sexta-feira, 10 de outubro de 2025

DESAPEGO E A TRANSFORMAÇÃO - Da Intolerância Saudável - Prof. Renato Dia...


APRENDIZADO

 

Numa mente saudável, as transformações são sempre importantes, porque por pior que seja a situação, esta situação, dentro de uma configuração saudável da mente, de uma mente integrada, serve na pior das hipóteses como aprendizado. Por mais nociva que seja, por mais dolorosa que seja, a tendência da transformação, se o sujeito estiver integrado. Se o sujeito estiver saudável emocionalmente e afetivamente, ele vai conseguir tirar alguma coisa de aprendizado dessa experiência de transformação.

 

DESCONFORTO

 

Toda transformação tem um início e este início é o desconforto. O desconforto é o que inaugura a transformação. O sujeito sente um desconforto e a partir da possibilidade da percepção desse desconforto e da condição de tolerar esse desconforto, ele começa um processo de aprendizado que vai se desdobrar na transformação. Se ele não consegue perceber esse desconforto, nada feito. Se ele percebe esse desconforto e não consegue tolerar esse desconforto, nada feito. Então, precisa haver a possibilidade de perceber, reconhecer e tolerar isto que foi reconhecido.

 

CONFORMADO

 

Muitas vezes o sujeito percebe, ele pode até perceber um desconforto. Muitas vezes o sujeito até reconhece esse desconforto que ele percebeu, mas ele não mobiliza qualquer atitude para que a transformação possa acontecer, porque muitas vezes ele acredita que ele não seja capaz de transpor este obstáculo e muitas vezes ele se conforma mesmo se sentindo desconfortável naquela posição.

 

LENTAMENTE

 

A transformação saudável vai ocorrer lentamente. Muitas vezes pode acontecer algum advento, algum fato que possa trazer uma mudança catastrófica, mas esta mudança catastrófica já estava sendo preparada há muito tempo. Algo já estava acontecendo lentamente e um fator fez com que desencadeasse a mudança catastrófica, que pode parecer para o sujeito que aconteceu de uma hora para outra, mas aquilo já estava sendo preparado há muito tempo. Assim como a gente vê uma flor desabrochando. A gente acha que foi de um dia para noite que a flor desabrochou. Não, um processo já estava acontecendo ali sem que a gente pudesse perceber.

 

TOLERÂNCIA TEM LIMITE

 

Tolerância tem limite. Quando a tolerância não tem limite, ela não é saudável. Para que a tolerância seja saudável, ela tem um limite. Quando passa desse limite, a tolerância passa a ser nociva, prejudicial. Ou seja, então nós estamos falando aqui de uma possível intolerância saudável. Quando esta tolerância passa da medida, ela precisa se desdobrar em intolerância, porque este fator está agredindo o eu.

 

INSTINTO DE AUTOPRESERVAÇÃO

 

O instinto de autopreservação é a base do funcionamento emocional. É o primeiro elemento que eu preciso entrar num acordo. Eu preciso estar de acordo com meu instinto de autopreservação para que os outros desdobramentos do funcionamento emocional possam ser bem-sucedidos. Uma equação iniciada com um equívoco jamais poderá chegar a um resultado coerente. E eu não estou falando de matemática. Quando a equação, por assim dizer, do funcionamento emocional começa num desacordo com o instinto de autopreservação, qualquer desdobramento disso não vai ser bem-sucedido, não vai ter coerência.

 

 INTOLERÂNCIA SAUDÁVEL

 

A intolerância passa a ser saudável quando ela está ligada a um fator que está obstruindo a transformação. Ser tolerante com fatores que obstruem a transformação é nocivo. Se configura naquilo que a gente chama de conformismo ou permissividade. Ou ainda numa zona de conforto onde o sujeito está ali estagnado. Se conformou com o estado cristalizado e a partir dali ele fica fixado. E aí, esta tolerância se converte em permissividade em todos os âmbitos, mas fundamentalmente no âmbito emocional que vai se desdobrar no âmbito afetivo.

