sexta-feira, 9 de maio de 2025

TOLERÂNCIA E FORÇA - Prof. Renato Dias Martino Parte 2




TEORIA DOS SELFS

Winnicott contribuiu com a teoria dos selfies. Ele separa a personalidade em dois selfies, self verdadeiro e selfie falso. Eu verdadeiro e eu falso. Dentro da proposta do Winnicott, o sujeito teria uma essência espontânea chamada eu verdadeiro e um eu falso que, de maneira saudável estaria a serviço de proteger o eu verdadeiro. Quando a gente fala de força dentro do âmbito emocional e nas relações afetivas, nós estamos falando essencialmente do falso eu. Só o “falso eu” pode ser forte. A força não pode ser um atributo do “verdadeiro eu”, porque o “verdadeiro eu” é uma essência. O “verdadeiro eu” é a parte mais primitiva do sujeito, é a parte original do sujeito, é a essência do sujeito. Depois ele vai desenvolvendo a parte externa, que ele chamou de “falso self”. Assim como a fruta que tem o seu fruto verdadeiro ali, mais próximo das sementes e o pseudofruto que está mais externo, nós também dentro da personalidade vamos de maneira análoga, encontrar uma essência próximo das nossas sementes, não é isso? Das nossas origens e uma parte mais externa que vai ser chamado de “falso self”, “falso eu” é o eu social, é aquele que se sociabiliza com o outro. Vale lembrar que, quando a gente fala de “eu social” nós não estamos falando de “eu afetivo”. Relações sociais não são relações afetivas. Relações afetivas não são relações sociais.

REALIZAR OU PRODUZIR 

É importante que a gente possa separar realização de produção. Só o selfie verdadeiro é capaz de realizar, porque só o selfie verdadeiro é espontâneo e criativo. O falso self, o “falso eu” pode, na melhor das hipóteses produzir. Ele produz. Produzir não é realizar. Produzir é padronizado e atende exclusivamente à demanda do outro. A criação que vai se desdobrar na realização é uma extensão da verdade do eu. Por mais que a produção seja para atender a demanda do outro, a realização só pode ser realização quando inclui o outro, mas inclui o outro não para atender a sua demanda, mas porque isso afeta o outro. Porque chega até o outro afetivamente. Enriquece o outro, não simplesmente satisfaz uma demanda.

VOCAÇÃO 

Então, o sujeito tem que ser forte, o sujeito tem que ser inteligente, o sujeito tem que cumprir inúmeras demandas que vem do outro e com isso ele vai perdendo a espontaneidade. Com isso ele vai perdendo a possibilidade de criar. Com isso ele vai perdendo a possibilidade de ouvir a voz sutil da sua própria vocação. Porque desde cedo ele precisou trabalhar para produzir e com isso conseguir a aprovação do outro. Ele precisou fazer alguma coisa que o outro queria que ele fizesse, porque senão ele iria perder a atenção do outro. E aí, ele foi obstruindo a sua capacidade de criação. E aí, quando ele chega na idade adulta... O que eu faço? O que eu estou fazendo? Que profissão que é essa que eu estou? Que relações são essas que eu tenho? O que eu estou fazendo aqui? A essência dele não está ali. A Verdade dele não está ali. Ele não consegue ser verdadeiro na sua profissão, ele não consegue ser verdadeiro nas suas relações, porque a vida inteira ele teve que fazer para cumprir a demanda do outro, ou seja, sendo falso.

FORÇA E PRODUÇÃO

Quando o sujeito não consegue elaborar a produção pela demanda do outro, ele não vai conseguir passar para o próximo estágio, por assim dizer, que é a realização, que é a realização espontânea do seu verdadeiro eu. Ele vai ficar ali, dissimulando, retendo ou expelindo, ou soltando as suas produções, conforme a reação do outro. Muitas vezes o sujeito, ele precisa fazer força para reter ou fazer força para expelir. Então a força está ligada diretamente à produção.

ESPONTANEIDADE 

Falta de criatividade, a dificuldade em exercer a sua espontaneidade na criação, na realização pode vir a ser uma exacerbação do falso eu. Uma vida onde o sujeito precisou construir um falso eu para lidar com as questões que vinham da demanda externa pode vir a trazer para ele um prejuízo na vida adulta de déficit na capacidade criativa, na capacidade de realização, na capacidade de espontaneidade. A personalidade dele acabou sendo estruturada com um investimento muito maior no falso eu do que na nutrição do verdadeiro eu, muito mais na elaboração de mecanismos para satisfazer a demanda externa do que na capacidade de nutrir a essência do eu.

