sexta-feira, 28 de julho de 2023

SOBRE A DEISINTEGRAÇÃO – Prof. Renato Dias Martino



SOBRE A DEISINTEGRAÇÃO

A desintegração é uma característica fundamental do paciente psicoterapêutico. Toda dor psíquica, toda angústia, toda ansiedade estão relacionadas a uma forma de desintegração, no nível emocional. Seja ela num caso brando de neurose ou, seja ela dentro de uma perspectiva severa da psicose, existe ali uma forma de desintegração. A desintegração ela não é necessariamente patológica, ela está presente no sujeito mais saudável, no sujeito que está desempenhando o seu fluxo natural da vida, ela vai estar presente ali, de alguma forma nas experiências da vida. O sujeito precisa de certa desintegração no fluxo saudável da sua vida.

PULSÃO DE MORTE

Um conceito extremamente difícil de compreender porque, na realidade, quando a gente está falando de pulsão de morte, nós estamos falando muito mais de ausência de pulsão de vida do que uma força que atua. A presença é pulsão de vida, a presença é libido. Na ausência da libido, o que atua é a porção de morte. A libido é aquilo que vem para unir, a pulsão de morte é aquilo que vem para separar. Todas as vezes que a gente tem uma experiência de morte, nós temos uma experiência de separação. Então, quando o sujeito morre, separa-se o corpo da alma. A partir do corpo que morreu, começa a ver ali, uma desintegração da matéria. Então, a morte quer dizer separação e a vida quer dizer junção, união. A desintegração é um fator da função da pulsão de morte, por mais esteja presente no fluxo da vida. E aí que entra a confusão, porque muitas vezes, para preservar a vida, eu preciso desintegrar. Olha que coisa paradoxal! A desintegração, por mais que seja um fator da pulsão de morte, ela está presente na autopreservação também. Eu preciso muitas vezes, separar para continuar vivo. Percebe, como é difícil de entender essa conceitualização, por mais que ainda assim faça um sentido danado? A desintegração é uma característica presente, tanto na dimensão material concreta, naquilo que faz parte do sensorial, daquilo que eu posso perceber pelo meu aparato sensorial, os órgãos dos sentidos, como daquilo que não está dentro da perspectiva do sensorial, como são os processos psíquicos, processo emocionais-afetivos. Ela pode estar sendo um processo natural, saudável, do fluxo da vida, quanto dentro da perspectiva do nocivo. Mas também pode ser um sinal de que está acontecendo alguma coisa nociva. O que é uma desintegração natural por exemplo, dentro de uma perspectiva concreta, material? Uma coisa bem simples. A pulsão de morte, quando ela é projetada no mundo externo, ela se transforma em pulsão de destruição, segundo Freud. Um alimento que você põe na boca e você precisa tritura-lo, desintegrá-lo, para que você possa se alimentar dele. Imagina que você não consiga destruir o alimento que você está ingerindo, como é que você pode preservar a sua vida na alimentação? Não tem como. Então, você precisa destruir para preservar a vida. No nível emocional-afetivo, quando você, por acaso está num ambiente nocivo, tóxico e você se desliga daquele ambiente tóxico, internamente, emocionalmente, afetivamente, você se desliga dali, se coloca numa imaginação do futuro, ou numa lembrança, numa recordação do passado, você desintegrou-se naquele momento. Você não está mais conectada com o presente, porque o presente está sendo muito pesado e nocivo. Quando eu estou, por exemplo num relacionamento tóxico, é importante que eu me separe dessa pessoa. Houve aí, uma ação da pulsão de morte, para preservar a vida. Vamos usar um outro exemplo um pouco mais material e mais individual. O sujeito por exemplo está com uma trombose ele precisa. Então, amputar aquela parte do corpo para que ele continue vivo. Esses dois conceitos de pulsão de vida e porção de morte, e a pulsão de morte na sua extensão da pulsão de destruição, estão sempre envolvidos, um no outro, inseparáveis. O próprio sujeito que tem uma predominância psicótica da mente, por exemplo, a desintegração que acontece ali, muitas vezes, é uma defesa para que ele continue funcionando com certa harmonia, apesar da sua configuração da predominância psicótica. No neurótico também, muitas vezes, para evitar um surto, ele