TEORIA DOS SELFS
Winnicott contribuiu com a teoria dos selfies. Ele separa a personalidade em dois selfies, self verdadeiro e selfie falso. Eu verdadeiro e eu falso. Dentro da proposta do Winnicott, o sujeito teria uma essência espontânea chamada eu verdadeiro e um eu falso que, de maneira saudável estaria a serviço de proteger o eu verdadeiro. Quando a gente fala de força dentro do âmbito emocional e nas relações afetivas, nós estamos falando essencialmente do falso eu. Só o “falso eu” pode ser forte. A força não pode ser um atributo do “verdadeiro eu”, porque o “verdadeiro eu” é uma essência. O “verdadeiro eu” é a parte mais primitiva do sujeito, é a parte original do sujeito, é a essência do sujeito. Depois ele vai desenvolvendo a parte externa, que ele chamou de “falso self”. Assim como a fruta que tem o seu fruto verdadeiro ali, mais próximo das sementes e o pseudofruto que está mais externo, nós também dentro da personalidade vamos de maneira análoga, encontrar uma essência próximo das nossas sementes, não é isso? Das nossas origens e uma parte mais externa que vai ser chamado de “falso self”, “falso eu” é o eu social, é aquele que se sociabiliza com o outro. Vale lembrar que, quando a gente fala de “eu social” nós não estamos falando de “eu afetivo”. Relações sociais não são relações afetivas. Relações afetivas não são relações sociais.
REALIZAR OU PRODUZIR
É importante que a gente possa separar realização de produção. Só o selfie verdadeiro é capaz de realizar, porque só o selfie verdadeiro é espontâneo e criativo. O falso self, o “falso eu” pode, na melhor das hipóteses produzir. Ele produz. Produzir não é realizar. Produzir é padronizado e atende exclusivamente à demanda do outro. A criação que vai se desdobrar na realização é uma extensão da verdade do eu. Por mais que a produção seja para atender a demanda do outro, a realização só pode ser realização quando inclui o outro, mas inclui o outro não para atender a sua demanda, mas porque isso afeta o outro. Porque chega até o outro afetivamente. Enriquece o outro, não simplesmente satisfaz uma demanda.
VOCAÇÃO
Então, o sujeito tem que ser forte, o sujeito tem que ser inteligente, o sujeito tem que cumprir inúmeras demandas que vem do outro e com isso ele vai perdendo a espontaneidade. Com isso ele vai perdendo a possibilidade de criar. Com isso ele vai perdendo a possibilidade de ouvir a voz sutil da sua própria vocação. Porque desde cedo ele precisou trabalhar para produzir e com isso conseguir a aprovação do outro. Ele precisou fazer alguma coisa que o outro queria que ele fizesse, porque senão ele iria perder a atenção do outro. E aí, ele foi obstruindo a sua capacidade de criação. E aí, quando ele chega na idade adulta... O que eu faço? O que eu estou fazendo? Que profissão que é essa que eu estou? Que relações são essas que eu tenho? O que eu estou fazendo aqui? A essência dele não está ali. A Verdade dele não está ali. Ele não consegue ser verdadeiro na sua profissão, ele não consegue ser verdadeiro nas suas relações, porque a vida inteira ele teve que fazer para cumprir a demanda do outro, ou seja, sendo falso.
FORÇA E PRODUÇÃO
Quando o sujeito não consegue elaborar a produção pela demanda do outro, ele não vai conseguir passar para o próximo estágio, por assim dizer, que é a realização, que é a realização espontânea do seu verdadeiro eu. Ele vai ficar ali, dissimulando, retendo ou expelindo, ou soltando as suas produções, conforme a reação do outro. Muitas vezes o sujeito, ele precisa fazer força para reter ou fazer força para expelir. Então a força está ligada diretamente à produção.
ESPONTANEIDADE
Falta de criatividade, a dificuldade em exercer a sua espontaneidade na criação, na realização pode vir a ser uma exacerbação do falso eu. Uma vida onde o sujeito precisou construir um falso eu para lidar com as questões que vinham da demanda externa pode vir a trazer para ele um prejuízo na vida adulta de déficit na capacidade criativa, na capacidade de realização, na capacidade de espontaneidade. A personalidade dele acabou sendo estruturada com um investimento muito maior no falso eu do que na nutrição do verdadeiro eu, muito mais na elaboração de mecanismos para satisfazer a demanda externa do que na capacidade de nutrir a essência do eu.
FALSA FORÇA
O falso eu é um constituinte da personalidade, mas de maneira saudável, este falso eu serve para proteger o verdadeiro eu e de uma maneira nociva ele cresce com a impressão de que ele é a verdade do eu. Isso acontece sufocando o verdadeiro eu.
