Renato Dias Martino
Quantas vezes não perguntamos a nós mesmos, se não em voz alta (talvez indiretamente procurando uma resposta do outro): “De onde vem essa onda de violência, corrupção, destruição da natureza?”
A perplexidade é certa ao se assistir cenas cruéis na TV. Somos espectadores (ou melhor, participarmos efetivamente) de um filme violento, onde não parece existir qualquer intenção na direção de uma diminuição da bestialidade, mas sim, em obter o monopólio desta forma perversa de vínculo com o outro.
Cria-se um jogo de pressão e repressão que só faz aquecer o caldeirão. O crime, a falta de sinceridade, a violência atuada, seja perversamente escancarada, entre pessoas sem relações formais, ou mesmo, silenciosa, traiçoeira, acontecendo sem que percebamos, dentro dos lares.
Thomas Hobbes (1588 — 1679) |
É muito clara a realidade de que
somos muito pouco capazes de nos responsabilizar pela violência que nasce em
nós. Dificilmente nos propomos a dirigir atenção para o violento que habita o eu. Nos percebemos numa combinação muito próxima da descrição deThomas Hobbes (1588 — 1679) no seu Leviatã de 1651, onde propõe que o humano pode ser mais fortes ou mais
inteligentes do que outros, mas isso não o livrará do medo de que o
outro lhe possa
fazer mal. Para Hobbes, existe
uma constante guerra de todos contra todos (Bellum omnia omnes).
No bíblico Sermão da Montanha, que pode
ser lido no Evangelho de Mateus, mais precisamente do capítulo 4,
versículo 23, ao capítulo 7, lê-se: “Bem-aventurados os
mansos, porque possuirão a terra.”
Assim, a religião propõe um ideal
de conduta que pouco leva em conta a capacidade do sujeito em cumpri-la. Isso, sem dúvida contribui, de forma importante para incapacidade de perceber o ódio no eu e estimula a percepção em notar o
ódio no outro. O ódio é um eficaz agregador de massa. Quando odiamos funcionamos por
identificação. Quando se tem algum outro para se
odiar nos tornamos irmãos.
Enquanto é muito difícil
experimentar a situação de amarmos em comum, o ódio é quase que
espontâneo. Isso pelo fato de que amar requer abnegação, enquanto odiar é
prazeroso. Num mundo onde a insatisfação é algo muito pouco experimentado,
a derrota do outro é sempre mais prazerosa que a minha vitória. Nos
apressamos em retribuir um soco e refletimos antes de retribuir um carinho. A
gratidão exige manutenção enquanto a vingança é geradora de prazer.
Cria-se um jogo de pressão e repressão que só faz aquecer o caldeirão. O crime, a falta de sinceridade, a violência atuada, seja perversamente escancarada, entre pessoas sem relações formais, ou mesmo, silenciosa, traiçoeira, acontecendo sem que percebamos, dentro dos lares.
De qualquer forma, está espalhada por todas as camadas sociais e econômicas. Da favela até o Palácio do Planalto. Apesar disso, mesmo sendo uma forma de tal abrangência, a violência ativa, assim como seu correspondente negativo, a submissão...
“... de homens e mulheres a quaisquer relações sociais de dominação e exploração não é de modo algum espontânea. Depende, em maiores ou menores doses, da coerção direta, da necessidade material ou da interiorização de tais idéias como necessárias, justas ou inevitáveis, e normalmente de alguma combinação dos três fatores.” Enguita, 1993. p. 208
Nas palavras de Mariano Enguita escritor espanhol, catedrático de Sociologia na Universidade de Salamanca, tentando cogitar sobre formas de aprendizagem das relações sociais e de que maneira a violência está ai implicada. Poderíamos entender a violência como certa forma primitiva, de relação interpessoal. Um padrão grosseiro de vincular-se às pessoas e coisas que como característica peculiar carrega a tendência a se repetir até que encontre no mundo, alguma oportunidade de conhecer formas mais aprimoradas de vinculação. Disso talvez sejam gerados os fatores ligados à necessidade material ou da interiorização de tais idéias como necessárias (assim como propõe Enguita), já que o “ter” é também um estagio primitivo do vínculo com o mundo, que busca evoluir até a condição do “ser”, isso quem sabe.
É importante compreender que esse tipo de relação perversa sempre esteve entre nós. Isso não me parece tão difícil constatar se nos arriscarmos em uma breve pesquisa histórica da humanidade. Num passeio pela filogênese humana, perceberemos que a violência é um elemento inerente ao encontro entre seres humanos e que amiúde se confunde com a forma como nos relacionamos com nós mesmos. Talvez seja a primeira forma de se relacionar com o outro, com aquilo que faz parte do não-eu, com aquilo que é diferente, o desconhecido. O pré-conceito é um exemplo muito claro de como o ser humano funciona ante a diferença. Uma forma de se precaver frente aquilo que o deixa inseguro e temeroso. No entanto, sem o pré-conceito é impossível se criar um conceito.