desintegra, ele engana a si mesmo, ele ilude a si mesmo. O próprio processo de quimioterapia, ou até a radioterapia, tem características da pulsão de morte. Então, um processo de cura tem características da pulsão de morte. Por que que tem características a pulsão de morte? Porque o sujeito submetido a quimioterapia ou a radioterapia, que são as terapias aplicadas para pacientes com câncer, oncológicos, a ação desse tipo de terapia faz com que o corpo solte a pele, solte o cabelo, solte as partes que talvez não sejam fundamentais para a vida prosseguir o fluxo. Para que ele possa restabelecer a saúde, porque junto com isso o câncer também solta do corpo. Existe aí, uma fragmentação, existe em uma desintegração, uma cota de desintegração no processo quimioterápico, ou radioterápico, que é justamente aquilo que vai promover o restabelecimento da saúde. A pulsão de vida e pulsão de morte é uma coisa e libido do ego e libido o objetal são outras conceitualizações. Enquanto a pulsão de vida é aquilo que liga e a pulsão de morte é aquilo que separa, a libido do ego, a libido narcísica é quando a libido está voltada para o ego, ou seja, quando o sujeito está alto erotizado e a pulsão objetal é quando o sujeito está com a libido voltada para o outro. Quando ele perde o outro, ele perde o objeto externo, ele volta a libido para o ego. Ele introjeta aquela libido, aquele interesse, que estava no outro, para um interesse que está em si mesmo. O próprio Freud, coloca lá, SOBRE O NARCISISMO UMA INTRODUÇÃO, 1914. Ele disse que assim, o narcisismo é uma forma para não adoecer. Teve aí, uma ação da pulsão de morte, uma separação do outro e reintrojeta essa libido para o eu, numa tentativa de não adoecer, ou seja, numa autopreservação. Mas ele vai precisar, em última instância, voltar a amar o outro, porque senão, aí ele vai definitivamente cair doente. Quando a Melanie Klein propõe a posição esquizoparanóide, ela não está necessariamente propondo uma forma de funcionar patológica, mas ela está propondo uma forma de funcionar primitiva, a princípio e como todo o funcionamento emocional-afetivo, funciona a partir da expansão do crescimento, até naquilo que a gente propõe de espiral o progressiva, nas voltas que vão se alargando, no desenvolvimento emocional-afetivo, quando o sujeito cristaliza, numa forma de funcionar, aí sim, começa a gerar uma configuração patológica. Mas a princípio, existe ali, uma posição primitiva e não patológica. Da mesma forma, pulsão de morte não é patológica. Da mesma forma, desintegração não é patológica, mas ela passa a ser patológica na medida em que se cristaliza, se engessa, se repete sem que possa crescer e expandir. O bebê funciona de maneira esquizo, cindida, na realidade afastando o prazeroso do desprazeroso, justamente para preservar o seu funcionamento. É a única forma que ele dá conta de funcionar. Separando a mãe que vem e nutre, e satisfaz, da mãe que priva e deixa ele sem o leite, sem a satisfação por não conseguir unir essas duas mães numa mãe total. Ele divide para manter o funcionamento. Fazemos da mesma forma ainda hoje, enquanto adultos. A miúde fazemos isso. Vira e mexe fazemos essa coisa de separar o bom do ruim. Esta fragmentação é, mais uma vez, uma manifestação da preservação da vida. É uma manifestação da pulsão de morte, mas tendo implícito a preservação da vida. Percebe, como é complexo isso? Percebe como é difícil de entender? Por mais que faça sentido. Pulsão de morte e punção de vida, sempre juntas, sempre implicadas uma na outra. Então, o bebê, por não ter ainda um ego estruturado o suficiente para que ele possa tolerar os desconfortos, ele passa a sentir e vai usar o mecanismo de defesa que a Melanie Klein chamou de identificação projetiva. Ele vai projetar esse desconforto no mundo externo. Eu projeto desconforto no outro e começo a me relacionar com o outro, não pelo que o outro realmente está sendo, mas por aquilo que eu projetei nele e isso essencialmente acontece com o sujeito que não é capaz de se responsabilizar. Quando eu não sou capaz de me responsabilizar eu projeto isso no outro, mas isso gera persecutoriedade, por isso é esquizo-paranoide. Existe aí, uma paranoia envolvida. Se o mau está no outro eu fico com medo