Pequeno ensaio sobre conteúdos e capacidades
Esse texto é capítulo do livro Para Além da Clínica de Renato Dias Martino - 1. ed. São José do Rio Preto, São Paulo: Editora Inteligência 3, 2011.
Esse texto é capítulo do livro Para Além da Clínica de Renato Dias Martino - 1. ed. São José do Rio Preto, São Paulo: Editora Inteligência 3, 2011.
Já tivemos em outro momento, oportunidade de discutir sobre a importância da memória dentro dos processos mentais. Nessa ocasião foi possível perceber como os conteúdos da memória influenciam na capacidade da mente em funcionar de maneira saudável. Entendemos que uma mente que funciona predominantemente apoiada no conteúdo da memória, dificilmente pode ter uma visão clara da realidade. O funcionamento mental fundamentado essencialmente na memória tem grande dificuldade no reconhecimento do ambiente externo (onde se encontra o outro) e consequentemente acaba ocorrendo num empobrecimento dos referenciais quanto ao mundo interno (emoções e elementos psíquicos).
Com esse texto gostaria de expandir a ideia da memória e suas funções e também trazer o conceito de recordação em suas ocorrências no funcionamento mental. A tentativa nesse texto presente, é o de percebermos a diferença entre estes dois termos. A memória e o recordar se encontram na mesma categoria gramatical, muitas vezes com sentido idêntico. Apesar disso, certa distinção parece útil, na medida em que o funcionamento da mente está fortemente vinculado aos conteúdos da memória de uma forma e de maneira diversa se relaciona com à capacidade de recordar.
A memóriadeusa grega Mnemosine |
John Lock (1632 – 1704) |
Emoções sempre colocam a organização em risco. Emoções ameaçam padrões definidos. Assim, conteúdos da memória, não devem guardar caracteristicas de transformação (Bion, 1965). Devem estar de certa forma cristalizados para que possam se manter nos compartimentos da memoria. Como invariantes, devem se encontrar cristalizados em forma de certezas ou ‘verdades’, classificadas e ordenadas. Isso define o que poderíamos chamar de boa memória.
Wilfred Bion (1897-1979) |
O recordar
A partir dessa definição semântica, podemos perceber que o termo recordar vem repleto de afeto, quando nos diz sobre certa obra de dar novamente ao coração. Logo, o recordar é uma espécie da memória afetiva. É talvez, amar aquilo do qual se lembra. Estar vinculado afetivamente com o fato passado. A recordação não é um simples armazenamento nos compartimentos da memória, mas a capacidade de reviver a fato passado trazendo para o presente e até o imortalizando. Nessa ordem a capacidade de recordar deve contar com a formação de símbolos e se mantém sempre conforme disposição para simbolização. Importante nos lembrarmos que ser capaz de simbolizar coincide com ser capaz de tolerar a falta. Recordar carece admitir e ser capaz de viver a perda. Isso implica na possibilidade de acreditar na ‘coisa’, mesmo sem podermos confirmar sua existência pelos órgãos dos sentidos. Através de certa experiência afetiva com a realidade, passa a ser possível desapega se do real concreto ou material. Assim, podemos arriscar uma frase que se não utilizada de maneira cautelosa, pode se tornar banal: “só o amor liberta”. Mas, liberta do que? Liberta da urgência e recorrência compulsiva da confirmação no real sensório, onde se não se pode ver, não existe. No recordar é permitido intuir e a intuição está desvinculada do ver, do tocar, do cheirar...
Antoine-Jean de Saint-Exupéry (1900 - 1944) |
Na medida em que foi possível, através da dedicação a analise, que o paciente referido à cima, diminuísse a culpa quanto a seu pai e assim não necessitasse com tanta freqüência solicitá-lo através da busca em sua memória, pode-se fazer as pazes com a figura interna do pai. Em certo estagio de sua analise, me contou que numa manhã acordara com uma sensação muito boa, através da recordação de uma simples fala, mesmo que rara, mas afetuosa de seu pai.
Antoine-Jean-Baptiste-Marie-Roger Foscolombe de Saint-Exupéry filho do conde e condessa de Foscolombe (1900 - 1944) foi escritor, ilustrador e piloto da Segunda Guerra Mundial. Saint-Exupéry nos presenteou com a obra “O Pequeno Príncipe”, publicado originalmente em 1943. Esse livro é a terceira obra literária mais traduzida no mundo, publicado em mais de 160 línguas ou dialetos, sendo a primeira a Bíblia e a segunda o livro o peregrino. Nesse livro a raposa se despede do principezinho dizendo a ele: "Eis o meu segredo: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. Os homens esqueceram essa verdade, mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas." (Saint-Exupéry – 1943, p. 74) |
A recordação é sinal de que certa experiência emocional foi bem sucedida, enquanto a memória não passa de dados registrados e armazenados sobre uma realidade que ficou no passado e que pouco se confirma no hoje. Não seria nem um absurdo propormos então que, a recordação é estar ligado ao passado pelo amor (sinal de gratidão), enquanto a memória é mantida pelo medo de errar ou a culpa por ter errado (gerador de inveja). A habilidade com a memória pode fazer do sujeito uma pessoa muito inteligente, mas a sabedoria só ocorre naquele que cultiva boas recordações.
Bion, Wilfred R. 1965 As Transformações, a mudança do aprender para o crescer Rio de Janeiro: Imago Ed.
Saint-Exupéry, A 1963 O Pequeno Príncipe, Rio de Janeiro: AGIR Ed.
Prof. Renato Dias Martino
Psicoterapeuta e Escritor
Fone: 17-30113866
4 comentários:
Parabéns pelo texto.Ao iniciar minha leitura, achei que seria impossível separar o conceito de memoria e recordação. Mas recordar é tirar da memória o que se quer sentir ou dar sentido a um sentimento presente. Obrigada. Marcia
Muito obrigado pela atenção, querida Marcia Regina!
Adorei o texto! Como sempre, ma-ra-vi-lho-so!
Gostaria de saber se cabe aqui relacionar, no caso da memória, com pessoas obsessivas? Fiz essa associação quando você fala que a memória se remete ao medo de perder, ao citar sua etimologia.
Muito obrigado querida Jacqueline!
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