quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

DA IRRESPONSABILIDADE HUMANA

Uma faca pode ser usada para cortar alimentos, ou mesmo passar manteiga no pão, contudo, a mesma faca pode ser utilizada para ferir, ameaçando a vida tanto do outro quanto de si mesmo. Um instrumento pode ser utilizado para inúmeros fins. Quando Wilfred Bion (1897 – 1979) apresentou sua Grade, que foi criada como um instrumento para exercitar e desenvolver a intuição do analista, concentrando e sintetizando muito das principais idéias desse pensador, ele a comparou com uma régua. Sendo que uma régua pode ser utilizada para inúmeros fins. 
Bion lembra-se que quando era uma criança, na escola o professor punia os alunos usando a régua para bater na palma da mão. “Não era para isso que a régua foi feita ou porque era marcada em polegadas e centímetros, mas funcionava. Isto é tudo a respeito do qual eu posso pretender para a grade. Algumas pessoas podem estar aptas para usá-la para diferentes propósitos” (Bion, 1974). Mesmo a psicanálise pode se enquadrar nisso, onde o suposto psicanalista pode se utilizar dos recursos psicanalíticos para infringir dor, ferir, menosprezar, se colocando superiores ao outro.
Enquanto o que determina a habilidade no uso de certo instrumento é a capacidade intelectual, o que define o bom ou mau uso que se possa fazer deste utensílio é a maturidade emocional. A saber, o intelecto se desenvolve independente das condições afetivas, por outro lado o desenvolvimento da maturidade emocional está diretamente subordinado à qualidade na saúde dos vínculos. O conhecimento intelectual se desenvolve pela doutrinação na educação, já a maturidade se desenvolve a partir de vínculos que possam nutrir de amor e sinceridade. A expansão da capacidade emocional se dá a partir da possibilidade de se viver situações difíceis, onde se possa contar com o amparo que proporcione o acolhimento nessa dificuldade. Qualifica o sujeito a lidar com suas emoções, o que é o fundamental para que tenha boa qualidade de vida, já que aquele que não consiga tolerar suas emoções encontrará dificuldade em qualquer que seja a experiência que possa se envolver.
A maturidade emocional está configurada justamente na capacidade de se responsabilizar por si mesmo. A criança percebe que existe alguém que se responsabiliza por ela e assim se sente confiante no campo das experiências. Quando a criança sente que alguém realmente se responsabiliza por ela, não apenas desfruta da proteção na situação atual, mas também tem um modelo para que ela possa aprender a se responsabilizar por si mesma. Sendo assim, a auto-responsabilização passa a ser um atributo da maturidade emocional.
Saber sobre, ou ter um conhecimento intelectual de algo não qualifica um sujeito a ser capaz de realmente viver uma experiência com o que supostamente se imagina saber. O que realmente importa é a disponibilidade para se experimentar da experiência de lidar com aquilo que realmente acontece. Uma coisa é saber sobre algo, outra coisa é ter vivido isso que se supõe saber. Um bom desempenho na experiência, onde seja possível o aprendizado e consequentemente o crescimento depende diretamente da vinculação saudável, que traga respaldo na vivência desse processo e propicie a maturação emocional. 
Até onde é possível se perceber, a configuração da sociedade contemporânea fornece inúmeras garantias que protegem o sujeito de possíveis abusos que possa sofrer no que se refere a serviços e produtos oferecidos ao consumidor, ou ainda, quanto ao empregado, em relação ao empregador. Órgãos governamentais ou não são criados, em defesa do consumidor, assim como do empregado. Uma conquista onde o sujeito se previne quanto a possíveis abusos, no entanto, por outro lado, vai gradualmente estimulando a isenção da autoresponsabilização. Isso obstrui a ampliação da maturidade emocional no desenvolvimento da autonomia da personalidade saudável, com prejuízo na possibilidade de se aprender com a experiência. Com isso, me parece ocorrer um fenômeno mórbido. O sujeito tem desenvolvido grande inteligência para se resguardar com seus direitos e muito pouco se dedica a assumir sua cota de responsabilidade nas experiências.
A vida em sociedade parece treinar as crianças (cada dia mais cedo) para serem empregados e consumidores. Na melhor das hipóteses, a expectativa é que se tornem doutores ou empresários bem-sucedidos. Em contrapartida, a instrução quanto às tarefas de cuidado com os filhos é cada dia mais rara. Quando na realidade, é isso que propiciará o desenvolvimento emocional. Mais rara ainda é a vivência num ambiente onde haja cuidados maternos dedicados e a presença da função paterna até, ao menos, o terceiro ano de vida, o que garantiria o mínimo de chance para se desenvolver a maturação emocional suficiente para se iniciar a experiência de sociabilização.

BION, Wilfred R. Bion’s brazilian lectures. 2 – Rio/São Paulo, 1974. Rio de Janeiro: Imago, (1974). 


Fone: 17- 991910375

Um comentário:

Unknown disse...

Parabéns professor Renato , perfeito , quando não há modelo de funções materna e paterna , a criança terá que contar com a sorte, de encontrar alguém p acolhe la , e sendo assim sua criança terá grande dificuldade de maturidade emocional 😞