 

ONIPOTÊNCIA

 

Muitas vezes o sujeito vive um contrassenso. Ele pode se julgar incapaz de viver a transformação e se conformar com certa situação. E por se julgar incapaz de viver esta transformação, ele acaba assumindo onipotência. Ele acredita que ele dá conta de se manter daquela forma. Ele acredita que ele dá conta de aguentar tudo aquilo que está acontecendo. Uma experiência de se julgar incapaz se desdobra numa experiência de sensação de onipotência, de que ele aguenta tudo.

 

SENTIMENTO DE CULPA

 

Muitas vezes o sujeito carrega um sentimento de culpa porque ele não acredita que é capaz de se responsabilizar por aquilo. Mas carregar o sentimento de culpa é muito mais pesado do que a atitude de se responsabilizar, porque a responsabilização liberta e a culpa é uma prisão, o sentimento de culpa, porque culpa não existe.

 

MORAL OU ÉTICA

 

Quando eu sou o meu melhor amigo, quando eu estou de bem comigo mesmo, quando eu estou de acordo comigo mesmo, qualquer pessoa que não esteja de acordo comigo, eu passo a me desinteressar pela relação. E aí, se essa relação for nociva ainda, quando essa pessoa estiver desrespeitando, sendo hostil, tanto menos, porque eu prefiro a minha companhia, porque eu prefiro a minha presença do que a presença de alguém que não seja capaz de me respeitar, porque eu estou me respeitando. Na moral, eu respeito o outro porque eu quero que ele me respeite. Na ética, eu respeito o outro porque antes eu já estava me respeitando e este respeito se desdobrou no respeito pelo outro.

 

O AMOR DO OUTRO

 

Ninguém dá conta de amar a si mesmo se não estiver sendo amado pelo outro. Amor-próprio tem a sua manutenção a partir do amor do outro. Ninguém é uma ilha. Ninguém consegue se manter sozinho sem que o outro esteja nos irrigando de amor e de verdade. Nós precisamos de um fluxo constante de amor e verdade. Muitas vezes a gente acredita que amor-próprio é algo que a gente consegue, sabe lá onde. Numa leitura de um livro de autoajuda, numa instituição religiosa, sei lá onde. Não. O amor-próprio só pode se desenvolver e se manter através da irrigação do amor que venha do outro, para que eu possa aprender a amar a mim mesmo e aí então desdobrar esse amor no amor pelo outro.

 

INTUIÇÃO

 

O sujeito entra num acordo com o seu instinto de autopreservação e a intolerância passa a ser um fator da intuição que está emanando do instinto de autopreservação. O instinto de autopreservação está mandando um recado através da intolerância por intuição. E muitas vezes você não consegue explicar isso. Muitas vezes você não consegue saber sobre isso, mas ainda assim é importante que o sujeito seja capaz de respeitar isso e tomar uma atitude a partir deste sentimento, apesar de não conseguir entendê-lo. O que muitas vezes a vida na sociedade nos impede.

 

AGUENTAR

 

O sujeito insiste em se relacionar com alguém hostil, desrespeitoso, que agride ele o tempo inteiro. E por conta disso, ele fica de bem do outro, mas de mal dele mesmo. Quando ele deita a cabecinha no travesseiro, ele encara a si próprio. E quando ele encara a si próprio, ele está completamente descontente com ele, dizendo assim: "Por que você está permitindo isso?" E, normalmente ele argumenta: “Estou permitindo porque eu não acredito que eu seja capaz de tomar qualquer atitude para propiciar a transformação.” Eu consigo aguentar isso num ato de onipotência, porque não acredito que seja capaz de tolerar a transformação.

 

DESESTRUTURA DA FAMÍLIA

 

A desestruturação das famílias, a incapacidade das pessoas de cuidarem dos filhos que estão colocando no mundo, vai se desdobrando numa necessidade de criação de leis que possam doutrinar, que possam punir pessoas. O que está ruindo na realidade é a ética. O sujeito vai perdendo a ética. O sujeito vai perdendo a capacidade de respeitar a si mesmo. E aí, ele precisa ser punido, ele precisa viver com medo da punição. Então, leis são inventadas. Maria da Penha, feminicídio, isso, aquilo, aquilo outro, para tentar dar conta de algo que não vai dar conta. Não adianta! O ser humano não se transforma realmente por medo. A transformação se dá num processo irrigado de amor e sinceridade. Esta é a verdadeira transformação. A punição nunca trouxe a possibilidade de transformação real e não vai trazer.