FALSA FORÇA 

O falso eu é um constituinte da personalidade, mas de maneira saudável, este falso eu serve para proteger o verdadeiro eu e de uma maneira nociva ele cresce com a impressão de que ele é a verdade do eu. Isso acontece sufocando o verdadeiro eu.

DISSIMULAÇÃO 

Nós estamos aqui criticando a força? Não! Não estamos criticando a força. A força é necessária, quando for necessário defender o verdadeiro eu. Quando for necessário defender o verdadeiro eu através de uma dissimulação. Tem uma borboleta, uma mariposa, não sei se é borboleta ou mariposa, que tem duas bolas nas asas que parecem dois olhos de coruja. Então, quando ela se sente ameaçada ela abre asas e aquelas duas bolas ficam parecendo uma cara de um predador. Então, nós não podemos criticar as asas da borboleta, ou da mariposa, dissimulando um predador, porque ela está se defendendo, mas ela não é um predador.

INVESTIR

Se eu estiver convivendo num ambiente ameaçador, eu preciso parecer forte. O eu falso é importante na medida que eu esteja inserido num ambiente nocivo, ameaçador. Mas a insistência em se manter num ambiente ameaçador faz com que você se torne falso. Faz com que você confunda a sua essência com o falso eu. É claro que é importante, o falso eu, mas quando este falso eu predomina, o eu verdadeiro padece. E quando eu estou insistindo em conviver num ambiente onde eu sou ameaçado o tempo todo, eu acabo investindo energia muito mais na falsidade do que na minha verdade.

FRAGILIDADE

Na medida em que você não se utiliza do falso eu no momento necessário, adequado, para você se utilizar você, adoece, porque o seu eu verdadeiro fica exposto e o eu verdadeiro é frágil e ele é contaminado com muita facilidade, ele é machucado com muita facilidade. Então, é necessário que eu possa lançar mão do meu falso eu no momento adequado.

INSTINTO 

Todas as vezes que o sujeito estiver se defendendo, esta defesa foi ativada pelo seu instinto de autopreservação. Então, o “falso eu” é ativado pelo instinto de autopreservação, tanto no âmbito tóxico, quanto no âmbito saudável. No âmbito tóxico, quando o sujeito, ele desenvolve um falso eu muito enrijecido, muito proeminente, também foi um instinto de autopreservação que despertou. Por conta do ambiente nocivo, foi obrigado a enrijecer esse falso eu de tal maneira que, hoje ele não dá conta mais, ele não consegue acreditar na sua verdade. Mesmo que ele não esteja mais vivendo num ambiente ameaçador.

FORÇA OBSTRUTORA 

A força é algo obstrutor. O sujeito acreditar que é forte é uma obstrução no caminho da transformação. Quando ele acredita que ele é forte, ele está envolvido numa sensação de onipotência que a transformação fica obstruída de acontecer. Não precisa acontecer transformação nenhuma porque eu aguento! Quando ele chega na psicoterapia, ele começa a perceber que ele não aguenta nada, que ele precisa começar a reconhecer a sua fragilidade. Porque nós somos frágeis e dentro desse reconhecimento da fragilidade, ele vai aprendendo a respeitar a sua fragilidade, se responsabilizar pela sua fragilidade e este processo vai fazer com que a transformação aconteça e ele se distancie daquilo que na realidade vem ferindo, vem machucando, vem intoxicando há tempos.

SER FORTE

A principal utilidade de a gente estar vendo essa ideia de força no nosso diálogo diário e cotidiano, nas nossas conversas e sobretudo na nossa prática clínica é que este conceito pode vir a sugerir uma ativação superegóica. Uma promessa de algo que não é real. Uma promessa, em primeiro momento para si mesmo e depois para o outro. Prometer que o sujeito seja forte. Isso é extremamente nocivo na prática clínica. Não só na prática clínica, na nossa vida cotidiana também é nocivo, porque a nossa natureza é frágil. A nossa natureza, sobretudo dentro da perspectiva emocional e dos vínculos, é de fragilidade e quando a gente está se utilizando do conceito de força, de ser forte, nós estamos promovendo uma ilusão, que depois vai ser cobrada. Tanto pelo eu, quanto pelo outro. Tanto pelo “deveria ser” interno do sujeito, daquilo que ele tem como “ideal de eu”, quanto pelo outro, que julga que nós somos fortes.

NATUREZA EMOCIONAL 

A natureza emocional é frágil. Ter a natureza frágil emocionalmente não quer dizer que o sujeito está enfraquecido. Frágil é a concepção. No entanto, quando o sujeito está inserido num ambiente hostil, ameaçador, é importante que ele pareça forte. Ele é forte? Não! Porque, a sua natureza é frágil. Claro que nós estamos falando aqui do âmbito emocional, mas ele precisa parecer forte, porque ele está inserido num ambiente onde ele é ameaçado o tempo todo e parecer forte é uma defesa. A força emocional é uma defesa. Quando o sujeito é forte emocionalmente é porque ele está cheio de defesas e as defesas são essencialmente ilusões, fantasias, ideais, não tem a ver com a realidade, porque quando o sujeito está de acordo com a sua realidade, ele está frágil.