DISSIMULAÇÃO
Nós estamos aqui criticando a força? Não! Não estamos criticando a força. A força é necessária, quando for necessário defender o verdadeiro eu. Quando for necessário defender o verdadeiro eu através de uma dissimulação. Tem uma borboleta, uma mariposa, não sei se é borboleta ou mariposa, que tem duas bolas nas asas que parecem dois olhos de coruja. Então, quando ela se sente ameaçada ela abre asas e aquelas duas bolas ficam parecendo uma cara de um predador. Então, nós não podemos criticar as asas da borboleta, ou da mariposa, dissimulando um predador, porque ela está se defendendo, mas ela não é um predador.
INVESTIR
Se eu estiver convivendo num ambiente ameaçador, eu preciso parecer forte. O eu falso é importante na medida que eu esteja inserido num ambiente nocivo, ameaçador. Mas a insistência em se manter num ambiente ameaçador faz com que você se torne falso. Faz com que você confunda a sua essência com o falso eu. É claro que é importante, o falso eu, mas quando este falso eu predomina, o eu verdadeiro padece. E quando eu estou insistindo em conviver num ambiente onde eu sou ameaçado o tempo todo, eu acabo investindo energia muito mais na falsidade do que na minha verdade.
FRAGILIDADE
Na medida em que você não se utiliza do falso eu no momento necessário, adequado, para você se utilizar você, adoece, porque o seu eu verdadeiro fica exposto e o eu verdadeiro é frágil e ele é contaminado com muita facilidade, ele é machucado com muita facilidade. Então, é necessário que eu possa lançar mão do meu falso eu no momento adequado.
INSTINTO
Todas as vezes que o sujeito estiver se defendendo, esta defesa foi ativada pelo seu instinto de autopreservação. Então, o “falso eu” é ativado pelo instinto de autopreservação, tanto no âmbito tóxico, quanto no âmbito saudável. No âmbito tóxico, quando o sujeito, ele desenvolve um falso eu muito enrijecido, muito proeminente, também foi um instinto de autopreservação que despertou. Por conta do ambiente nocivo, foi obrigado a enrijecer esse falso eu de tal maneira que, hoje ele não dá conta mais, ele não consegue acreditar na sua verdade. Mesmo que ele não esteja mais vivendo num ambiente ameaçador.
FORÇA OBSTRUTORA
A força é algo obstrutor. O sujeito acreditar que é forte é uma obstrução no caminho da transformação. Quando ele acredita que ele é forte, ele está envolvido numa sensação de onipotência que a transformação fica obstruída de acontecer. Não precisa acontecer transformação nenhuma porque eu aguento! Quando ele chega na psicoterapia, ele começa a perceber que ele não aguenta nada, que ele precisa começar a reconhecer a sua fragilidade. Porque nós somos frágeis e dentro desse reconhecimento da fragilidade, ele vai aprendendo a respeitar a sua fragilidade, se responsabilizar pela sua fragilidade e este processo vai fazer com que a transformação aconteça e ele se distancie daquilo que na realidade vem ferindo, vem machucando, vem intoxicando há tempos.
SER FORTE
A principal utilidade de a gente estar vendo essa ideia de força no nosso diálogo diário e cotidiano, nas nossas conversas e sobretudo na nossa prática clínica é que este conceito pode vir a sugerir uma ativação superegóica. Uma promessa de algo que não é real. Uma promessa, em primeiro momento para si mesmo e depois para o outro. Prometer que o sujeito seja forte. Isso é extremamente nocivo na prática clínica. Não só na prática clínica, na nossa vida cotidiana também é nocivo, porque a nossa natureza é frágil. A nossa natureza, sobretudo dentro da perspectiva emocional e dos vínculos, é de fragilidade e quando a gente está se utilizando do conceito de força, de ser forte, nós estamos promovendo uma ilusão, que depois vai ser cobrada. Tanto pelo eu, quanto pelo outro. Tanto pelo “deveria ser” interno do sujeito, daquilo que ele tem como “ideal de eu”, quanto pelo outro, que julga que nós somos fortes.
NATUREZA EMOCIONAL
A natureza emocional é frágil. Ter a natureza frágil emocionalmente não quer dizer que o sujeito está enfraquecido. Frágil é a concepção. No entanto, quando o sujeito está inserido num ambiente hostil, ameaçador, é importante que ele pareça forte. Ele é forte? Não! Porque, a sua natureza é frágil. Claro que nós estamos falando aqui do âmbito emocional, mas ele precisa parecer forte, porque ele está inserido num ambiente onde ele é ameaçado o tempo todo e parecer forte é uma defesa. A força emocional é uma defesa. Quando o sujeito é forte emocionalmente é porque ele está cheio de defesas e as defesas são essencialmente ilusões, fantasias, ideais, não tem a ver com a realidade, porque quando o sujeito está de acordo com a sua realidade, ele está frágil.
