“Para nós é completamente desconhecida qual possa ser a natureza das coisas em si, independentes de toda receptividade da nossa sensibilidade. Não conhecemos delas senão a maneira que temos de percebê-las; maneira que nos é peculiar; mas que tão pouco deve ser necessariamente a de todo ser, ainda que seja a de todos os homens.” (Kant, 1781).
Por conseguinte, quando cogitamos sobre o nível de percepção e reconhecimento da realidade, tratamos de uma capacidade e essa capacidade está subordinada ao nível de maturação emocional. Dessa maneira, não existe escolha quanto a reconhecer ou não os elementos da realidade. Ou se está maduro o bastante para isso, ou essa capacidade ainda não se encontra desenvolvida o suficiente.
Portanto, exigir que alguém reconheça a realidade configura-se num absurdo, assim como não faz sentido criticar aquele que está iludido.
Condenar incapacidades é incoerência. A saber, esse nível de maturidade não coincide com a idade cronológica.
Sendo que muitas vezes o sujeito passa grande parte, ou mesmo a vida toda sem ser capaz de desenvolver muita habilidade no reconhecimento da realidade. A imaturidade emocional normalmente persiste quando o sujeito consegue certa permanência no que chamaríamos de zona de conforto, onde apesar de limitadamente nociva, traz comodidade e uma suposta segurança.
Isso acontece quase sempre resguardado por outro que deve ter algum beneficio em garantir a constância dessa situação.
Numa configuração emocional onde a capacidade de reconhecimento da realidade ainda não se encontra desenvolvida num nível mínimo necessário, o que rege a forma como o sujeito percebe, se relaciona e se articula com o mundo está baseada nas ilusões e tão somente nelas.
Tentativas de desfazer ou destruir ilusões são sempre muito perigosas, já que muitas vezes o sujeito pode estar, pelo menos naquele momento da vida, se mantendo firme em sua caminhada por conta de suas ilusões, e destruí-las acarretaria num comprometimento na motivação para se viver.
Quando a vida estiver sendo apoiada nos pilares da ilusão é prudente que sejam substituídos gradativamente, caso contrário tudo pode desmoronar.
Ora, se o reconhecimento da realidade não depende da escolha, mas sim da capacidade do sujeito, muito menos dependerá da escolha do outro.
Ninguém muda ninguém. A transformação parte de dentro. Isso se dará conforme experiências que combinem desconforto e acolhimento. Quando as ilusões em que o sujeito esteja mantendo sua vida começarem a ruir, gerando assim insegurança, aí então o acolhimento do outro passa a ser fundamental no processo de transformação.
O conceito de reconhecimento tratado aqui não quer dizer entendimento, ou compreensão. Não acredito que seja possível conhecer a verdade, não creio que seja possível compreender a realidade. Penso que na melhor das hipóteses seja possível estar de acordo com ela e então passa a ser provável se responsabilizar por isso e assim passar a ser real.
Quando proponho reconhecer estou tratando da experiência de “perceber que existe” e assim passar a respeitar, o que nada tem a ver com “ter conhecimento sobre”. O respeito não pode depender do entendimento. O entendimento está subordinado à vontade, onde a dificuldade em tolerar desconfortos obstrui a capacidade de entender.
Arthur Schopenhauer (1788-1860) nos alertou sobre a onipotência da vontade (1819) que é soberana, faminta e insaciável, sendo que “a atuação cega da Vontade e a ação iluminada pelo conhecimento invadem uma o domínio da outra”. (SCHOPENHAUER, 1819). Se por ventura o entendimento choca-se com a vontade, a compreensão cede e a vontade prevalece. Sendo assim, a relação que é possível se estabelecer com a realidade não se encontra no domínio do saber, pois o suposto saber estará sempre contaminado do desejo na idealização da realidade, distante do que realmente é.
Logo, o “saber sobre” é sempre ilusão, pelo menos em alguma medida. O sujeito, normalmente compreende somente aquilo que lhe é conveniente.
“Não se trata de saber a respeito da realidade, nem da capacitação humana para sabê-lo. A convicção de se saber ou vir a saber, a respeito da realidade é falaz por não ser ela algo de que se possa saber.” (Bion, 1965).
Quando Wilfred Ruprecht Bion (1897 — 1979) faz essa afirmação ele expande o acordo que se possa ter com a própria realidade numa comunhão realmente possível com a verdade, onde “A realidade só pode ser "sida": requer-se um verbo "ser" transitivo, para usá-lo na relação com o termo "realidade".” (Bion, 1965).
Aquilo que de maneira suposta se sabe é referente ao que está armazenado nos compartimentos da memória e se o “saber sobre”, que em forma de dados foi armazenado, já sofrera uma contaminação pelo desejo, o resgate desse suposto saber sofrerá outro comprometimento já que a memória é seletiva conforme o desconforto que possa provocar.
Portanto, muito mais importante do que buscar saber é se preparar para tolerar a ignorância; justamente o que pode nos fazer eternos aprendizes.
W. R. Bion, TRANSFORMAÇÕES: mudança do aprendizado ao crescimento. (Transformations: change from learning to growth, 1965), Rio de Janeiro, Imago, 1991.
KANT, I. Crítica da razão pura - Os pensadores - Vol. I. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
SCHOPENHAUER, Arthur. O MUNDO COMO VONTADE E COMO REPRESENTAÇÃO. Tradução Heraldo Barbuy. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1819/2012.
Prof. Renato Dias Martino
Psicoterapeuta e Escritor
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3 comentários:
Maravilhoso sempre meu professor predileto!
Sempre aprendendo a apreender , sendo este eterno aprendiz ao lado de mestres como o Sr que nos ensina com amor e humildade , gratidão professor
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