SELF TOTAL

Um selfie total é a integração do falso selfie com o verdadeiro selfie. É quando o falso self, é quando o “falso eu” está num acordo com o verdadeiro eu. Quando a função do falso eu é proteger o verdadeiro eu. Isso é um self integrado, um eu integrado, mas quando o sujeito acredita ser forte, na realidade a falsidade está sendo mais importante do que a verdade.

AMBIENTE DE PAZ

Quando o sujeito consegue conviver num ambiente saudável, de paz, de sinceridade, de amor de dedicação, ele passa a conseguir manifestar a sua fragilidade natural, a sua natureza frágil. Neste ambiente, ele passa a reconhecer a sua fragilidade e o setting terapêutico e o processo psicoterapêutico serve a este intuito. De propiciar um ambiente saudável para que o sujeito possa reconhecer, aprender a respeitar e se responsabilizar por sua fragilidade.

AMBIENTE SAUDÁVEL 

Quando o sujeito está inserido nesse ambiente saudável, quando ele não precisa investir energia no falso eu, ou seja, investir energia para parecer forte ele consegue ter energia para investir no seu verdadeiro eu, logo para expansão e crescimento das suas capacidades. Essencialmente, capacidades emocionais que é a capacidade de se autoconter, de conter as suas emoções, acolher as suas emoções, aprender a respeitar as suas emoções e se responsabilizar por elas e ampliar a sua capacidade afetiva que é a capacidade de se ligar ao outro, de se dedicar ao outro, de abrir mão do seu pelo outro. Mas isso só é capaz, dentro da perspectiva de um ambiente saudável.

AMEAÇAS

Quanto mais ele investe no falso eu, tentando parecer forte, tanto menos ele tem energia para investir na sua verdade para ampliar as suas capacidades emocionais e afetivas. Porque ele está o tempo todo ameaçado, está o tempo todo tendo que se proteger de uma ameaça. Tanto de uma ameaça interna, que o obriga a ser forte, quanto de uma ameaça externa, que a partir dos ataques podem forçá-lo a parecer forte.

ADOLESCÊNCIA 

Um dos grandes desafios de atender um adolescente é que o adolescente acredita que ele é forte. Ele acredita que ele pode encarar qualquer coisa. Ele tem a vitalidade, a virilidade, a jovialidade a seu favor. Então, ele acredita que ele tem força para peitar o mundo na sua revolta e o trabalho psicoterapêutico está completamente subordinado a o reconhecimento da sua fragilidade. Do sujeito perceber que ele não dá conta de tudo. Do sujeito perceber que ele é frágil perante as questões do mundo. Se ele não dá conta de perceber isso. Se ele não é capaz de reconhecer a sua fragilidade, o trabalho psicoterapêutico é inócuo. Porque o trabalho psicoterapêutico tem muito mais a ver com reconhecer fragilidades do que tornar o sujeito forte.


DA SEMÂNTICA 

O conceito de tolerar tem dois radicais na sua semântica. Tem “tolerare”, que quer dizer aguentar, e tem “tollere”, que quer dizer tirar, destituir. Enquanto um radical te leva a se fazer forte, o outro te leva a destituir aquilo que esteja te ameaçando. Enquanto um te obriga a aguentar, o outro te orienta a destituir aquilo que esteja te ameaçando. Então, quando a gente usa a palavra tolerar, nós estamos aqui nos servindo do radical “tollere”, que é destituir, tirar, ou seja, tolerar é tirar alguma coisa que nos ameaça.

DESENVOLVER TOLERÂNCIA 

A criança vai desenvolvendo tolerância a partir da relação bem-sucedida com a mãe e depois com o pai, mas a princípio com a mãe. Ela confia na mãe, ela internaliza a imagem de confiança que ela tem da mãe e ela passa a tolerar a ausência desta mãe que ora foi internalizada. No adulto que nos procura na clínica, esta tolerância vai ser desenvolvida a partir do vínculo com o psicoterapeuta. Essa tolerância vai acontecendo concomitante com o estabelecimento, a expansão e o estreitamento do vínculo com o psicoterapeuta. A internalização da imagem de confiança que o sujeito tem com o terapeuta vai destituindo a influência do “deveria ser”, do “ideal de eu”, do seu superego e introjetando a influência da dupla analítica que vai dissolvendo esta obrigação, esta exigência que o sujeito impunha a si mesmo.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