 

PUNIÇÃO

 

Você acha que o cara que foi filmado dando 60 socos na cara da mulher, ele estava pensando em lei Maria da Penha? Ele se lembrou que existia alguma lei que pudesse vir a puni-lo? Nem passa na cabeça do sujeito violento que ele pode ser punido por aquilo. A questão vem bem antes disso. Essa pessoa não teve uma mãe que cuidou dele com carinho. E se teve essa mãe que cuidou dele com carinho, não teve um pai que pudesse mostrar o limite. Não tem a ver com leis, não tem a ver com punições, tem a ver com a estruturação da família. A família está falida. A família se tornou uma instituição onde o sujeito é obrigado a por conta da lei. Não é mais uma geração biológica espontânea, assim como todos os bichinhos da floresta no ser humano.

 

FAMÍLIA BEM ESTRUTURADA

 

A estruturação da personalidade que vai se dar através de uma família bem estruturada vai fazer com que o sujeito se aproxime daquilo que está escrito dentro do mistério da fé. Mas aquilo que está escrito ali no mistério da fé, nas Escrituras Sagradas, não podem de maneira alguma intervenção da personalidade do sujeito. Você não vai mudar a sua vida lendo a Bíblia. É o contrário. A tua vida transformada vai fazer com que você se aproxime da Bíblia. Não adianta ler Bíblia, ler livro de autoajuda, ler o Alcorão, ler o Bhagavad Gita, ler o Mahabharata. A mudança é interna. A sua mudança interna vai fazer com que você se aproxime espontaneamente de coisas saudáveis.

 

CORAGEM OU OUSADIA

 

Muitas vezes a gente confunde coragem com ousadia. Ousadia é algo que se faz a partir de uma atitude inconsequente. A ousadia é inconsequente. O sujeito não mede as consequências. Ele não consegue perceber qual o desdobramento daquela experiência que pode ser nociva. A coragem é agir com o coração. COR + AGEM. Quando o sujeito age com o coração, ele toma uma atitude que vai levá-lo a um desdobramento de uma transformação saudável. Então, ousadia não é coragem. Muitas vezes pode ser até o contrário.

 

AGIR COM O CORAÇÃO

 

Se a coragem é a base do bom funcionamento emocional, eu preciso estar sendo irrigado de amor, porque coragem é agir com o coração e o funcionamento emocional saudável só pode acontecer através da irrigação afetiva saudável. Preciso estar irrigado de amor para que eu possa funcionar bem no nível emocional. Como é um bom funcionamento emocional? Capacidade de se autoconter, de conter as suas emoções antes de despejar no outro, antes de evacuar. Ser capaz de, assim como o Bion nos sugeriu, fazer a digestão mental dos elementos antes que eu possa evacuar no outro. A evacuação a partir da ação não pensada. Isso é um bom funcionamento emocional.

 

 A DOR E O AMOR

 

A transformação vai ocorrer em duas fases. O sujeito vai cair um tombo e vai ser acolhido pelo outro. Primeiro a dor, depois o amor. Não é pela dor ou pelo amor, é pela dor e pelo amor. O sujeito cai o tombo, sente a dor e tem a mão do outro estendida para acolhê-lo. A partir deste acolhimento, está propício o caminho para que aconteça transformação. Não é garantia, porque muitas vezes o sujeito não está preparado, muitas vezes o sujeito caiu o tombo e ainda assim ele não está aberto a ser acolhido. Então ele precisa cair mais alguns tombos aí. E esta é a base daquilo que a gente chama em psicanálise de analisabilidade. Muitas vezes o sujeito caiu o tombo, mas ele ainda não desenvolveu a capacidade humilde de pedir ajuda para ser acolhido. E se ele não for humilde o suficiente para perceber que ele precisa de ajuda, ele não tem analisabilidade o suficiente.

