São inumeráveis os questionamentos sobre nossa real significância frente ao universo. Existe uma grande incerteza sobre o que realmente o ser humano representa perante o mundo. Porém, por conta de certo narcisismo peculiar de nossa espécie, em todo decorrer da história da humanidade, o ser humano parece atribuir a si mesmo uma importância maior do que possa ter as outras espécies de criaturas na natureza.
Isso persiste até nos tempos atuais e não me parece ter sinais de mudança considerável por parte da maioria das pessoas. Mesmo depois da revelação de Charles Robert Darwin (1809 – 1882).
Sigmund Freud (1856 — 1939) em sua obra UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE, propôs o que foram as quebras do narcisismo universal dos homens, que havia sofrido até então, três bruscos golpes através das pesquisas científicas.
Segundo Freud a proposta de Darwin veio como um golpe no narcisismo do homem que se encontra entre o golpe no âmbito cosmológico de Nicolau Copérnico (1473 — 1543), na destruição da ilusão narcisista sobre a suposta posição central da Terra no universo e o golpe de natureza psicológica, onde com a introdução da psicanálise, que deixou evidente o fato sobre o sujeito não ser livre e dono da suas próprias escolhas, já que o domínio do inconsciente é o que comanda as decisões. “O homem não é um ser diferente dos animais, ou superior a eles; ele próprio tem ascendência animal, relacionando-se mais estreitamente com algumas espécies, e mais distanciadamente com outras.” (Freud, 1917)
Essas evidências se mantém vivas ainda hoje, tanto no âmbito físico quanto nas características mentais, na comparação do homem com os outros animais.
Sendo assim, mesmo com grande resistência para a tomada de consciência, fica nítida a configuração onde o ser humano não é mais do que parte da natureza. Dessa forma, não se deve, com efeito, atribuir-se maior valor a si do que a qualquer outra criatura.
Mesmo que tenha desenvolvido ampla racionalidade e grande inteligência, que muitas vezes parece muito mais nociva do que benéfica, tanto para si mesmo quanto para a própria natureza, como um todo. Na realidade, o ser humano vem se revelando uma espécie de criatura muito danosa para a natureza já que na medida em que ganha espaço coloca em risco inúmeras espécies, assim como destrói ecos sistemas, isso incluindo sua própria espécie. O ser humano não é capaz de reconhecer que depende da natureza e que o contrario não é verdade. A natureza padece do desejo humano. Em prol de realizar seus desejos o sujeito não hesita em destruir o fluxo natural da natureza. Com isso uma triste proposição se revela: a natureza agradece a ausência do humano.
Por mais que amiúde sejamos levados pelo nosso egoísmo a acreditar que somos especiais e que nosso desejo particular deva ser satisfeito, independente das conseqüências que isso possa causar no fluxo da natureza, muitas vezes em detrimento das outras criaturas, na verdade, não temos importância real de forma individual. Fazemos parte do todo e dessa forma, nossa real importância perante o universo só tem sentido quando integrados ao todo. “Não escolhemos com total liberdade a partir de nossa consciência local, ou ego individual, mas a partir de uma consciência cósmica não local e não comum.” (Amit Goswmy, 2010). Nascemos e morremos no fluxo da natureza, sendo que cada ser humano isolado não tem relevância na configuração do universo. A importância frente ao cosmos começa quando passamos a fazer parte integrante do todo.
“Bem, vemos o indivíduo nascer e morrer, mas o indivíduo é apenas um fenômeno; não existe senão pelo conhecimento submetido ao princípio de razão, que é o princípio de individuação: nesta ordem de ideias, certamente o indivíduo recebe a vida como um dom: oriundo do nada e despojado do seu dom pela morte, ao nada retorna.” (Schopenhauer, 1819)
O universo está em constante transformação, mudando de forma, se transfigurando. No mundo material, nada é permanente. Assim como nos ensina os Vedas, através da Trimurti (Brahma – que cria, Vishnu – que mantém e Shiva – que destrói), as coisas nascem crescem e desaparecem. Nós humanos somos uma ínfima parte de um fluxo do todo que se transmuta constantemente. Sendo assim, nascer e morrer são coisas que pertencem aos fenômenos, ou do campo da realidade material, que configura as criaturas individuais.