IMPERMANÊNCIA E INVARIÂNCIA - Prof. Renato Dias Martino



IMPERMANÊNCIA

A realidade é impermanente. Esse termo, impermanência é um termo muito utilizado pelo budismo. No budismo, um dos selos que fundamentam o budismo é que a realidade é impermanente. Ela não permanece muito tempo da mesma forma. Ela se transforma o tempo todo. A realidade é transformação. A realidade está dentro do “estar sendo”, nunca do engessado, nunca do saturado. Quando a gente fala da ideia da realidade, a gente está falando sempre de um processo, sempre de algo que está em transformação, logo não é possível conhecê-la, porque para você conhecer alguma coisa, aquilo precisa estar de alguma forma invariante. Porque senão, o que você conhece agora daqui a pouco já não é do mesmo jeito. A realidade é impermanente aquilo que está dentro da perspectiva do real está em transformação constante. Seja dentro do concreto, do mundo material, ou seja, dentro da esfera mais abstrata e mais subjetiva possível, que seja dentro da esfera emocional, por exemplo, as emoções estão em transformação. O sujeito está em transformação, a personalidade está em transformação, ou seja, dentro da esfera material, um elemento que talvez seja um dos mais duráveis, que é, por exemplo, o diamante, mesmo o diamante, dentro da sua perspectiva, também está em transformação. Seja dentro do âmbito micro, nas partículas menores, elas estão em transformação, seja no âmbito macro, na esfera das galáxias, por exemplo, também está em transformação. Tudo que está configurado na realidade está em transformação.

FLUXO DA VIDA 

A morte como fim é um conceito egoísta. O sujeito que é capaz de transcender o seu egoísmo, ele vai perceber que a morte, na realidade é uma passagem da impermanência, do fluxo da vida. Então, depois que a gente morrer a vida vai continuar, inclusive com aquilo que a gente deixou.

INVARIÂNCIA

Somente duas coisas podem ser invariantes, podem ser consideradas como invariante. Uma delas é Deus. A configuração essencial da realidade, a essência da realidade, o elementar da realidade não se transforma. Então, quando você por exemplo pega uma caneca esta caneca ela é formada por uma partícula elementar igualzinha a partícula que forma o seu corpo. Esta partícula elementar é invariante. A essência, a deidade, é invariante. A alma é invariante. Então, quando Moisés foi cobrado pelo seu povo: qual é o nome desse teu Deus e ele foi lá, perguntar para Deus qual era o nome dele, Deus falou assim: "Eu sou o que sou." “Vai lá e fala para eles que isso, é o bastante.” Só Deus é o que é. E a segunda coisa que é invariante é a ilusão. A ilusão é invariante. Ela não muda. Quando ela começa a sofrer a variância, ou a transformação, ela já começa a ruir e perde a sua conotação de ilusão. Esta mesma ilusão é a que faz o sujeito humano mortal se confundir com Deus. Achar que é Deus. Ele acha que é Deus. Tem a fantasia, alucinação que é Deus, logo, pensa ser em invariante, mas nós estamos em transformação. Nós somos passagem. Nós estamos, o tempo todo nos transformando. Nós estamos sendo, não somos. Sou o que sou é só Deus, ou o ser humano quando está iludido.

RESISTÊNCIA 

A invariância resiste. Ela é resistente. Ela é resistente às transformações. É aquilo que fica da mesma forma e adoece o sujeito por permanecer da mesma forma. O sujeito que evita a transformação, ele adoece. A impermanência é o fluxo da vida.

CONHECER

Você só pode conhecer, você só pode entender sobre algo que é invariante. Se alguma coisa for transformação você já não consegue mais entender isso, porque, cada vez que você for olhar para isso, vai estar de uma forma diferente. Se for transformação, na melhor das hipóteses, você pode reconhecer isso. A cada encontro, conhecer novamente. O conhecimento está subordinado à invariância. Seja a invariância do elemento, ou seja, a invariância do processo. Para que eu possa conhecer, isso precisa estar saturado e quando eu conheço eu tenho a tendência de saturar isso e olhar para isso como invariante.

ANALISTA INVARIANTE 

O analista precisa ser invariante para receber a transformação do paciente. Quando a gente fala sobre a invariância do analista eu me recordo diretamente do filme A VIDA É BELA. O, pai era invariante para que o filho pudesse se desenvolver. A invariância do pai era tolerar o processo. A invariância do analista, muitas vezes é omitir as emoções. Muitas vezes, eu posso estar num processo extremamente doloroso, angustiante na minha vida particular, mas o meu paciente não tem nada com isso. Então, eu preciso recebê-lo de maneira invariante para que ele possa sofrer as suas transformações.