 

PROPORCIONAR OU PROPICIAR

 

Ninguém proporciona a transformação de ninguém. Você pode, na melhor das hipóteses, propiciar para que essa transformação venha a acontecer. Quando o sujeito quer proporcionar a transformação do outro, isso se configura numa atitude narcisista de onipotência. Eu acredito que eu consigo mudar a vida dos outros. Não! Eu não mudo a vida de ninguém. Eu posso propiciar a possibilidade de transformação. Isso eu posso. Mas eu preciso contar com a atitude daquele que está sendo acolhido para transformação. Ele precisa estar preparado para isso. Não é proporcionar.

 

TOMBOS

 

Dentro do âmbito das transformações, a mãe precisa propiciar o desenvolvimento da criança. O “propiciar” está apoiado no instinto de autopreservação. A mãe cuida bem dela mesma, a mãe ama a si mesma e estende esse amor ao bebê que está no colo dela. Ela não sabe o que é melhor para o bebê. Ela sente o que é melhor para o bebê, porque é uma extensão do que é melhor para ela. E a independência deste bebê vai contar com o apoio dela. Ela deve apoiar esta independência, esse desenvolvimento. Muitas vezes esse desenvolvimento vai perpassar pela capacidade de ela tolerar ver a criança levar tombos para que ela possa aprender que cair dói.

 

MOMENTOS DIFÍCEIS

 

Quando o sujeito tem esta possibilidade de viver um vínculo saudável com o outro, quando ele cai, esta queda é uma oportunidade de reafirmar este vínculo saudável, de estreitar laços, de mostrar que aquela relação é realmente saudável. A relação saudável não se confirma em momentos agradáveis. As relações saudáveis se confirmam na crise, na situação catastrófica, no momento difícil. É ali que você vê se o vínculo é saudável mesmo ou não. 

 

CONJUNÇÃO CONSTANTE COM O UNIVERSO EM EXPANSÃO

 

Conjunção constante é quando duas partes ou mais estão, o tempo todo numa troca, ligação que alimenta as partes e é alimentado pelas partes. De conjunção constante, uma ação mútua de nutrição. Quando o sujeito está desobstruído ou está desobstruindo constantemente o seu caminho da transformação, ele está numa conjunção constante ou num acordo com o universo que está em expansão. Ele está se expandindo, está de acordo com o universo que está nesse mesmo movimento de expansão.

 

OBSTRUÇÃO

 

A ideia não é promover mudanças, mas é propiciar a possibilidade de a mudança acontecer. E como é que eu posso propiciar para que a mudança possa acontecer? Desobstruindo o meu caminho das ilusões. As ilusões obstruem o caminho e acabam represando o fluxo da vida que é transformação. Ninguém proporciona a transformação, mas você pode propiciar para que ela possa acontecer, porque ela vai acontecer, ela está acontecendo. O universo está em expansão, enquanto desobstruídos, nós estamos em acordo com este universo em expansão. Quando a gente está obstruído, a gente está em desacordo com o universo. Obstruídos, acabamos conseguindo expandir, assim como o universo.

 

MUDAR PARA PIOR

 

Não existe mudança para pior. A mudança é sempre para melhor. O sujeito que mudou para pior, ele não mudou, ele apenas se revelou. Ele estava fingindo, ele estava dissimulando e num momento propício ele se revelou. A mudança é sempre para melhor. Se houve uma real transformação, essa transformação é sempre para a melhor. Por mais catastrófica que ela possa ser, por mais dolorida que ela possa ser, por mais que ela tenha um aspecto doloroso, um aspecto que não seja muito confortável, ela é sempre para a melhor.

 

DEFESA

 

Muitas vezes o sujeito passa a apresentar características nocivas porque ela está configurada, ela está inserida num ambiente ameaçador. Mas enquanto ela está apresentando essas características, essas características são características defensivas, não são características dela. Ela está se defendendo deste ambiente que hora está ameaçando. Assim que ela conseguir sair desse ambiente ameaçador, essas características vão deixar de se manifestar. Porque são defensivas, não são da essência, não são do verdadeiro eu. Ela está precisando agir daquela forma para se manter naquele lugar que a ameaça o tempo todo. Isso não é uma transformação, isso não é uma mudança.