SELF TOTAL
Um selfie total é a integração do falso selfie com o verdadeiro selfie. É quando o falso self, é quando o “falso eu” está num acordo com o verdadeiro eu. Quando a função do falso eu é proteger o verdadeiro eu. Isso é um self integrado, um eu integrado, mas quando o sujeito acredita ser forte, na realidade a falsidade está sendo mais importante do que a verdade.
AMBIENTE DE PAZ
Quando o sujeito consegue conviver num ambiente saudável, de paz, de sinceridade, de amor de dedicação, ele passa a conseguir manifestar a sua fragilidade natural, a sua natureza frágil. Neste ambiente, ele passa a reconhecer a sua fragilidade e o setting terapêutico e o processo psicoterapêutico serve a este intuito. De propiciar um ambiente saudável para que o sujeito possa reconhecer, aprender a respeitar e se responsabilizar por sua fragilidade.
AMBIENTE SAUDÁVEL
Quando o sujeito está inserido nesse ambiente saudável, quando ele não precisa investir energia no falso eu, ou seja, investir energia para parecer forte ele consegue ter energia para investir no seu verdadeiro eu, logo para expansão e crescimento das suas capacidades. Essencialmente, capacidades emocionais que é a capacidade de se autoconter, de conter as suas emoções, acolher as suas emoções, aprender a respeitar as suas emoções e se responsabilizar por elas e ampliar a sua capacidade afetiva que é a capacidade de se ligar ao outro, de se dedicar ao outro, de abrir mão do seu pelo outro. Mas isso só é capaz, dentro da perspectiva de um ambiente saudável.
AMEAÇAS
Quanto mais ele investe no falso eu, tentando parecer forte, tanto menos ele tem energia para investir na sua verdade para ampliar as suas capacidades emocionais e afetivas. Porque ele está o tempo todo ameaçado, está o tempo todo tendo que se proteger de uma ameaça. Tanto de uma ameaça interna, que o obriga a ser forte, quanto de uma ameaça externa, que a partir dos ataques podem forçá-lo a parecer forte.
ADOLESCÊNCIA
Um dos grandes desafios de atender um adolescente é que o adolescente acredita que ele é forte. Ele acredita que ele pode encarar qualquer coisa. Ele tem a vitalidade, a virilidade, a jovialidade a seu favor. Então, ele acredita que ele tem força para peitar o mundo na sua revolta e o trabalho psicoterapêutico está completamente subordinado a o reconhecimento da sua fragilidade. Do sujeito perceber que ele não dá conta de tudo. Do sujeito perceber que ele é frágil perante as questões do mundo. Se ele não dá conta de perceber isso. Se ele não é capaz de reconhecer a sua fragilidade, o trabalho psicoterapêutico é inócuo. Porque o trabalho psicoterapêutico tem muito mais a ver com reconhecer fragilidades do que tornar o sujeito forte.
DA SEMÂNTICA
O conceito de tolerar tem dois radicais na sua semântica. Tem “tolerare”, que quer dizer aguentar, e tem “tollere”, que quer dizer tirar, destituir. Enquanto um radical te leva a se fazer forte, o outro te leva a destituir aquilo que esteja te ameaçando. Enquanto um te obriga a aguentar, o outro te orienta a destituir aquilo que esteja te ameaçando. Então, quando a gente usa a palavra tolerar, nós estamos aqui nos servindo do radical “tollere”, que é destituir, tirar, ou seja, tolerar é tirar alguma coisa que nos ameaça.
DESENVOLVER TOLERÂNCIA
A criança vai desenvolvendo tolerância a partir da relação bem-sucedida com a mãe e depois com o pai, mas a princípio com a mãe. Ela confia na mãe, ela internaliza a imagem de confiança que ela tem da mãe e ela passa a tolerar a ausência desta mãe que ora foi internalizada. No adulto que nos procura na clínica, esta tolerância vai ser desenvolvida a partir do vínculo com o psicoterapeuta. Essa tolerância vai acontecendo concomitante com o estabelecimento, a expansão e o estreitamento do vínculo com o psicoterapeuta. A internalização da imagem de confiança que o sujeito tem com o terapeuta vai destituindo a influência do “deveria ser”, do “ideal de eu”, do seu superego e introjetando a influência da dupla analítica que vai dissolvendo esta obrigação, esta exigência que o sujeito impunha a si mesmo.
Prof. Renato Dias Martino
Nenhum comentário:
Postar um comentário