domingo, 11 de novembro de 2018

DO QUE SE SENTE AO QUE SE FALA


No início da vida, o bebê não tem consciência da existência do outro. Vive uma forma de funcionamento primitivo onde o “eu” e a totalidade da realidade coincidem.  Sigmund Freud (1856-1939), em seu texto FORMULAÇÕES SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO MENTAL, denominou essa forma da mente funcionar de processo primário. “Não há, nessa ordem de funcionamento, a diferenciação entre o eu e o resto do mundo.”. (Martino, 2015).
Sendo assim, não pode existir intuito consciente de comunicação, já que o outro ainda não existe para o eu. Ele simplesmente manifesta suas necessidades através de atividades motoras como o choro. Uma evacuação de sentimentos desagradáveis que servem de aviso natural e impensado, inerente ao instinto de autopreservação, para que, aquela que ocupa a função de cuidadora possa atendê-lo em suas necessidades e assim preservar sua vida. A despeito de não ter o intuito consciente de se comunicar, ainda assim, o faz.
Temos a disposição inúmeras formas para nos comunicar e o recurso verbal é apenas uma dessas modalidades de instrumento.
Em seus primeiros anos de vida, o bebê aprende a se guiar, inicialmente, pelos gestos da mãe. A realidade da criança é configurada por aquilo que ela sente. Isso ocorre por ela ainda não ter desenvolvido suficientemente o aparato da fala. Chamamos essa fase do desenvolvimento da linguagem de pré-verbal.
A palavra não serve de nada para aquele que não é capaz de decodificá-la. O bebê tem percepção muito sensível para aquilo que as palavras não conseguem expressar. Portanto, nesse período a relação que se tem com a realidade é direta e livre de dissimulações. O bebê sente, mas não sabe o que sente. Alterações de humores e estados emocionais da mãe, são percebidos muito claramente pela criança enquanto vive a unidade mãe bebê, ou seja, enquanto depende fundamentalmente da função de maternagem, sem ser capaz de diferenciar-se dela.
Uma fase delicada, já que cada perturbação emocional da mãe deve afetar diretamente o funcionamento do bebê. Elementos inconscientes e pré-conscientes na mãe são transmitidos ao bebê, que os percebe com nitidez. A mãe que venha a sentir rejeição por seu filho, transmitirá este sentimento a ele, que perceberá, muitas vezes com maior clareza que ela própria.
A função alfa, assim como nos orientou Wilfred Ruprecht Bion (1897 — 1979), acontece num nível onde a verbalização está completamente ausente. A mãe recebe impressões sensíveis, que se manifestam como conteúdos caóticos do bebê (elementos betas) e a partir de sua capacidade de acolhê-los, responde com cuidados necessários (elementos alfa).  A capacidade de tolerar frustrações é o que fundamenta a função alfa, que irá transformar as impressões emocionais em elementos que possam se integrar à mente do bebê, como os sonhos, nos processos oníricos, preparando para a elaboração do pensar.
“A função-alfa atua sobre as impressões sensíveis quaisquer que sejam e sobre as emoções que o paciente percebe. À medida que a função-alfa atua, produzem-se elementos-alfa passíveis de se armazenar e corresponder aos requisitos de pensamentos oníricos.” (Bion, 1962).
Experiência que ocorre na relação mãe/bebê e de forma análoga também deve ocorrer na relação analista/paciente. A conexão entre os elementos alfa formará o que Bion chamou de barreira de contato, que estabelece a função de percepção e reconhecimento do limite existente entre interno e externo, do que está inconsciente com o que é consciente, configurando assim, certo contorno do aparelho psíquico que promove integração da personalidade. Isso tudo ocorre sem que precise necessariamente da comunicação pela fala. Formulações que não estão subordinadas à habilidade verbal, ocorrendo no nível do ser em relação ao outro, independente do que possa ser entendido.
Entretanto, com o desenvolvimento da capacidade de comunicação pela fala, o quadro sofre uma grande transformação. Muitas vezes aquilo que é dito não se ajusta com aquilo que realmente ocorre. Aquilo que se ouve nem sempre está de acordo com o que realmente houve. Armam-se conflitos entre o que se sente e o que se entende.
Afirma-se algo verbalmente, mas o que é sentido e percebido, muitas vezes é justamente o contrário.