 

INVARIANTE

 

A água pode estar em qualquer estado: sólido, líquido ou gasoso. Ainda assim continua sendo H2O. É água. A essência permanece a mesma, mas a forma pode transformar. A configuração pode estar diferente, mas a essência é a mesma. Nós estamos falando aí de transformações e invariâncias, mas não é só nessa perspectiva. Existe uma perspectiva patológica, existe uma perspectiva que também é invariante, mas não é saudável, como é o caso da essência. No período da vida do sujeito, muitas vezes ele pode viver uma perda muito significativa e por conta de não estar preparado para viver essa perda, ele cair num estado de melancolia e uma cota da sua personalidade morre, por assim dizer. Esta parte não vai mais se transformar. Na melhor das hipóteses, ele pode aprender a conviver com esta parte que morreu, esta parte melancólica, que hoje é uma característica dele e ele precisa aprender a viver com isso. Isso não vai se transformar no período da vida dele. Talvez na próxima geração venha se transformar neste pensamento que ficará para o próximo pensador, mas nele não. O que dá para fazer é aprender a conviver com aquilo, é reconhecer aquilo, respeitar aquilo e se responsabilizar por aquilo que não irá se transformar no período da vida desse sujeito.

 

PSICOSE

 

O Freud dizia que o paciente psicótico não poderia ser tratado. Ele não acreditava que a psicose pudesse ser tratada pela psicanálise. A partir de Melanie Klein, isso começa a se transformar, isso começa a mudar. E aí, em Bion, então isso ficou muito claro. Sim, pacientes, que na realidade o Bion chama de pacientes com uma parte psicótica proeminente e não um paciente psicótico, né? Porque psicóticos todos nós somos em alguma proporção. Mas esse paciente que tem uma proeminência psicótica também pode ser tratado pela psicanálise. E como ele pode ser tratado pela psicanálise? Sendo capaz de reconhecer esta parte, respeitar esta parte e se responsabilizar por essa parte. Essa parte não vai se transformar. Essa parte vai continuar sendo psicótica. Essa parte vai continuar sendo cindida da realidade, mas o sujeito vai aprender a conviver com esta parte psicótica.

 

PRISÃO

 

Muitas vezes o sujeito vive um vínculo que o obriga a continuar sendo o mesmo. Muitas vezes ele prometeu para o outro que ele continuaria sendo o mesmo. Mas ninguém é. Nós estamos sendo. E quando a gente promete para o outro que a gente vai continuar sendo o mesmo, a gente está se enfiando numa prisão. Numa prisão que, muitas vezes, o sujeito se conforma em estar ali. Muitas vezes ele sequer reconhece que seja realmente uma prisão. E quando o sujeito não reconhece que ele está numa prisão, ele não pode se libertar dessa prisão.

 

SER O MESMO

 

Vamos pensar num sujeito que está inseguro de si mesmo, que está perdido no seu caminho e ele encontra uma instituição, uma instituição religiosa, por exemplo. E aí, ele entra nessa instituição religiosa e ele começa a prometer que ele vai ser eternamente fiel àquela instituição, que ele vai servir aquilo, que ele vai dedicar a vida a aquilo, que ele vai continuar sendo o mesmo ali dentro. Mas a própria instituição traz para ele uma segurança que faz com que ele seja capaz de crescer, de expandir, se desenvolver. E aí, ele começa a olhar do muro para fora da instituição. Ele começa a ver que tem um monte de coisas lá fora que a instituição o proíbe. E aí ele já prometeu. Como ele faz agora? Ele prometeu que iria ser o mesmo e a instituição trouxe para ele justamente aquilo que ele precisava para crescer e que mostrou para ele que existe um mundo para além daquele muro. Como ele faz agora?

 

PERMISSIVIDADE

 

Muitas vezes o sujeito está inserido num vínculo onde ele permite desrespeitos, ele permite abusos, porque na realidade ele não reconhece a sua capacidade, o seu potencial, o seu valor, mas por exemplo, ele começa a fazer psicoterapia e dentro do processo psicoterapêutico, ele começa a reconhecer o seu próprio valor. Ele começa a reconhecer as suas capacidades e ele começa a questionar esse vínculo de abuso. Mas ele prometeu para o outro que ele iria permitir este abuso. Até aquele ponto, aquele vínculo fez sentido e foi até bom para ele crescer, mas chegou num limite onde ou ele se afasta ou ele vai ficar prisioneiro daquilo para o resto da vida.