Somos seres de passagem na cesura do tempo. A partir duma única substancia nos configuramos, nos mantemos por algum tempo nessa configuração e então nos desconfiguramos. Isso para logo mais tarde nos reconfigurarmos numa nova forma. Esse é o fluxo natural da vida. Dentro da sabedoria budista no Dharma, uma das características da existência do universo é justamente a impermanência, onde tudo se manifesta num estado de eterno movimento de transmutação. No entanto, normalmente o ser humano está mais ligado aos que chamados fenômenos condicionados que são transitórios. Ora, é justamente quando nos apegamos ao que é impermanente que é gerada as patologias com todas suas moléstias. Assim como nos orienta Wilfred Ruprecht Bion (1897 — 1979) ...E, usualmente, nem aquele que começou a dizer uma frase será o mesmo que irá termina-la. (Bion, 1978)
Cada um de nós se dispõe como que uma célula no corpo material de Deus, ou da natureza, como propõe Spinoza. No livro I da ÉTICA E NO TRATADO SOBRE A RELIGIÃO E O ESTADO, o filósofo holandês Baruch Spinoza (1632 — 1677) propõe sua concepção onde Deus e Natureza são a mesma coisa — Deus sive Natura (Deus ou Natureza). Para Spinoza, espírito e matéria, são atributos da mesma substância. Nem um de nós é mais importante que o outro, assim como nenhuma célula ocupa papel mais importante do que a outra. Ainda que uma seja um neurônio componente do cérebro e a outra uma célula do tecido da sola do pé. Uma célula sozinha não tem a menor importância para o funcionamento do corpo como um todo. A importância de uma célula só se faz real quando integrada às outras células.
Em psicanálise, os elementos que permanecem cristalizados resistindo às transformações, são geradores de neurose. Essa ordem de elementos forma o que Freud, em seu trabalho A DINÂMICA DA TRANSFERÊNCIA, denominou de transferência. Elementos não elaborados, então, são projetados no outro, que a partir disso, passa a representar uma repetição reeditada de alguma relação vivida anteriormente pelo sujeito. Isso impede que se estabeleça um vínculo novo. Na prática clínica, o paciente atribui características de seu pai, mãe, irmãos, ao analista, como uma compulsão à repetição. “Assim, a transferência, no tratamento analítico, invariavelmente nos aparece, desde o início, como a arma mais forte da resistência, e podemos concluir que a intensidade e persistência da transferência constituem efeito e expressão da resistência.” (Freud, 1912) A transferência é a tendência de acreditar que a pessoa nova que se conhece, de alguma forma é aquela da qual já havia conhecido antes. Isso obstrui a possibilidade de se estabelecer um vínculo real com a pessoa do analista.
“Sendo a transferência um fenômeno presente nas relações humanas, assim como no tratamento psicanalítico, o sujeito/paciente faz uso como um recurso defensivo para que o material impensado continue inacessível, remontando o passado não pelo recurso do pensamento, mas pela atuação – ação não pensada.” (Martino, 2018)
É evidente o aspecto nocivo e patológico dos elementos que se mantém enrijecidos resistindo às transformações. Característica própria da dimensão material na concretude das coisas. Sendo assim, aquele que se mantém tão somente ligado a essa dimensão está em desacordo com o próprio universo, que está em expansão, eternamente se transmutando. Isso tem implicação direta no apego que o humano tem à realidade sensorial. Apegamos-nos às ilusórias certezas na materialidade das coisas para aplacar a sensação desconfortável de nos percebermos sendo insignificantes. A tentativa de evitar o desconforto gerado pela percepção e o reconhecimento de nossa insignificância perante o mundo é o que nos faz acreditarmos que somos superiores. Por vezes nos vemos apegados ao dinheiro, aos bens materiais, aos títulos, imaginando que isso possa nos tornar mais importantes. Ora, isso nos faz arrogantes e nos afasta cada vez mais da realidade. A nobreza do ser humano não está naquilo que ele possa possuir ou acumular, mas na capacidade de humildemente conseguir viver com o necessário. Um ser humano revela sua grandeza na medida em que reconhece sua pequenez diante do universo.
Bion, W. R. TRANSFORMAÇÕES - do aprendizado ao crescimento (P. C. Sandler, trad.). Rio de Janeiro: Imago. 2004/1965.
_________. CONVERSANDO COM BION, Rio de Janeiro, Imago, 1992/1978.
Freud. S. A DINÂMICA DA TRANSFERÊNCIA, Rio de Janeiro, Imago, 1912.
_________. UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE, Rio de Janeiro, Imago, 1917.
Goswmy, A. O ATIVISTA QUANTICO: Princípios da física quântica para transformar o mundo e a nós mesmo - São Paulo. Editora Aleph, 2010.
Martino, D. M. ACOLHIDA EM PSICOTERAPIA – São José do Rio Preto. Vitrine Literária Editora, 2018.
Schopenhauer, A. O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAÇÃO. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2001/1819. (Tradução de M. F. Sá Correia).
_______________ O LIVRE ARBÍTRIO. São Paulo: Edições e publicações Brasil, 1950/1836. (Tradução de Lohengrin de Oliveira).
Spinoza. COLEÇÃO OS PENSADORES. São Paulo: Nova Cultural, 1997.
Venerável Mestre Hsing Yün, BUDISMO SIGNIFICADOS PROFUNDOS, Escrituras Editora, 2ª edição revisada e ampliada, São Paulo, dezembro de 2011.
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