"A persistência da memória", Salvador Dali
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Como no salão de ensaio de uma bailarina, a mente deve dispor-se ampla e livre para um bom desempenho do pensar. A expansão dos movimentos da bailarina, assim como do pensamento, depende da possibilidade de circulação no interior da sala (mente), devidamente arejada e sentida como ambiente tranquilamente saudável. Uma sala entulhada de pré-ocupações não poderá ser um ambiente seguro, ou saudável para uma tentativa expansiva.
Não me parece exagero afirmarmos então que a pré-ocupação é sempre perigosa. Logo podemos nos estender a ideia de que, aquele que se pré-ocupa com o futuro (ou mesmo com o passado), pode ver-se impedido de ocupar-se do presente.
Olhando mais atentamente para movimentos da mente e os processos internos que ali ocorrem, percebemos recursos criados para manutenção da interação entre mundo interno e mundo externo. A apreensão dos fatos que ocorrem em nossas vidas, e sobre tudo no que está na ordem das novas relações interpessoais, é permeada amiúde pelos registros de situações vivenciadas no passado em relações primarias.
O fato é que o passado guarda ocorrências, que por estarem lá atrás, talvez, já não sirvam como provas cabais ou respostas plenas às questões que o hoje propõe. Contudo, é exatamente por meio da memória que nos garantimos quando nos vemos inseguros de nós mesmos. O existir parece depender da capacidade de lembrarmos que somos nós. A memória nos serve como importante referencial, no entanto, só até que se possa restabelecer quanto ao desempenho do projeto presente, ou, em outras palavras, a demanda do “aqui e agora” em sua apreensão e experiência. Quando em meio a uma fervorosa discussão, dizemos: ‘eu me lembro muito bem!’, é por que, muito provavelmente estamos extremamente inseguros do que defendemos como verdade hoje.
Ao mesmo tempo e frequentemente, essa mesma memória pode nos ser traiçoeira. Isso quando ocupa a maior parte de nosso espaço mental. Podemos recorrer a ela para convencermos o outro de que temos certeza do que falamos e assim, garantimos nossa propriedade sobre o assunto discutido. Desta forma, acabamos por convencer a nós mesmos da nossa própria certeza. Apoiando-nos e acreditando no conteúdo da memória, que não passa de um registro do passado, portanto, difícil de perceber e ser compreendido de forma muito ampla. Logo, a capacidade de apreender o fato presente fica comprometida.
Isso ocorre, pois dessa forma, trocamos à percepção do presente, que é em si a maior expressão do real, ou seja, o maior referencial do que podemos extrair da realidade, pelo registro cristalizado daquilo que já passou.
O leitor pode estar questionando, de que forma este mecanismo se manifesta e, muitas vezes, se transforma em uma forma de funcionamento mental. Frente a esse questionamento, uma série de hipóteses se abre à reflexão. O sujeito, preso em sua memória, cria para si um modo especial de se vincular as pessoas e coisas. Um modelo baseado em estereótipos, ou seja, em ideias antecipadas, condena-o a viver cada nova experiência como uma repetição de algo que ficou no passado. É como se tomasse a mesma estrada esperando chegar a lugares diferentes. Em 1912, Freud (1856-1939) publica “A DINÂMICA DA TRANFERÊNCIA”, em que estuda o fenômeno da transferência, que ocorre, normalmente, em todas as relações humanas e que tem uma atenção particular no processo analítico.
Sigmund Freud (1856-1939) |
“Se a necessidade que alguém tem de amar não é inteiramente satisfeita pela realidade, ele está fadado a aproximar-se de cada nova pessoa que encontre com ideias libidinais antecipadas”.
Freud escreve sobre a memória do amor perdido, incessantemente procurado nas novas relações.
Abre-se um confronto entre o reconhecimento do novo e a memória cristalizada no mundo interno. Nesse complexo processo, é mobilizada, no interior do sujeito, a criação de recursos defensivos frente ao desconhecido, potencialmente ameaçador. Sob efeito do medo de aprender o novo (incerto, desconhecido), apega-se naquilo do qual já se sabe e que se imagina ter propriedade. Portanto, uma nova verdade implica diretamente em destruir a antiga ideia.
No entanto, esse processo de transformação desperta certo sentimento de vazio, que se encontra entre uma verdade e outra. Vazio, sentido como angústia ou certo sentimento que muitas vezes sequer conseguimos nomear, que ativa no aparelho mental a necessidade de se livrar da emoção desagradável gerada. Assim, quanto maior a capacidade de tolerância deste vazio, maior a possibilidade transformação da verdade. Capacidade de vivência do luto referente a aquilo que foi perdido, sem que isso implique na perda do valor do eu.
Mas, o que usamos como defesa? Partes do eu que se encontram secas e mortas, sem sensibilidade, são aquilo que colocamos como escudo; já foram partes vivas do eu, mas, hoje, são colocadas no front da batalha. Como na cebola, que utiliza suas cascas antigas (memórias) como proteção para as partes mais novas, recém nascidas. Aprender é muito difícil, desaprender é tanto mais.
Assim, a “memória” que aqui é diferente da “recordação”, rica em afeto, portanto parte da personalidade consciente e disposta ao pensamento, pode ser usada como defesa.
Capítulo do livro Para Além da Clínica., Renato Dias Martino - 1. ed. São José do Rio Preto, São Paulo: Editora Inteligência 3, 2011.
Prof. Renato Dias Martino
Psicoterapeuta e Escritor
prof.renatodiasmartino@gmail.com
Fone: 17-30113866
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