Pintura Pierre-Cécile Puvis de Chavannes- O Sonho, 1883 |
Do ponto de vista das religiões vem representado por um aviso de Deus, como aparece no trecho bíblico onde o anjo Gabriel avisa São José, em sonho que sua esposa está grávida de uma criança divina. É também num sonho que um anjo o avisa para fugir para o Egito assim como quando seria seguro retornar à Israel.
Nos contos de fada sugere a transposição para outro mundo, como no Mágico de Oz, onde Dorothy dorme e é remetida para “outro mundo” e partir daí, pessoas do seu convívio das quais ela amava muito, criaram qualidades mágicas e bem específicas assim como um desejo particular muito claro em cada personagem. Depois de saber que com sua chegada uma casa havia caído sobre a Bruxa do Leste, a garotinha calçando os sapatinhos vermelhos da bruxa e com seu cachorrinho Totó, deve agora seguir a estrada de tijolinhos dourados até o Mágico de Oz. Ele trará a salvação realizando o desejo de cada companheiro de Dorothy e será ele também que proverá o veiculo para que ela volte para casa. Contudo no desfecho, o mágico revela-se um homem comum por traz de um aparato tecnológico que ampliava a visão quanto a seu poder.
No conto de Alice no País das Maravilhas ela adormece lendo um livro no jardim de casa e assim inicia uma viagem ao seu interior onde a noção de tempo é sempre interrompida pelo Chapeleiro Maluco que propõe o chá das quatro o tempo todo. A noção de espaço também é algo extremamente inconstante quando Alice aumenta e diminui de tamanho. Nos contos de fadas, assim como nos sonhos, inúmeras são as situações inusitadas que só ganham sentido se submetidas a analise e certa interpretação.
René Descartes 1596 - 1650 em pintura de Frans Hals |
Grandes pensadores como Thomas Edison (1847 – 1931) que inventou e desenvolveu muitos dispositivos de grande importancia para civilização, entre eles a lâmpada incandescente, Francis Crick (1916 – 2004) físico responsável por desenvolver a estrutura da molécula do DNA e René Descartes (1596 – 1650) pai da filosofia moderna, entre outros, tiveram importantes sonhos que antecederam suas grandes idéias que serviram de considerável avanço na cultura e na ciência.
'O Sonho' de Salvador Dalí |
Nas artes o sonho também é ricamente ilustrado por nomes importantes. O artista plástico espanhol Salvador Dalí (1904 – 1989) desenvolveu um estilo dentro do movimento surrealista bem proximo da figuração dos sonhos. Suas telas transmitem intensa emoção sem que seja necessario uma coerencia na posição e disposição dos elemento. O movimento do Surrealismo revelou grandes nomes da arte que seguiram essa mesma tendencia.
O musico inglês Paul MacCartney integrante dos Beatles, relata que compões a canção “Yesterday” assim que acordou depois de um sonho. Numa manhã em maio de 1965, Paul despertou com uma melodia na cabeça. Imediatamente ele foi para o piano que havia no seu quarto em Wimpole Street , em Londres, e tocou a música toda, completa, com primeira e segunda parte.
Hypnos - Greek God Hypnos |
Igualmente na filosofia o sonho serve de ferramenta importante na cogitação da vida. Filosoficamente a disposição para sonhar pode representar a capacidade de projetar uma possibilidade de futuro. Em um vértice mitologico o sonhar depende de Hipnos, o deus do sono, irmão gêmeo de Thânatos o deus da morte. São filhos de Nyx, deusa da noite e filha do Caos, uma das primeiras criaturas a emergir do vazio, na mitologia grega.
A experiência do sonhar está espalhada pelas culturas e em cada uma dessas dimensões recebe certo sentido. Sendo assim, ignorar ou mesmo desvaloriza essa experiência corresponde ao desprezar de uma dimensão importante da alma humana.
O Pesadelo, de Henry Fuseli, 1802 Frankfurter Goethe-Museum, Frankfurt |
Apesar dos sonhos serem, em geral, lembrados por elementos que em primeiro momento são vistos como indiferentes no desempenho da vida, num olhar mais atento e cuidadoso, percebe-se o valor que essa experiência pode adquirir no que diz respeito ao domínio do desenvolvimento da personalidade.