Poderíamos fazer uma menção à violência presente no ato do parto, onde o bebê se vê frente a uma seqüência de tarefas, que por mais cauteloso que possa ser aquele que cuida, terá sempre uma considerável cota de violência. O bebê está diante de uma seqüência de frustrações que terá que tolerar no caminho em direção ao reconhecimento da realidade. O caminho da independência, que se inicia biologicamente na substituição do mundo aquático, confortável do útero, por um mundo aéreo, onde experimentará uma cadeia de desconfortos e perceberá gradualmente que, para continuar vivo, dependerá exclusivamente de sua mãe. Ela é quem tem a tarefa de apresentar um modelo de realidade que seja interessante enquanto substituto das fantasias e ilusões criadas pelo bebê, na pesquisa e descoberta do mundo. A incumbência de sugerir um ambiente que retrate um mundo bom o bastante para ser trocado pela fantasia de mundo do bebê, ou aquilo que ele imagina sobre o mundo. Dessa forma, se o mundo externo não parece um lugar suficientemente seguro, a ilusão ainda será mais atrativa.
A ilusão é regida por uma forma mágica de realização, onde o desejo é realizado de uma maneira ou de outra, mesmo que para isso tenha que se passar por cima da realidade (lugar onde se encontra o outro). Um sujeito que funciona predominantemente regido por suas ilusões, nisso que em psicanálise chamamos de principio do prazer (Freud 1920), inevitavelmente, adota um modelo violento de se relacionar com as coisas do mundo (interno e externo). O resultado é que em sua vida, ou adota um modelo hostil para com o mundo que o rodeia, ou se comporta agredindo-se a si mesmo, se tornando um alvo dessa violência, a submissão.
De qualquer forma, me parece que diagnosticamos claramente o estado de caos e o ódio pairando sobre o ser humano, e sua organização social. A humanidade passa por uma fase histórica, onde o modelo familiar se encontra em desuso, porém, sem outro modelo adequado que possa substituí-lo. Assim, com a ameaça de extinção do modelo da família (mãe, pai e filho) como lugar seguro para que sejam vividas ás experiências que partem da violência e conduzem á humanização, a escola (despreparada para isso) tem recebido certa demanda que nem de longe corresponde somente à função didática ou a de ensino das confirmações cientificas do saber, mas que se estende ás necessidades básicas no nível da formação da personalidade, justamente o ponto onde se dá a elaboração dos impulsos violentos.
Se até aqui pudemos estar de acordo, poderíamos tentar avançar em direção a analise das ações tomadas para tornar mínimo o efeito dessa que poderíamos chamar de “forma grotesca de linguagem”, ou justamente a “incapacidade da linguagem”. Quando nos propomos avaliar de forma mais atida os aspectos das técnicas usadas frente a esse estado de funcionamento social, o que constatamos, a cada dia parece revelar-se além de bárbaro, ineficaz. Se percebermos de uma forma mais próxima da realidade, entenderemos um movimento muito mais regido pela vingança, do que por um intuito de penalização e ressocialização. Nesse ponto a educação social não encontra espaço. Até por que, não parece haver muito interesse que sociabilizemo-nos.
Esse texto não tem o intuito de causar desconforto, mas de revelar algo desconfortável que já existe. Talvez propor a responsabilização pela criação de novos modos de trabalhar esse estado de violência que conduz o funcionamento do ser humano em sua tarefa de se relacionar com as pessoas e as coisas. Porém, é uma incumbência não só da sociologia, mas, de cada um de nós.
Num ambiente emocionalmente saudável, a troca de ilusões por realidade se da de uma forma sutil. Nessa “desilusão a conta gota”, o bebê aprende com o amor entre os pais um modelo de companheirismo, respeito e afeto. Modelo que fará parte de seu objetivo de futuro. Um modelo interessante para que possamos refletir e aplicar em nossa sociedade e nosso ambiente educacional e social.
O exercício parece ser o de abrir um espaço para o afeto positivo. Um filho gerado com amor e pelo amor, ou seja, por duas pessoas que se amam, ganha a herança deste modelo de vínculo para próximas gerações. E definirá qual o nível de respeito permearão suas futuras relações. Isso indicará o quão violentas são e serão suas aproximações e ligações com pessoas e coisas, assim como a si mesmo e inevitavelmente a direção que tomará a sociedade.
Prof. Renato Dias Martino
Fone: 17- 991910375
Prof. Renato Dias Martino
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Um comentário:
Parabéns e muito obrigado por compartilhar tão rica reflexão!!!
Um abraço.
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