do outro. Este mecanismo essencialmente é usado para evitar o sofrimento. Mas o sofrimento que vai trazer a expansão a integração, implica em sofrimento, em desconforto. Integrar-se é desconfortável! Muitas vezes, na clínica, a gente tem essa confusão. Integrar-se então, deve ser uma coisa gostosa! Estar integrado deve ser uma coisa prazerosa! Não! Estar integrado é extremamente desconfortável. O prazeroso é desintegração, o prazeroso é ter o bom separado do ruim. Do jeito que ele está, desintegrado, tem uma série de benefícios. O que é desintegração? É quando uma parte da personalidade não está de acordo com a outra. Uma parte quer ir para um lado e outra parte diz que é do outro lado. Esta configuração é extremamente confortável, porque ora eu estou olhando para cá e ora eu estou olhando para lá. E por mais que essas duas partes, muitas vezes possam ter conflitos, ainda assim, eu tenho essa mobilidade de escolha. Uma hora eu olho para cá e acho que isso daqui é o certo, outra hora eu olho para lá e penso que aquilo é o certo. A desintegração é sinistramente confortável! Quando a gente propicia um ambiente que traz a integração, isso causa um desconforto muito grande, porque o sujeito passa a perceber que na realidade não tem dois caminhos. O caminho é um só! A realidade é uma só! A verdade é uma só! E aí, ele precisa passar a perceber isso, ele precisa passar reconhecer esta realidade ele precisa passar aprender a respeitar essa realidade e acima de tudo, aprender a se responsabilizar por esse caminho que ele passa a percorrer. E isso é desconfortável, isso traz para ele a realidade de que não existe escolha para o sujeito que está de acordo com a realidade. A vida não é feita de escolhas, a vida é feita da realidade. A escolha é uma grande ilusão do sujeito, mas a ilusão é prazerosa, mas ainda assim, a verdade é soberana. A psicoterapia é desconfortável, a psicoterapia que não é desconfortável a gente precisa rever isso aí, porque uma psicoterapia que está sendo real, que está sendo bem sucedida, propicia a integração e a integração é desconfortável. Então, quando a psicoterapia não está sendo desconfortável, não está sendo bem sucedida. É por isso que é importante que o sujeito tenha aquilo que a gente chama de analisabilidade, requer um nível de tolerância à frustração pré-psicoterapia para que ele possa tolerar o processo desconfortável da psicoterapia. Muitas vezes o processo de psicoterapia quando ele não está sendo bem sucedido, ele faz um desserviço à integração, ele desintegra muito mais o paciente do que integra. Quando a Melanie Klein propõe a evolução da posição esquizoparanoide para a posição depressiva, a palavra já revela o sofrimento. A posição é depressiva, a configuração depressiva. É desconfortável porque envolve a culpa, porque envolve o sentimento de pesar, o sentimento de ter espoliado, de ter danificado o objeto do qual se depende. Na medida em que o sujeito consegue tolerar esse sentimento de culpa, ele vai aos pouquinhos, percebendo, reconhecendo, aprendendo a respeitar, esse sentimento de culpa, até que esse sentimento de culpa possa amadurecer para a responsabilização. Na medida em que ele se responsabiliza pelas suas experiências, não tem mais culpa e aí se elabora a posição depressiva. A elaboração da posição esquizoparanoide culmina na posição depressiva. A elaboração da posição depressiva culmina na responsabilização. Se a vida está seguindo o seu fluxo, não existe uma desintegração completa do ego, mas parcial, em cotas. A desintegração saudável é uma desintegração transitória. Precisa ser transitória, tem um período ela. Precisa ser conduzida para a integração, para ser saudável. Quando ela se instala como algo engessado e cristalizado, ela é patológica. O mecanismo de defesa do bebê é cisão, ele cinde e projeta, porque não é capaz de reprimir e segurar. O amor da mãe é a essência da integração. Só o amor da mãe é a essência da integração? Não! O limite reconhecido através da figura paterna também. Não existe integração sem reconhecimento do limite. O reconhecimento do limite é fator da função de integração. O amor integra e o limite traz a forma. Então, existe um limite para a integração. Nada pode ser integrado, se não tiver um limite.