A psicanálise atribui ao sonhar um valor imprescindível nos processos psíquicos e do pensar, há muito tempo e até os dias de hoje. Mais do que nunca o sonho é um referencial de desenvolvimento da expansão do pensamento.
Janela para o profundo
No estudo da psicologia humana, o sonho talvez seja a representação mais fiel daquilo que chamamos de mundo interno. Em suas interpretações revelam-se instrumentos que permitem acesso a um lugar interior, onde estão os maiores desejos e também os maiores medos do ser humano.
Sigmund Freud (1856-1939) |
Em 1900, Sigmund Freud (1856-1939) publica um dos maiores livros da literatura mundial, ‘A Interpretação dos Sonhos’, dando assim início ao estudo cientifico dessa ordem de fenômenos ocorrentes na mente humana. Nessa obra ele propõe que o conteúdo do sonho seja um modo de “realização de desejos”. É regido pelo que Freud chamou de processo primário onde o eu equivale a noção do todo no mundo, e por funcionar atravez do que denominou principio do prazer o objetivo exclusivo é o de afastar desconfortos, sem levar em conta a realidade. Esse foi o primeiro olhar para uma idéia que se espandiu e evoluiu para um pensamento rico em instrumentos para o pensamento psicanalitico.
Freud chamava o sonho de ‘via regia’ para o inconsciente. É através do sonho que se pode obter certo referencial do inconsciente de forma mais clara. Por conta disso, no sonho, aspectos ligados a tempo e espaço, são sempre de difícil definição, já que essas são características particulares dos fenômenos do consciente. Dessa forma, o lado nobre das ruas de Viena propõe uma bela metáfora para pensarmos o sonho. O mais sublime dos instrumentos na tarefa de se perceber o movimento interno naquilo que chamamos espaço mental.
Obstáculos da interpretação
Na tarefa de se interpretar o sonho encontram-se inúmeros obstáculos e forças contrarias que confundem a compreensão e dificultam o trabalho de reconhecimento dos conteúdos oníricos (o aspecto onírico será mais bem estudado mais a frente, nos próximos tópicos). Em psicanálise, essa classe de fenômenos de impedimento recebe o nome de resistência. Contudo a resistência não ocorre só na interpretação dos sonhos, mas em qualquer que seja a tentativa de se introduzir a interpretação psicanalítica. Podemos ponderar que a resistência está presente em qualquer que seja a experiência de confronto entre aspectos das realidades interna e realidade externa.
Isso por conta do despreparo natural do aparelho mental de nós, seres humanos, na capacidade de tolerar desconfortos emocionais. Frustrações são recorrentes na empreitada de se perceber e se conhecer a si mesmo. Dessa forma, o próprio aparelho psíquico cria certos mecanismos de defesa que fazem com que nos esqueçamos do sonho ou de parte dele. Isso ocorre assim que se desperta, ou seja, assim que retomamos a consciência da vida em vigília. Proponho que isso ocorra, pois muito provavelmente se perceba nesse sonho, ou nesse trecho de sonho esquecido, alguma verdade muito dolorida sobre si-mesmo.
Por isso muitas vezes os sonhos parecem tão desconexos. Por ocasiões, nem nos lembramos de partes significativas o bastante para que formemos o mínimo de sentido para relatarmos. Mesmo assim, sentimos que esse sonho nos trouxe certa sensação de prazer ou desprazer. Mesmo sem muita compreensão, apenas acordamos angustiados ou então bem dispostos sem nos lembrar do que sonhamos.