 

MELANCÓLICO

 

A mãe, enquanto mulher, ela nunca acreditou em si mesmo. E aí ela tem um filho. E aí, esse filho traz para ela um olhar desejoso que ela nunca tinha experimentado de ninguém. Ela nunca tinha sido olhada assim como o filho olha para ela. E ela faz esse filho prometer que ele nunca vai deixar de ser aquela criança que olha para ela com aquele olhar desejoso. E nós estamos falando aí, justamente daquele vínculo que terá o desfecho da melancolia na perda do objeto. O filho perde a mãe por algum motivo e cai em melancolia. não consegue ver o motivo de continuar vivendo, porque ele prometeu para a mãe que ele viveria só para ela. Esse filho é uma extensão do desejo de ser desejada da mãe. Então, ele não existe, não é uma pessoa. E quando isso acontece, ele não consegue estruturar sua personalidade. Ele vive subordinado à personalidade da mãe. E quando a mãe por acaso não está ali, ele também deixa de existir.

 

EXCESSO E FALTA

 

O excesso de mãe é pior do que a falta da mãe. Então, o excesso de mãe também é falta de mãe. Quando existe o excesso da mãe, é porque esta mãe está ignorando o filho. Este filho é uma extensão do seu desejo e não é uma outra pessoa. Todo excesso também é falta.

 

REGISTRO E TRANSFORMAÇÃO

 

Se você escreve um livro e dali alguns anos você lê aquele livro, você vai ver que você já não concorda com muita coisa que está escrita naquele livro. Mas como é que faz? O livro está escrito. Como é que você vai fazer? Você continuou se transformando, mas o livro permaneceu escrito, está gravado lá no papel e você acaba sendo forçado, obrigado a permanecer com aquela ideia para o resto da sua vida. Não! Eu não posso fazer isso comigo. Eu estou em permanente crescimento. Estou em perpétua transformação. Aquilo que eu gravei lá atrás hoje já não é do mesmo jeito.

 

TRANSFORMAÇÃO EM ALUCINOSE

 

Três elementos obstrutores da transformação. A transformação em alucinose, assim como propôs Bion, aquilo que vai corromper essa transformação numa obstrução para que isso possa seguir o fluxo da vida. A mentira, a inveja e a arrogância são três fatores que vão propiciar uma obstrução na transformação, que é o fluxo natural da vida. O sujeito que mente, ele mente para si mesmo e acaba em desacordo com a realidade. O sujeito invejoso não é capaz de contemplar. Ele vê as coisas com maus olhos. E o sujeito arrogante acaba não admitindo a sua ignorância frente à realidade e agindo com estupidez.

 

HIPOCRISIA

 

A hipocrisia também é um desdobramento do desacordo com a realidade, porque eu prego alguma coisa e faço o contrário. Agora, quando eu reconheço que é algo que precisa ser um exercício constante, uma manutenção constante, porque cada um de nós faz isso, deixa de ser hipocrisia. Quando eu falo de mentira, por exemplo, eu minto também. Todos nós mentimos. O maior mentiroso é aquele que diz que nunca mente. A inveja também está dentro dessa perspectiva. Todos nós somos invejosos. Todos nós somos invejosos. Cada um de nós sente inveja. Todos nós somos arrogantes. Então a hipocrisia é dizer que isso não está em mim, só está no outro.

 

PULSÃO DE VIDA

 

O que define a saúde da manifestação é se ela está sendo irrigada de pulsão de vida ou se a pulsão de vida está ausente e o que está predominando é a pulsão de morte. A mentira pode ser saudável na medida em que ela esteja sendo irrigada da pulsão de vida. A inveja pode ser saudável se estiver irrigada da pulsão de vida. A arrogância pode ser saudável se estiver irrigada de pulsão de vida. O que é pulsão de vida? É fluxo, é transformação. Muitas vezes o sujeito está mentindo, mas aquela mentira está sendo pertinente naquele momento para que ele possa se defender para continuar o fluxo da transformação. Assim também é inveja. Muitas vezes o sujeito sente inveja de alguma coisa, mas aquela admiração que está na inveja vai fazer com que ele possa crescer. A arrogância da mesma forma, muitas vezes o sujeito precisa levantar uma carranca arrogante para que ele possa se defender naquele momento e prosseguir o seu caminho para lá na frente humildemente continuar caminhando. A saúde está no fluxo.