INVARIÂNCIA IMPERMANENTE 

Mesmo a invariância do setting, mesmo a invariância do analista, ao receber o paciente que precisa se colocar no processo de transformação, mesmo esta invariância do analista, também precisa sofrer transformação. Não pode ser saturada e terminada, esta invariância. Vamos trazer a analogia de você colocar uma semente na terra para que ela possa germinar. Esta terra precisa estar invariante. Ela não pode ficar mexendo o tempo todo, senão essa semente não vai conseguir germinar. Ela não vai conseguir se firmar nas suas raízes. No entanto, esta mesma terra, precisa estar em transformação, precisa ser móvel o suficiente para que estas raízes possam penetrá-la. Porque se ela foi invariante, muito invariante e cristalizada, a raiz não consegue penetrar. Então, mesmo esta invariância precisa ser parcial. Quando o paciente chega nos procurando ele está cristalizado, ele chega dizendo: "Eu sou" e ele precisa encontrar este ambiente saudável para que ele possa confiar o suficiente, para se submeter à transformação, mas essa transformação só vai acontecer na medida em que este ambiente também possa acolhê-lo de maneira expansiva e não cristalizada.

TRANSITORIEDADE

Me lembrei agora de um texto muito belo do Freud, chamado SOBRE A TRANSITORIEDADE. 1917 se não me engano. E ali, ele fala sobre o sujeito melancólico. Ele estava desenvolvendo essa ideia da melancolia e ele fala sobre o sujeito melancólico que não tolera a contemplação de uma flor que no outro dia já não vai estar mais ali, que vai murchar, que dura uma noite, por exemplo. Ele não tolera o processo da vida, porque as coisas vão se perdendo. Então, ele não acredita que vale a pena viver porque viver é perder. Amadurecer é aprender a perder. A vida é um processo de perda, é tolerar perder.

MELANCOLIA 

A melancolia se configura num estado que o sujeito entra a partir de ter perdido um objeto do qual ele mantinha uma relação narcisista, ou seja, ele mantinha uma relação fusionada que ele se confundia com o objeto. Quando ele perde esse objeto é como se uma parte do eu se perdesse também. E um recurso para que ele continue vivendo é se transformar num objeto perdido. Porque, na realidade, esse objeto perdido dominava o sujeito. Comandava a vida do sujeito. Por isso que ele não conseguia se distanciar desse objeto perdido. Uma com-fusão com o objeto. E quando o objeto é perdido é como se tivesse perdido uma parte do eu. E aí, ele alucina que ele se transforma no objeto. Assim como o filme Psicose que o Norman Bates se transformava na mãe dele, porque ele vivia uma melancolia muito grande, em relação à mãe.



quinta-feira, 24 de abril de 2025

TOLERÂNCIA E FORÇA - Prof. Renato Dias Martino - Parte 1


PARADIGMA

 

Uma das funções da psicanálise é quebrar alguns paradigmas. Paradigmas que são cultivados, compartilhados socialmente no senso comum e que dentro da perspectiva da psicanálise há uma possibilidade de quebra deste paradigma. E não são paradigmas simplesmente cultivados aleatoriamente, mas são paradigmas que, no seu cultivo trazem um dano no funcionamento emocional. De alguma forma, compartilhar estes paradigmas vai trazendo para o sujeito, um adoecimento emocional e o tema de hoje é justamente a partir desta ideia. Tolerância e força.

 

FORÇA E SAÚDE

 

Dentro do senso comum, força é um indicativo de saúde. Um sujeito forte é um sujeito saudável. Esta é uma expressão quase que unânime. Se a gente não pensar de maneira cuidadosa, saúde mental e força conhecidem, no senso comum.

 

QUEM AGUENTA NÃO TOLERA

 

O sujeito que aguenta, ele não precisa tolerar. O sujeito que é capaz de aguentar, de suportar. ele não precisa aprender a tolerar. Ele aguenta o prejuízo, para que que ele vai aprender a tolerar? E quem aguenta é forte.

 

INTUIÇÃO

 

A visão é limitante e limitada, a audição é limitante e limitada, o tato é limitante e limitado e todos os outros sentidos... A intuição não. A intuição não mente. A intuição é pura, mas no convívio se civilizatório, no convívio social, nós não podemos usar da intuição. Por quê? Porque intuição não se explica, porque a intuição não tem embasamento teórico, porque a intuição não está atrelada ao conhecimento e para que o sujeito possa se utilizar da intuição, deste sentido que não está ligado ao sensorial, esta pessoa precisa estar sensível. Ela precisa estar sendo uma pessoa sensível para que ela possa reconhecer o mundo pela via da intuição. Sem sensibilidade sem intuição.

