpa é porque ele tem um benefício muito grande naquilo. Porque se ele não tiver um benefício naquele sentimento de culpa, aquilo fica para trás e nunca mais vai ser tocado.
SENTIMENTO DE CULPA INFANTIL
O primeiro sentimento de culpa que comete o sujeito é dentro da entrada da posição depressiva, segundo o Melanie Klein. Quando ele percebe que a mãe que ele odiava é a mesma que ele idealizava. Que a mãe que ele odiava por privá-lo do conforto, ou do seio é a mesma mãe que vinha e cuidava dele. Quando ele percebe que é uma mãe só e não são duas mães, não é um seio bom e não é um seio mau, ele passa a se sentir culpado. Este sentimento de culpa precisa ser tolerado até que ele possa se transformar em responsabilização. Depois o Freud vai falar de um sentimento de culpa associado ao complexo de Édipo, na fase fálica. Também vai haver ali, um sentimento de culpa de desejar a mãe só para ele e desejar que o pai morra.
AUTO-PERDÃO
O sujeito vem ali, com uma questão mal elaborada e muitas vezes, o psicanalista diz para ele assim: “É, você está com dificuldade de se perdoar”. Não! Eu não tenho o que me perdoar. Eu fiz aquilo que eu dei conta de fazer. Eu não fiz por intenção de fazer e se fiz por intenção de fazer, fiz num momento de grande imaturidade, onde não estava sendo capaz de avaliar a realidade como um todo.
CULPA GARANTIDORA
O sujeito, quando não está sendo capaz de amar, ele pode usar a culpa para garantir que o outro não vai abandoná-lo. Muitas vezes, ele incita a culpa no outro para que o outro permaneça ali, porque ele não está sendo capaz de amar e não está sendo capaz de dar manutenção para um vínculo saudável. Então, ele incita culpa no outro, o outro se sente culpado e por se sentir culpado ele não toma qualquer atitude para se afastar daquela pessoa. Então, eu, por exemplo, posso estar acamado, posso estar doente e dar manutenção para esta patologia para permanecer daquela forma e garantir que as pessoas não vão me abandonar.
ESCOLHA
Não existe escolha. Ninguém escolhe se sentir culpado. Ninguém escolhe fazer alguma coisa que possa vir a ser atribuído como culpa. Não existe escolha! A escolha é uma grande ilusão. Ninguém escolhe nada. Nós estamos configurados num sistema muito maior que aquilo que a gente quer ou deixa de querer irrelevante. O que a gente pode é entrar num acordo com a realidade e a gente só vai conseguir isso a partir de vínculos afetivos saudáveis.
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