DESINTEGRAÇÃO NA NEUROSE 

Como é que funciona o mecanismo de repressão num neurótico? Ele vive uma experiência desconfortável e ele reprime essa experiência. O que é reprimir uma experiência? É negar que essa experiência ocorreu, negar para si mesmo e esconder de si mesmo, mas ao reprimir ele desenvolve automaticamente um sintoma. Essa experiência com um objeto que foi reprimida vai criar um substitutivo. Eleger um objeto substitutivo dentro da formação sintomática e aí, o Freud vai dizer: “toda repressão advém de uma perversão”. Um desejo perverso reprimido se transforma em um sintoma neurótico. Desejou-se alguma coisa de uma forma proibida, ou de uma forma perversa, reprimiu-se esse desejo, por ser proibido e desenvolve-se então um sintoma, de alguma forma aceitável socialmente, mas ainda assim, patológico. Também no neurótico existe uma desintegração. Também no neurótico existe uma divisão do eu. Quando eu reprimo não quer dizer que esse desejo deixou de existir, ele continua existindo, mas agora separado do eu. Eu não sou capaz de me responsabilizar por isso, por mais que ainda deseje, mas eu escondo de mim mesmo que eu desejo isso, através da repressão. Também o sintoma neurótico é desenvolvido para que o sujeito possa continuar funcionando. Ele desenvolve esse sintoma, esse objeto substitutivo, para continuar funcionando. Já no sujeito que tem a predominância do desligamento com a realidade, ocorre certa desintegração psicótica. E aí, é importante a gente se lembrar que nós estamos falando de um sujeito que tem a predominância da parte neurótica e outro sujeito que tem a predominância da parte psicótica. Todos nós temos partes neuróticas, partes psicóticas, partes saudáveis... Nenhum de nós está isento de cotas dessas partes. Mas um sujeito que tem a predominância da parte neurótica vai usar o mecanismo de repressão, vai usar mais um mecanismo de repressão. Ele também vai usar mecanismo de cisão, mas ele vai predominantemente, usar o mecanismo de repressão. O sujeito que tem a sua parte psicótica predominante, por sua vez, vai usar mais um o mecanismo de cisão. O mecanismo de identificação projetiva, porque o seu ego não é suficientemente estruturado para que ele possa usar mais o mecanismo de repressão. Para que o sujeito possa se utilizar no mecanismo de defesa de depressão, ele precisa tolerar a tensão que é gerada nesse mecanismo, ou seja, um conflito constante, onde uma parte deseja alguma coisa e outra parte reprime esta outra coisa. Quando existe uma desintegração persistente, essa desintegração está denunciando um possível colapso emocional. O que é um colapso emocional? Um surto, por exemplo. E o surto tanto pode ser externo, quanto o interno. Ele tanto pode ser para fora, quanto para dentro. Um surto de ansiedade, ou um surto de angústia.

PREJUÍZO NA DESINTEGRAÇÃO

A questão fundamental! Quando o sujeito está desintegrado, existe dois prejuízos básicos. O primeiro é que ele fica limitado a usar a sua energia parcialmente, porque uma parte vai para um lugar e outra parte vai para o outro lugar, por conta da desintegração. E um posterior prejuízo é porque persistindo essa desintegração, uma parte se volta contra a outra. Isso causa uma fadiga emocional enorme. Muitas vezes, sem o sujeito de dar conta disso.

DESINTEGRAÇÃO  SOCIAL

Se a desintegração persistente, denuncia uma eminência de colapso no sujeito. Também na sociedade é assim. Quando a sociedade começa a se desintegrar, a se fragmentar de alguma forma, criando classes é porque isso está denunciando um colapso, é porque a coisa não está funcionando de maneira saudável. Quando a sociedade começa a se desintegrar, seja por pela cor da pele, seja pela orientação sexual, pelo sexo, ou seja, pelo que for, quando existe essa desintegração e a gente perde a noção de que todos nós somos humanos, nós estamos aí num eminente colapso. Esta sociedade, antes foi construída por sujeitos que também estão desintegrados. Quando o sujeito desrespeita ao outro, por qualquer que seja a característica do outro, ele antes de desrespeitou a si mesmo. Porque não foi respeitado pelos seus pais, não aprendeu a se respeitar e agora não consegue respeitar ninguém mais. Desrespeita a um negro, desrespeita um branco, desrespeita um japonês, um homossexual, ou seja, lá quem for. O sujeito quando desrespeito o outro por conta da sua orientação sexual, ou por conta do seu tom de pele, ele não deixa de desrespeitar todos os outros.

PSICOTERAPIA E INTEGRAÇÃO

O processo psicoterapêutico é por si só um recurso por excelência, para a integração do sujeito. Sem que precise se desenvolver técnicas específicas para isso. A psicoterapia já é, por si só, um processo que propicia a integração.

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