 

PSICANÁLISE E INTUIÇÃO

 

Um psicanalista, essencialmente é guiado pela sua intuição. Ele pode ser guiado pelos cinco sentidos, mas se estes cinco sentidos estiverem confirmando aquilo que a sua intuição está dizendo.

 

ADESTRAÇÃO

 

A diferença básica do ser humano para as outras espécies animais é que ele se ausentou, ele se distanciou da sua natureza. Isso que a gente chama de evolução do ser humano é o distanciamento dele da sua natureza. Ele não só se distanciou da sua natureza, mas ele levou junto algumas outras espécies de animais também. Então, os nossos ditos animais domésticos são animais que foram retirados da sua natureza, que foram humanizados. A sociedade espera que você também seja domesticado. A vida social, a vida civilizatória é baseada em adestramentos. Quanto mais “educadinho” você for, mais bem visto social você vai ser. E isso, voltando lá no início da minha fala, é adoecedor. O sujeito que está muito bem adequado a vida social e a civilização ele tende a adoecer.

 

CIVILIZAÇÃO

 

Uma característica muito peculiar da sociabilização e da civilização é que a criança, muito cedo, vai aprendendo a deixar de ser ela mesma para se tornar aquilo que o outro gostaria que ela fosse e me parece que hoje em dia cada vez mais cedo. Cada vez mais cedo, ela tem que se encaixar num critério pré-estabelecido para que ela seja aprovada socialmente.

 

SENSIBILIDADE

 

Se nós estamos falando de intuição, nós estamos falando de uma capacidade que só pode ser desfrutada por aquele que tem sensibilidade, que seja sensível. Um sujeito sensível pode desfrutar da sua intuição. A sensibilidade é o que fundamenta o uso do aparato intuitivo e a sensibilidade só pode ser desenvolvida por um sujeito que seja capaz de tolerar a sua fragilidade. Sensibilidade é um desdobramento da fragilidade. Um sujeito forte não pode ser sensível. A força anula a sensibilidade.

 

INTERNO E EXTERNO

 

Quando a gente está falando de sensibilidade e o desdobramento da sensibilidade na intuição, esta intuição vai perceber e a partir dessa percepção disponibilizar o reconhecimento, tanto daquilo que vem de dentro, tanto daquilo que vem do mundo interno, que são as pulsões que são as emoções, quanto daquilo que vem do mundo externo, que é aquilo que me afeta a partir do contato com o outro. A intuição ela tem tanto esta função de percepção interna, quanto de percepção externa. Tanto do funcionamento emocional, quanto do funcionamento afetivo.

 

INTUIÇÃO OU ALUCINAÇÃO?

 

Como eu posso reconhecer se aquilo que eu estou sentindo é intuição ou é uma alucinação? Qual é o mecanismo, qual é o referencial para que eu possa avaliar se aquilo que eu estou sentindo é a partir de uma intuição ou é a partir de algo reprimido, ou algum elemento não elaborado do meu mundo interno? Não importa! Se a tua intuição está dizendo alguma coisa, você tem que respeitar essa intuição, porque ela está apontando um limite. Ela está apontando uma limitação sua por mais que essa limitação seja de uma falha no funcionamento emocional por exemplo um medo se você tem medo de alguma coisa será que este medo é uma intuição de dizendo sobre algo real ou é uma Alucinação não importa esta intuição está te apontando algo interno uma limitação interna sua que vai te obstruir de conseguir ter uma relação bem-sucedida com o mundo externo se a intuição falou tá falado.

 

COMUNICAR INTUIÇÕES

 

Quando eu tenho uma intuição enquanto analista junto com o meu paciente é importante que eu possa comunicá-la a ele. Mas, qual é a maneira adequada de se comunicar uma intuição? Nunca através de uma afirmação, sempre através de uma dúvida, sempre através de uma indagação, sempre através de uma proposta de: “eu tenho a impressão que”, “me parece que”, “se faz sentido para você”. Nunca dentro de uma afirmação, nunca dentro de uma certeza, porque a afirmação ou a certeza são inimigas da intuição.

 

FORÇA E ILUSÃO

 

Reconhecer a sua fragilidade é um motivo para se desenvolver tolerância. Se eu percebo a minha fragilidade é porque eu percebi o meu limite e esta percepção me faz reconhecer até onde eu dou conta. Então, reconhecer a sua fragilidade é fundamental no desenvolvimento da tolerância. O que que é um sujeito forte? É um sujeito que aguenta, é um sujeito que enfrenta, é um sujeito que encara, é um sujeito que não avalia a configuração da experiência antes de se enfiar. É o sujeito que acredita que ele dá conta de qualquer coisa e isso é uma grande ilusão. A força, dentro da configuração emocional e afetiva só pode existir através da ilusão. O sujeito é forte quando ele está iludido.