 

RECONHECIMENTO

 

A transformação está acontecendo. O que a gente pode fazer é deixar de reconhecer a transformação. E aí a gente tem a ilusão de que que está se mantendo sendo o mesmo. Para que eu possa ter coragem de reconhecer a transformação, eu preciso impreterivelmente de um vínculo saudável com o outro. Sem o vínculo saudável com o outro, eu não consigo reconhecer a transformação e tenho a impressão de continuar sendo o mesmo. A transformação só pode ser percebida e reconhecida, posteriormente também respeitada e passiva da nossa responsabilização a partir do referencial de um vínculo saudável com o outro, de outra maneira impossível.

 

VÍNCULO

 

Você pode não estar reconhecendo, mas a transformação está acontecendo. A mudança acontece o tempo todo. Você só percebe que você está em movimento quando você olha a paisagem passando. Se você não tiver um referencial das margens do rio, você não consegue perceber que a água está fluindo. Eu preciso da referência do outro para que eu possa perceber o meu movimento. A transformação só pode ser percebida dentro do vínculo afetivo.

 

JÁ ESTÁ SENDO

 

A transformação não carece de esforço. A transformação não carece da sua intervenção para que ela aconteça. Carece que você seja capaz de reconhecer que ela já está acontecendo. Ela carece da sua coragem para que o fluxo da vida possa ocorrer, possa correr o seu curso natural e saudável. Ninguém busca a transformação. A transformação vai acontecer por si só. A busca é uma ilusão. Quando você busca, você está agindo através do seu desejo e ninguém deseja se transformar.

 

DESEJO

 

O desenvolvimento não acontece porque o sujeito deseja. Ninguém deseja se desenvolver, ninguém deseja amadurecer, ninguém deseja se transformar. É muito bonito: “Eu desejo!” Não! Você não deseja. Você deseja ser o mesmo, você deseja continuar sendo criança, você deseja a imaturidade, porque isso tudo é muito confortável, é muito prazeroso. Porque quando você é irresponsável, é porque alguém está respondendo por você. Quando você é imaturo, é porque existe alguém com maturidade que está cuidando de você. Então, ninguém deseja isso. Isso vai acontecer na medida em que você for capaz de reconhecer que isso já está acontecendo. Você for capaz de respeitar este fluxo de desenvolvimento e se responsabilizar por isso.

 

DESAPEGO

 

A transformação depende da capacidade do desapego, mas ninguém se desapega definitivamente. Nós nos desapegamos de coisas e passamos a nos apegar a outras coisas. Mas a nobreza está em se desapegar das coisas materiais para se apegar naquilo que está para além do material. E aí, para além da crença de cada um, a Páscoa é isso. O domingo de Páscoa simboliza essa transcendência do corpo físico para algo que está para além do corpo físico.

 

PASSAGEM

 

A função da psicanálise é uma função de passagem. A sessão de psicanálise é uma passagem. Nós precisamos reconhecer o valor da passagem. A passagem é saúde, é o que permite o fluxo. Tudo que fica estagnado vai impedir a passagem. O mais importante é o caminho, não é o objetivo. Porque o objetivo é duvidoso e o caminho está acontecendo aqui e agora. Nós precisamos propiciar, desobstruir para que a passagem possa acontecer, independente de qual seja o objetivo. Eu não sei qual é o meu objetivo. Eu não tenho objetivo. Eu não sei onde eu vou parar. Eu não sei se eu vou parar, mas eu preciso continuar.

 

AMBIENTE SAUDÁVEL

 

Como propiciar um ambiente saudável para que a transformação possa se manifestar, por que ela já está acontecendo? Quando eu sou capaz de renunciar dos dados da memória. Quando eu sou capaz de renunciar das minhas expectativas e quando eu sou capaz de admitir a minha ignorância frente à realidade. Quando eu sou capaz de renunciar aquilo que eu já sei. Quando eu sou capaz de fazer essas três renúncias e aqui estou sendo orientado pelo Wilfred Bion, o caminho está propício para que a transformação possa se manifestar.

 









Prof. Renato Dias Martino

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