Repetimos nessa nova relação, características que em sua maior parte coincidem com experiências já vividas. Essa é a base do que Sigmund Freud (1856 - 1939), chamou de mecanismo de transferência, ocorrente em todas as relações, mas que se manifesta no paciente em atendimento, de forma marcante. No vértice de Wilfred R. Bion (1897 – 1979), os conceitos de “transformação” e “invariância”, aparecem em seu trabalho AS TRANSFORMAÇÕES de 1965, invocando o pintor quando reproduz na tela certa paisagem.
O artista necessita das invariâncias para que o observador (que não tem conhecimento da paisagem original) reconheça que aquilo que está no quadro é uma representação dessa paisagem original. Não obstante, esse mesmo artista revela também da capacidade de transformação, para partir do real sensório, compreendido no contato com a paisagem original (no caso pelo órgão da visão) e então representá-la em formato de pintura.
Pois bem, usando esse mesmo modelo, pensemos agora, na forma como nos relacionamos com as pessoas e coisas do mundo. Se assim fizermos, perceberemos algo muito próximo.
Algumas características das fases do desenvolvimento desse vínculo estão na ordem das transformações e por evoluírem se distanciam muito das formas primitivas de ligação afetiva. Entretanto, outras se mantêm na ordem das invariâncias enquanto persistem inalteradas até a vida adulta. Esta segunda ordem de características vinculares se mantém, repetindo-se em cada nova ligação que nos dispõe no mundo.
Através da psicanálise aprendemos o quanto não temos consciência daquilo que realmente nos motiva nas escolhas e o fato de que, aquilo que faz nos aproximarmos das coisas está longe do nosso conhecimento. Porém, não precisamos entender muito sobre as teorias do pensar para percebermos que fazemos isso justamente pelo mecanismo da identificação. Se observarmos o comportamento das crianças, isso fica bem claro. Aproximamo-nos das pessoas e coisas do mundo pois, de alguma forma nos vemos nelas. Isso é característico das crianças, mas em um olhar mais atento, perceberemos que se encontra fortemente inalterado nos adultos. Esse é o primeiro e maior motivo que nos leva a nos ligarmos a aquilo que existe além de nós mesmos. Quanto a isso Freud escreve em uma das melhores definições do conceito de identificação encontrada em sua vasta obra.
Em seu notável PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANALISE DO EGO, o pai da psicanálise propõe a identificação como sendo “a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa.” (Freud, 1921).
Freud nos mostra que isso acontece em conformidade com a primeira fase do desenvolvimento emocional. Nessa fase se entra em contato com o mundo através da boca, no que denominou fase oral. A área erógena do corpo, ou seja, a parte do corpo físico que se encontra mais sensível as excitações, está concentrada na boca. A boca é a parte do corpo (do eu) que entra em contato com o corpo do outro.
A necessidade nutritória (orgânica) está, nessa época da vida, fundida á satisfação de necessidades sexuais, protótipo das relações amorosas que devem se desenvolver. Nesse momento da vida, o vínculo afetivo coincide com a fonte de alimento. O ato de alimentar-se está, nessa época da vida, totalmente relacionado ao amor da mãe.
“A principio, a satisfação das zonas erógenas deve ter-se associado com a necessidade de alimento. A atividade sexual apoia primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida, e só depois torna-se independente dela. Quem já viu uma criança saciada recuar do peito e cair no sono, com as faces coradas e um sorriso beatífico, a de dizer a si mesmo que essa imagem persiste também como norma da expressão da satisfação sexual em épocas posteriores da vida.” (Freud, 1921).
Dessa forma é que Freud, em 1905 nos seus TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE, descreve a fusão de satisfações ocorrente no ato de mamar. Nessa época da vida, o bebê começa a criar recurso para perceber o outro e a si mesmo. Lentamente começa a se perceber desligado, porém, dependente da mãe e faz isso através de uma batalha com impulsos de retornar a segurança do seu ventre. Num desejo de retornar a posição de unificação do funcionamento mental com a mãe. O bebê suga o seio da mãe no intuito de satisfazer a libido concentrada na boca, alimentar-se do leite, mas também com a ânsia de incorporá-lo. O sentimento de liberdade, tão almejado para o adulto é extremamente desconfortável no bebê.
Nessa época da vida as transformações ocorrem de forma intensa, o bebê vive um fluxo de libido enorme emanando do seu interior, clamando pelo encontro com o outro e isso gera enorme oportunidade de crescimento. Contudo, a transformação em si é um conceito que traz a conotação da desorganização, do desordenado, do caótico. São libidos livres, soltas sem muita definição de direção ou de objeto. Bion chamou isso de elementos beta, em sua obra APRENDER COM A EXPERIÊNCIA de 1962. Por não ter capacidade de reconhecer o que realmente precisa, o bebê apenas chora e conta com a atenção e o cuidado daquele (mãe) que se sensibilizará com seu choro e o assistirá com seus cuidados.
De qualquer forma, nunca se tem certeza na transformação, por mais que exista certo grau de previsão. “O termo ‘transformação’ desorienta, a menos que se reconheçam limitações da implicação de ‘forma’.” (Bion, 1965). Nesse contexto a constância da forma é imprescindível para um desenvolvimento saudável desses conteúdos mentais que brotam no bebê. Na verdade, a invariância onde se encontra o ponto de apoio é o ambiente proporcionado na ação da maternagem.
Segundo Freud, esse modelo de ligação deve dar lugar a outro modelo mais evoluído de vínculo, o que chamou de ligação objetal. Num esquema progressivo do processo, poderíamos sugerir a seguinte sequência : a identificação é sinal de que se prenuncia a perda do objeto como parte do eu. Inicia-se a necessidade de reconhecer o outro além do eu, mas ainda com a condição de que esse outro seja uma extensão do próprio eu (como na ligação umbilical). Identifica-se com o outro e passa a ser igual a ele. Isso se da, pois nesse período talvez seja a única forma de admitir o desligamento. Na impossibilidade da incorporação que induziria a “ser” o outro, o processo leva a querer “obter” o outro. Nessa etapa é que se abandona a posição de objeto (aquele que é desejado) e conquista-se o status de sujeito, ou seja, aquele que deseja (o objeto). A ideia importante está no fato de poder diferenciar-se do objeto. Agora com a consciência das diferenças entre o eu e o outro, pode se estabelecer certo vínculo saudável. Podemos afirmar que está pronto para aprender a amar. Quem só ama o igual ainda não aprendeu amar.
No entanto, cada evolução nos processos mentais, que conduz á maior capacidade de estabelecer vínculos saudáveis com as pessoas e coisas do mundo, também estará sempre permeada de resistências. O que se espera na vida adulta é que possa ter seguido um processo de desenvolvimento mental saudável, e que grande parte dessas características possam também ter sido elaboradas, dando lugar a modelos mais amadurecidos de relacionamento. Características possessivas nos relacionamentos e tentativas de incorporar o outro como sendo parte de si mesmo, são sintomas claros de alguém que, mesmo na idade adulta, ainda guarda grande parte de características vinculares imaturas (invariantes), contudo, tenta bravamente evoluir (transformação) emocionalmente e em sua forma de ligação efetiva.
Bion, W. R. APRENDENDO COM A EXPERIÊNCIA. Rio de Janeiro: Imago, 1962.
__________. AS TRANSFORMAÇÕES. Rio de Janeiro, Imago, 1965.
Freud, S. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas - Edição Standard Brasileira, IMAGO (1969-80)
Fone: 17- 991910375
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