Proponho então que, se isso é fato, na medida em que podemos nos perceber e nos reconhecer melhor em nossos medos e desejos, naturalmente poderemos ter maior acesso aos conteúdos dos sonhos. E o contrario também é verdade, aquele que tem medo de si mesmo terá maior dificuldade no desempenho do sonhar. Como coloca Freud em, “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”, publicado em 1912, o sonho também é um caminho para o auto-conhecimento :
“Há alguns anos, dei como resposta à pergunta de como alguém se pode tornar analista: ‘Pela análise dos próprios sonhos’ Esta preparação, fora de dúvida, é suficiente para muitas pessoas, mas não para todos que desejam aprender análise. Nem pode todo mundo conseguir interpretar seus próprios sonhos sem auxílio externo”. Freud (1912-p.55-56)
Um exemplo muito claro disso é o que nos ocorre enquanto estamos em análise. É muito comum nos lembrarmos de nossos sonhos quando estamos no divã, talvez por sentirmo-nos mais seguros para recordá-los na presença do analista.
Ponte entre consciente e inconsciente
Um impulso (inconsciente) que clama por ser compreendido (tornar-se consciente) é uma chance sem igual para que se inicie um autoconhecimento. O sonho é em si uma mistura dos conteúdos conscientes e inconscientes. São impulsos que ainda não puderam ser efetivamente pensados, impregnados de resquícios da vida em vigília, ou seja, fatos acontecidos no nosso dia a dia. Muito do que vivemos durante nosso dia não pode ser pensado e simplesmente vivemos, agimos. Isso muito provavelmente surgirá no sonho tentando mais uma vez emergir para ser relembrado e agora talvez, pensado. Sendo assim, poderíamos dizer que nos sonhos encontramos experiências, sobre tudo emocionais, ocorridos sem que tivesse chance de preparação. Falo de uma situação de perigo e surpresa onde não houve oportunidade de ansiedade (que vem anterior ao perigo) e que agora é recorrente no sonho.
Apesar de o sonho ser normalmente relacionado ao sono, na verdade sonhamos o tempo todo, mesmo quando acordados, ou em estado de vigília. Porém, a realidade nos cobra atenção e nos desvia do nosso mundo dos sonhos. É quando confrontamos seu conteúdo com aquilo que é real e possível.
Uma ponte que liga o consciente e inconsciente. Um contato com o inconsciente, conceito que juntamente com o da transferência, do reprimido e da sexualidade infantil, é um dos elementos pilares da teoria psicanalítica. O inconsciente é esse mundo caótico onde conceitos racionais como tempo e lugar, não fazem o menor sentido. No sonho condensamos e deslocamos imagens e sentimentos. Todos os personagens dos nossos sonhos na realidade são partes do eu e condensam-se e deslocam-se conforme as leis do principio do prazer. Partes de nós mesmos projetadas em figuras da realidade e articuladas no enredo do sonho. Certa vulnerabilidade que não esteja podendo ser reconhecida pelo ‘eu’ pode ser representada no sonho, por um animalzinho indefeso, por exemplo.
Além de um simples caminho
C. Gustav Jung (1875 – 1961) |
C. Gustav Jung (1875 – 1961), medico suíço e um dos discípulos mais importantes de Freud escreve em PSICOLOGIA DO INCONSCIENTE publicado no Brasil em 1971 a transcendência do conceito do sonho. “Considero o sonho não só como uma fonte preciosa de informações, mas também como um instrumento educativo e terapêutico eficientíssimo” pg. 97. Se utilizarmos um modelo onde compreendam continente e contudo, o sonho não é simplesmente a forma mais nobre de se chegar ao inconsciente e revelar os elementos ali contidos, ele tem fundamental importância nos processos internos, e isso vai mais além do que essa função.
Wilfred Ruprecht Bion ( 1897 – 1979) |
Assim como certos processos de digestão têm sua importância por fazerem parte do funcionamento biológico do corpo físico, na alma ou no aparelho psíquico, o sonho tem análoga função. Wilfred Ruprecht Bion ( 1897 – 1979), importante psicanalista contemporaneo, deixa em seus manuscritos um valioso material de reflexão sobre os sonhos. Nessa reunião de textos que teve sua publicação póstuma em 1992, numa coletania de manuscritos entitulada “Cogitações”, Bion escreve propondo um modelo parecido. Bion expande o pensamento freudiano e enriquece a valorização do sonhar que em 1900 Freud iniciara a pesquisa. Ele escreve que os sonhos são “ continentes de uma massa amorfa de elementos não conectados e indiferenciados” (p. 58). Está ai uma chance de se “digerir” certas idéias e nutrir-se delas.
