No início da vida, o bebê não tem consciência da existência
do outro. Vive uma forma de funcionamento primitivo onde o “eu” e a totalidade
da realidade coincidem. Sigmund Freud
(1856-1939), em seu texto FORMULAÇÕES SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO
MENTAL, denominou essa forma da mente funcionar de processo primário. “Não há,
nessa ordem de funcionamento, a diferenciação entre o eu e o resto do mundo.”.
(Martino, 2015).
Sendo assim, não pode existir intuito consciente de
comunicação, já que o outro ainda não existe para o eu. Ele simplesmente
manifesta suas necessidades através de atividades motoras como o choro. Uma
evacuação de sentimentos desagradáveis que servem de aviso natural e impensado,
inerente ao instinto de autopreservação, para que, aquela que ocupa a função de
cuidadora possa atendê-lo em suas necessidades e assim preservar sua vida. A
despeito de não ter o intuito consciente de se comunicar, ainda assim, o faz.
Temos a disposição inúmeras formas para nos comunicar e o
recurso verbal é apenas uma dessas modalidades de instrumento.
Em seus
primeiros anos de vida, o bebê aprende a se guiar, inicialmente, pelos gestos
da mãe. A realidade da criança é configurada por aquilo que ela sente. Isso
ocorre por ela ainda não ter desenvolvido suficientemente o aparato da fala.
Chamamos essa fase do desenvolvimento da linguagem de pré-verbal.
A palavra não serve de nada para aquele que não é capaz de
decodificá-la. O bebê tem percepção muito sensível para aquilo que as palavras
não conseguem expressar. Portanto, nesse período a relação que se tem com a
realidade é direta e livre de dissimulações. O bebê sente, mas não sabe o que
sente. Alterações de humores e estados emocionais da mãe, são percebidos muito
claramente pela criança enquanto vive a unidade mãe bebê, ou seja, enquanto
depende fundamentalmente da função de maternagem, sem ser capaz de
diferenciar-se dela.
Uma fase delicada, já que cada perturbação emocional da mãe
deve afetar diretamente o funcionamento do bebê. Elementos inconscientes e pré-conscientes
na mãe são transmitidos ao bebê, que os percebe com nitidez. A mãe que venha a
sentir rejeição por seu filho, transmitirá este sentimento a ele, que
perceberá, muitas vezes com maior clareza que ela própria.
A função alfa, assim como nos orientou Wilfred Ruprecht Bion
(1897 — 1979), acontece num nível onde a verbalização está completamente
ausente. A mãe recebe impressões sensíveis, que se manifestam como conteúdos
caóticos do bebê (elementos betas) e a partir de sua capacidade de acolhê-los, responde
com cuidados necessários (elementos alfa).
A capacidade de tolerar frustrações é o que fundamenta a função alfa,
que irá transformar as impressões emocionais em elementos que possam se
integrar à mente do bebê, como os sonhos, nos processos oníricos, preparando
para a elaboração do pensar.
“A função-alfa atua sobre as impressões sensíveis quaisquer
que sejam e sobre as emoções que o paciente percebe. À medida que a função-alfa
atua, produzem-se elementos-alfa passíveis de se armazenar e corresponder aos
requisitos de pensamentos oníricos.” (Bion, 1962).
Experiência que ocorre na relação mãe/bebê e de forma análoga
também deve ocorrer na relação analista/paciente. A conexão entre os elementos
alfa formará o que Bion chamou de barreira de contato, que estabelece a função
de percepção e reconhecimento do limite existente entre interno e externo, do
que está inconsciente com o que é consciente, configurando assim, certo
contorno do aparelho psíquico que promove integração da personalidade. Isso
tudo ocorre sem que precise necessariamente da comunicação pela fala.
Formulações que não estão subordinadas à habilidade verbal, ocorrendo no nível
do ser em relação ao outro, independente do que possa ser entendido.
Entretanto, com o desenvolvimento da capacidade de
comunicação pela fala, o quadro sofre uma grande transformação. Muitas vezes
aquilo que é dito não se ajusta com aquilo que realmente ocorre. Aquilo que se
ouve nem sempre está de acordo com o que realmente houve. Armam-se conflitos
entre o que se sente e o que se entende.
Afirma-se algo verbalmente, mas o que é sentido e percebido,
muitas vezes é justamente o contrário.