 

FRAGILIDADE

 

Esse sujeito que se avalia como forte, ele acaba prometendo para o outro que ele é forte. O outro começa a acreditar que ele é forte. E aí, que está a grande cilada, porque ele não é forte e uma hora isso aí vai desmoronar. E vai desmoronar sabe quando? No pior no momento, mais inadequado. No momento mais inadequado vai se revelar a fragilidade que é a sua concepção real e natural. Nós somos frágeis.

 

SOB PRESSÃO

 

Muitas vezes, o sujeito chega ao ponto de dizer assim: “Eu trabalho melhor sob pressão. É aí que eu dou o meu melhor.” Não! Não é o seu melhor. O seu melhor você dar quando você está em paz. O seu melhor você dar quando você está tranquilo. O seu melhor você dar quando você está se dedicando a alguma coisa que você ama, que você está se dedicando a alguma coisa que você tem afinidade. Você está se dedicando a alguma coisa que reúne uma configuração de harmonia. É aí que você dá o seu melhor.

 

INTUIÇÃO OBSTRUÍDA

 

Todos nós temos a capacidade de intuir. A intuição é um dom de cada um de nós. Agora, quando a gente não está sendo capaz de reconhecer a nossa fragilidade, portanto a nossa sensibilidade, a gente fica obstruído de intuir. A intuição fica inacessível e quando ela vem eu acabo desacreditando dela. Menosprezando. porque muitas vezes eu estou apegado no saber e a intuição não tem explicação. Muitas vezes, eu estou dentro de uma perspectiva de força, de acreditar que eu estou forte e se eu sou forte aquilo que a intuição me aponta é irrelevante. Então, todos nós somos intuitivos, mas podemos estar obstruídos por conta de inúmeros fatores.

 

INTUIÇÃO E INSTINTO DE AUTOPRESERVAÇÃO

 

A intuição é um fator do instinto de autopreservação. Estão interligadas e são interdependentes. Intuição! intuir é olhar por dentro. Então, quando eu tenho uma intuição em relação ao outro é porque este outro já faz parte de mim, ele já está dentro de mim. Então, é como se eu usasse o meu instinto de autopreservação para preservar o outro. Intuir! Eu só posso intuir sobre alguém que está no meu coração, está dentro. Eu não tenho como intuir sobre uma pessoa que eu não tenha relação afetiva.

 

EXTRA-SENSORIAL

 

A intuição não é uma suposição. A intuição não é uma dedução. A suposição ou a dedução são subordinados ao aparato sensorial. Eu preciso saber sobre alguma coisa para deduzir, para supor. Isso tudo tem a ver com a opinião do jeito. A intuição é um reconhecimento da realidade. A intuição te aponta para alguma coisa que diz respeito à realidade, mas a uma realidade que não está disponível aos órgãos dos sentidos.

 

DESCONFORTO

 

Eu entro num ambiente e neste ambiente tem uma pessoa que me cria um desconforto, só de olhar para esta pessoa. Aquilo que popularmente a gente chama de “não fui com a cara”. Isso é uma intuição. Aí, você vai dizer: “Ah não! Mas, você pode estar projetando alguma coisa mal elaborada sua nesta pessoa”. Que seja! Se afaste dessa pessoa, porque você não está preparado para lidar com esta pessoa. Seja por uma característica da pessoa, ou seja por uma limitação sua em relação a esta pessoa. Então, vá para sua análise, trate das coisas mal elaboradas, depois você volta e tenta alguma coisa com essa pessoa.

 

REVISÃO DE CONCEITOS

 

Muitas vezes, a gente pode ter a impressão de que, ficar revendo conceitos pode ser uma questão meramente filosófica, ou meramente de adequação dos termos dentro da linguagem. Na realidade, não é isso. Pensar a conceitualização das experiências diz respeito a adequar a formulação do pensamento. Quando a gente usa a palavra força, ou forte, dentro da clínica, nós estamos reafirmando uma experiência superegóica, porque o sujeito tem que ser forte e a força é essencialmente ilusória dentro das formulações emocionais e afetivas. Então, quando a gente promove a ideia da força, nós estamos criando um ideal de eu no sujeito. Um ideal de força no sujeito. Um ideal de potência no sujeito, que ele vai ter que suprir. A função da psicanálise não é tornar o sujeito forte, mas é reconhecer fragilidades. E aí, quando a gente fala: reconhecer fragilidades, é muito importante que a gente possa distinguir fragilidade de fraqueza. Fragilidade é uma coisa e fraqueza é outra.