Existe ai a oportunidade da percepção de conflitos internos propondo assim, uma ocasião de elaboração e evolução do pensamento. No sonho ocorre a acomodação e harmonização dos dados recolhidos pelos órgãos dos sentidos, com os conteúdos mentais. Isto é aquilo que em psicanálise denominamos “capacidade para o trabalho onírico”. Bion propõe em sua obra “Estudos Psicanalíticos Revisados” ou no inglês original Scond Thought publicado no Brasil em 1967, a função alfa como, “um instrumento de trabalho na analise dos distúrbios do pensamento” (pg. 133), essa capacidade é o que converteria os dados sensoriais em elementos alfa, fornecendo assim para o aparelho psíquico material para o pensamento onírico. Esse processo para Bion é o que propicia a capacidade de dormir e acordar, de estar consciente ou inconsciente. Segundo Bion:
“O malogro no estabelecimento de uma relação mãe/bebê em que seja possível a identificação projetiva normal impedirá, entretanto, o desenvolvimento de uma função alfa e, consequentemente a diferenciação dos elementos conscientes e inconscientes”. (pg. 133)
O 'Om' símbolo das religiões indianas |
O símbolo e o trabalho onírico
Estamos cogitando, sobretudo, a propósito do trabalho onírico, o responsável pela conversão dos pensamentos inaceitáveis para o ego, em pensamentos oníricos. Esse processo compreende alguns mecanismos conhecidos da psicanálise, como: condensação, deslocamento, representação, até chegarmos ao simbolismo propriamente dito. O símbolo é o resultado bem sucedido do trabalho onírico. A falha na capacidade do processo onírico gera um estado característico do funcionamento psicótico. Um funcionamento onde até existe certo contato com a realidade, mas isso é feito com muito pouca freqüência e com uma dificuldade grande. O psicótico tem muito pouca habilidade em distinguir o que é sonho e o que é real.
Se estivermos de acordo até esse ponto, então podemos dizer que o sonho é certa produção mental a partir de uma experiência fracassada no vínculo com a realidade. Um sinal de que isso ocorreu. Assim, a conjectura freudiana de que o sonho é uma realização de desejos inconscientes, ganham novo ponto de vista e passamos a perceber uma questão ligada ao ideal de eu, que diz respeito a aquilo que se pretende ser. A rigidez dessa parte da estrutura mental do qual também Freud chamou de superego é a responsável pelo insucesso do desenvolvimento do sonho em sua função mental. Isso porque, aquilo que o “eu” pode ser entra em conflito com aquilo que o “eu” deve (ria) ser. Forma-se então, um ambiente extremamente delicado para o funcionamento mental. A partir da ação cruel do superego, a auto-depreciação ocorre onde o que se tem obrigação de ser fica valorizado em detrimento do que realmente se pode ser.
Muito interessante podermos nos lembrar do que sonhamos. Isso é muito sério, na medida em que somos aquilo que um dia sonhamos. Se não se sonha, ou não se tem consciência do que se sonha, como poderá se realizar?
Referencias:
Freud, S. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas - Edição Standard Brasileira, IMAGO (1969-80)
Jung, Carl Gustav. (1971) PSICOLOGIA DO INCONSCIENTE – Editora Vozes.
Bion, Wilfred Ruprecht. (1992). Cogitations. (Edited by F.Bion). London: Karnac Books.
Bion, Wilfred Ruprecht. (1967). Estudos Psicanalíticos Revisados (Scond Thought). Rio de Janeiro, IMAGO Editora.
renatodiasmartino@hotmail.com
Fone – 17 3011 3866
3 comentários:
Adorei esse post Renato... Aprendi muito com ele!!!
É um assunto que sempre me interessou muito!
Beijao
Que bom que pude te ajudar, querida Camila!
Muito obrigado!
Beijão
Admirável seu blog.
Vou segui-lo.
Caso queria visitar meu blog e fazer parte da lista de amigos, vou deixar aqui o endereço:
http://santuariointerior.blogspot.com/
Votos de felicidade e auto-realização.
Gentilmente,
Rodrigo Freitas.
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