No entanto, por essa informação ter sido
afirmada por uma figura de autoridade, o que se sente, então, cede para aquilo
que é dito. A partir daí aprendemos a desvalorizar o que sentimos para
confiarmos no que nos dizem. Normalmente, convencemo-nos mais com palavras do
que com gestos. É nesse ponto que aprendemos a mentir e também passamos a
acreditar nas mentiras do outro.
"É frequentemente esquecido que o dom da fala, tão
fundamentalmente empregado, foi elaborado tanto com o propósito de ocultar o
pensamento através da dissimulação e da mentira, como com o propósito de
elucidar ou comunicar o pensamento.". (Bion, em ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO,
1970).
Por conta da confusão em meio ao que se sente e o que é
possível se compreender, a neurose encontra espaço para se proliferar. Não
conseguindo encontrar uma forma coerente para expressar o que se sente, por não
estar de acordo com o que se sabe, o sintoma deve erguer-se como resultado.
A sinceridade juntamente com o afeto dos pais ou daqueles que
possam cumprir essa função, deve formar a base no desenvolvimento de uma
criança.
Configuram elementos fundamentais para que possa se desenvolver um adulto
sincero e afetuoso. O real aprendizado ocorre através de exemplos.
Um pai que ama realmente, quando diz “não”, não carece de
esclarecimentos. Um vínculo de respeito não está subordinado às justificativas.
Até porque, a demasia nas justificativas é sinal claro da falta de respeito.
Aquilo que estamos sendo fala sempre mais alto do que aquilo que dizemos.
No entanto, a convivência com figuras de autoridade, como
professores quando despreparados, ou ainda a influência de relacionamentos
tóxicos, irão induzir e contaminar a forma de pensar daquele que não pôde
contar com uma base de sinceridade, de amor e consequentemente de respeito.
Privado de experiências num lar que possa fornecer recursos minimamente
necessários para o bom desenvolvimento da estrutura emocional, a criança se vê
vulnerável a introdução de ideias perversas quando inserido no universo social.
A partir da proposta psicoterapêutica de Melanie Klein (1882
– 1960), assim como de seus sucessores como Wilfred Bion e Donald Winnicott
(1896 - 1971), o ambiente terapêutico configura-se num continente emocional
acolhedor, com a função de desobstruir os obstáculos na transformação e
maturação dos elementos mentais. Esse processo deve acontecer muito menos
através da fala e mais pelos gestos. “Klein buscava lidar com características
do infantil, tanto na criança quanto no adulto. O infantil, ou infante, do
latim in, ‘não’, mais fari, ‘falar’.”. (Martino, 2015).
Num espaço emocional, que dê continência aos elementos
trazidos pelo paciente, a experiência deve ir para além da palavra. O verbal
deve ser apenas uma extensão da configuração do ambiente. “Falo da capacidade
pós-verbal, onde a comunicação se expande para o plano intuitivo.” (Martino,
2018). A intuição deve guiar essa ordem de experiências já que aquilo que se
possa saber não tem importância.
“Quando é possível desenvolver esse nível de
capacidades, então é acessada a propriedade de expansão que vai para além do
verbo, na experiência do intuir, e assim, muitas vezes a comunicação verbal é
desnecessária.”. (Martino, 2018). Os atos acabam por revelar aquilo que as
palavras não conseguem expressar. A base da confiança não pode depender do “saber sobre”, mas deve partir do “não precisar saber”.
BION,
Wilfred. R. O APRENDER COM A EXPERIÊNCIA. Rio de janeiro, Imago, (1962).
______________.
A Atenção e Interpretação. Imago, Rio de Janeiro, (1970/1973).
Freud,
S. FORMULAÇÕES SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO MENTAL, em Edição
Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas - Edição Standard
Brasileira, IMAGO (1969-1911).
MARTINO,
Renato Dias. O LIVRO DO DESAPEGO – 1ª ed. São José do Rio Preto, SP: Vitrine
Literária Editora, 2015.
_________________.
ACOLHIDA EM PSICOTERAPIA – 1ª ed. São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária
Editora, 2015.
Fone:
17- 991910375
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2 comentários:
Muito claro e objetivo.
Ótimo texto prof.
Abraço.
Muito obrigada Professor! Excelente texto.
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