 

VERDADEIRO E FALSO EU

 

Um sujeito emocionalmente forte é um sujeito que tem uma casca grossa, por assim dizer. Força, dentro do âmbito emocional, diz respeito à defesa. Não existe como ser forte sem que o sujeito esteja cercado, ou munido de defesas. Quanto mais defesas, mais força, dentro do âmbito emocional e logo no âmbito afetivo. Quanto mais defesas ele tiver, mais prejudicada a essência estará. Aquilo que está dentro, pode se sentir sufocado por conta de uma defesa muito espessa. E aí, trazendo aí, dentro da perspectiva do Winnicott, do verdadeiro e do falso self, o verdadeiro selfie pode estar oprimido e sufocado por conta de um falso selfie muito enrijecido e espesso. Porque o falso selfie é a casca e o verdadeiro selfie é a essência. Quando eu tenho um falso eu muito grosso, eu estou sufocando o meu verdadeiro eu.

 

AMBIENTE HOSTIL

 

A força é muito importante enquanto sujeito estiver inserido num ambiente hostil, num ambiente ameaçador. Quando ele está vivendo num ambiente onde ele está sendo ameaçado o tempo todo. E quando eu estou falando ameaça, não estou falando simplesmente de uma ameaça direta, mas muitas vezes, dentro do âmbito emocional e afetivo, nós somos ameaçados indiretamente. Muitas vezes, sem que a gente perceba a gente convive num ambiente extremamente tóxico emocionalmente em que nós somos ameaçados o tempo todo. E aí, é interessante que o sujeito seja “cascudo”, por assim dizer, cheio de defesas. Forte! Porque senão, ele vai ser golpeado, ele vai ser machucado, vai ser ferido. Quando eu estou convivendo num lugar hostil, quando eu estou convivendo num lugar onde as pessoas promovem um ambiente tóxico emocionalmente e afetivamente é importante que eu seja forte, ou pelo menos que eu pareça ser forte. Esta força pode ser útil, mas mais importante do que essa força é a capacidade de avaliar o quanto este ambiente está sendo tóxico e me afastar deste ambiente o quanto antes. Quando eu acredito ter esta força, eu perco a capacidade de avaliar o quanto o ambiente está sendo tóxico. Porque eu aguento! Ou pelo menos, eu acredito aguentar.

 

MECANISMOS DE DEFESA

 

Segundo a teoria freudiana, as defesas são pré-conscientes. Ela vai ser gerada por uma parte do ego que está no limiar do inconsciente e do consciente, logo pré-consciente. Então, as defesas são pré-conscientes, no entanto a Melanie Klein traz uma classe defesas inconscientes que fazem parte da posição esquizoparanóide. O bebê se defende sem ter consciência que esteja fazendo isso. Quando nós estamos falando aqui de defesas esquizoide na terra infância, nós estamos falando de uma classe de defesas psicóticas, que estão propiciando ou promovendo uma cisão com a realidade. Se houver cisão, a defesa é inconsciente, mas se houver repressão, assim como acontece na perspectiva neurótica, aí nós vamos falar de pré-consciente, muitas vezes até de consciente.

 

PURITANISMO

 

O ambiente mais nocivo é aquele que está revestido de bondade, de falsa bondade, de puritanismo este ambiente passa a ser o ambiente mais nocivo. Mais nocivo do que aquele que tem uma hostilidade explícita, manifesta, porque esta hostilidade manifesta pode trazer para o sujeito a possibilidade de se defender, mas quando esse elemento nocivo vem revestido de falsa bondade o sujeito fica desarmado e não consegue se defender. É preferível você tomar um tapa na cara do que você receber um ataque revestido de puritanismo.

 

GRUPO DE AFINIDADE

 

Em 1921, Freud publica PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EGO e ali ele coloca que o humano não é um animal de grupo. Ele se insere no grupo na medida em que ele não esteja confiando nele mesmo. Ele busca benefícios no grupo, mas isso não é natural dele. Ele não é um animal gregário. E aí, eu vou para além. Quando você é obrigado a conviver em grupos onde não existe afinidade emocional, ou seja, quando as pessoas não funcionam emocionalmente como você, você tende a adoecer. Quando você é obrigado a participar de grupos onde você não tem afinidade, você tende a adoecer e adoecer de uma forma muito perigosa, porque você adoece sem perceber que está adoecendo. Porque esta configuração emocional acontece silenciosamente. Essa intoxicação emocional vai acontecendo sem que você perceba e você não consegue associar o seu adoecimento com a configuração que você está convivendo.








Prof. Renato Dias Martino