No entanto, por essa informação ter sido afirmada por uma figura de autoridade, o que se sente, então, cede para aquilo que é dito. A partir daí aprendemos a desvalorizar o que sentimos para confiarmos no que nos dizem. Normalmente, convencemo-nos mais com palavras do que com gestos. É nesse ponto que aprendemos a mentir e também passamos a acreditar nas mentiras do outro.
"É frequentemente esquecido que o dom da fala, tão fundamentalmente empregado, foi elaborado tanto com o propósito de ocultar o pensamento através da dissimulação e da mentira, como com o propósito de elucidar ou comunicar o pensamento.". (Bion, em ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO, 1970).
Por conta da confusão em meio ao que se sente e o que é possível se compreender, a neurose encontra espaço para se proliferar. Não conseguindo encontrar uma forma coerente para expressar o que se sente, por não estar de acordo com o que se sabe, o sintoma deve erguer-se como resultado.
A sinceridade juntamente com o afeto dos pais ou daqueles que possam cumprir essa função, deve formar a base no desenvolvimento de uma criança.
Configuram elementos fundamentais para que possa se desenvolver um adulto sincero e afetuoso. O real aprendizado ocorre através de exemplos.
Um pai que ama realmente, quando diz “não”, não carece de esclarecimentos. Um vínculo de respeito não está subordinado às justificativas. Até porque, a demasia nas justificativas é sinal claro da falta de respeito. Aquilo que estamos sendo fala sempre mais alto do que aquilo que dizemos.
No entanto, a convivência com figuras de autoridade, como professores quando despreparados, ou ainda a influência de relacionamentos tóxicos, irão induzir e contaminar a forma de pensar daquele que não pôde contar com uma base de sinceridade, de amor e consequentemente de respeito. Privado de experiências num lar que possa fornecer recursos minimamente necessários para o bom desenvolvimento da estrutura emocional, a criança se vê vulnerável a introdução de ideias perversas quando inserido no universo social.
A partir da proposta psicoterapêutica de Melanie Klein (1882 – 1960), assim como de seus sucessores como Wilfred Bion e Donald Winnicott (1896 - 1971), o ambiente terapêutico configura-se num continente emocional acolhedor, com a função de desobstruir os obstáculos na transformação e maturação dos elementos mentais. Esse processo deve acontecer muito menos através da fala e mais pelos gestos. “Klein buscava lidar com características do infantil, tanto na criança quanto no adulto. O infantil, ou infante, do latim in, ‘não’, mais fari, ‘falar’.”. (Martino, 2015).
Num espaço emocional, que dê continência aos elementos trazidos pelo paciente, a experiência deve ir para além da palavra. O verbal deve ser apenas uma extensão da configuração do ambiente. “Falo da capacidade pós-verbal, onde a comunicação se expande para o plano intuitivo.” (Martino, 2018). A intuição deve guiar essa ordem de experiências já que aquilo que se possa saber não tem importância.
“Quando é possível desenvolver esse nível de capacidades, então é acessada a propriedade de expansão que vai para além do verbo, na experiência do intuir, e assim, muitas vezes a comunicação verbal é desnecessária.”. (Martino, 2018). Os atos acabam por revelar aquilo que as palavras não conseguem expressar.
A base da confiança não pode depender do “saber sobre”, mas deve partir do “não precisar saber”.













BION, Wilfred. R. O APRENDER COM A EXPERIÊNCIA. Rio de janeiro, Imago, (1962).
______________. A Atenção e Interpretação. Imago, Rio de Janeiro, (1970/1973).
Freud, S. FORMULAÇÕES SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO MENTAL, em Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas - Edição Standard Brasileira, IMAGO (1969-1911).
MARTINO, Renato Dias. O LIVRO DO DESAPEGO – 1ª ed. São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2015.
_________________. ACOLHIDA EM PSICOTERAPIA – 1ª ed. São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2015.






Fone: 17- 991910375







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2 comentários:

Unknown disse...

Muito claro e objetivo.
Ótimo texto prof.

Abraço.

Unknown disse...

Muito obrigada Professor! Excelente texto.