A tomada de consciência da
realidade é um tema amplamente cogitado pelo pensamento humano, desde as mais
remotas manifestações que se tem registro. A distinção possível entre o que se
configura como ilusão e o que se possa reconhecer quanto ao fato da realidade é
questão de ordem das mais nobres áreas de reflexão. Por outro lado, esse mesmo
tema é fator de evitação constante de grande parte das pessoas.
Normalmente
evitamos a tomada de consciência da realidade até as últimas consequências, só
nos rendendo a isso quando todos os subterfúgios desabam.
Na cultura védica, que tem
suas escrituras datadas por volta de 1500 a.C, o conceito de maya é referente a
ilusão na configuração da natureza material do universo. Na semântica a palavra
maya é formada pela junção de ma, significando "medir, ou marcar "
com ya, que significa "aquilo". Essa ideia sugere que o que aquilo
que pode ser medido é ilusão.
Maya é fator central de
obstrução na experiência do desapego quanto àquilo que faz parte do mundo
sensorial. Uma dimensão que seduz e aprisiona aquele que se vê emocionalmente
vulnerável. Fragmentário e apartado do todo, o objeto de desejo configurado em
maya tem sempre uma conotação egoísta, distante da integração consigo mesmo e
com o cosmos.
Aquilo que é da ordem de
maya gratifica os sentidos proporcionando sensação prazerosa, mas por outro
lado, é pobre de nutrientes emocionais, o que leva sempre à repetição e induz
ao engano gerado pelo dualismo. A impressão do sujeito envolvido pelo véu de
maya é que isso é a totalidade, enquanto de fato é uma pequena parte da
realidade última, que é configurada na unificação do todo infinito.
A psicanálise é um recurso
por excelência na tarefa de percepção e reconhecimento da realidade. Um nobre
instrumento na empreitada de diferenciação do que pode ser ilusão daquilo que
se revela como realidade dos fatos. No entanto, esse processo não acontece de
maneira voluntária, já que enquanto a ilusão é prazerosa, o reconhecimento da
realidade é desconfortável. “Não é de espantar, então, que o ego não veja com
bons olhos a psicanálise e se recuse obstinadamente a acreditar nela.” (Freud,
1917).
Em 1917, Sigmund Freud (1856
– 1939) publica UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE, onde levanta as
reconfigurações do modo como a humanidade reconhece a realidade através do que
chamou de golpes narcísicos. Assim como, “na nossa concepção, o indivíduo
progride do narcisismo para o amor objetal.” (Freud, 1917). Segundo propõe
Freud, da mesma forma que existe a necessidade de se abrir mão de certo
narcisismo, na ilusão de ser o centro do universo, para que possa se ligar ao
outro, num amor verdadeiro, o pensamento humano também deve evoluir, quebrando
seu narcisismo do que “seria melhor que fosse” para que seja possível
reconhecer a realidade como realmente é.
Nessa mesma perspectiva,
mais tarde o psicanalista Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979) propõe o que chamou
de “mudança catastrófica”, capaz de gerar fortes sentimentos. “Esses sentimentos
relacionam-se a um sistema moral que foi violentado; a força desses sentimentos
deriva do risco de ocorrer mudança na psique.” (Bion, 1970). Bion propõe que
essa mudança ocorre sempre que um sistema é abalado pela entrada da verdade.
“Evolução ou crescimento mental é algo catastrófico e atemporal.” (Bion, 1970).
A maturidade emocional, que se dá através de desilusões,quando possam ser
acolhidas, ocorre no dar-se conta da realidade como ela é, justamente a mudança
catastrófica.
Porém, existem obstáculos
nesse percurso. O ser humano tem grande dificuldade em distinguir aquilo que
ele gostaria que fosse daquilo que realmente é. O desconforto na tomada de
consciência é fator que obstrui o sujeito de se desapegar das ilusões.
Assim, é
formado um cômodo sistema de critérios preestabelecidos, onde as leis
civilizatórias e sociais estimulam certa padronização limitadora da expansão do
pensar. “Pressuposições educacionais são introduzidas desde a mais tenra
infância, conservado alguns pressupostos sociais que são impedidos de serem
repensados por tomarem um formato saturado numa definição de certo/errado.”
(Martino, 2018). Normalmente é substituída a avaliação do que é verdadeiro e o
que é falso, pelo estabelecimento do que está certo ou errado. “O grande problema
no estabelecimento do critério certo/errado é que fica comprometida a
capacidade de percepção no discernimento verdadeiro/falso.” (Martino, 2018).
Ora, a ponderação entre
verdadeiro ou falso depende fundamentalmente da atitude e da responsabilização
do sujeito, enquanto um critério de certo ou errado o desresponsabiliza, pois
se utiliza da visão do outro. Usualmente o sujeito avalia o que é verdadeiro ou
falso através do desconforto que a ideia pode gerar. Portanto, se doer não
existe.
Ainda assim, a realidade não
carece de justificativas, nem mesmo de alguém que a confirme para garantir sua
efetividade. “O pensador não tem a menor consequência para a verdade, mas a
verdade é logicamente necessária ao pensador.” (Bion, 1970).
Diferente da
ilusão que carece essencialmente de alguém que a reafirme constantemente para
ser mantida. “A mentira e o pensador são inseparáveis.” (Bion, 1970). Conforme
Bion propõe, no que me parece muito coerente, as mentiras são os únicos
pensamentos em que o pensador é fundamentalmente imprescindível. A realidade,
por sua vez, é por si só, não carecendo de comprovantes.
BION, W.R. Atenção e Interpretação. Rio de Janeiro:
Imago, 1970.
_________ (1971). Mudança catastrófica. (C. H. P. Affonso
& M. R. M. Affonso, Trads.). Jornal de Psicanálise, 6(17). (Original
publicado em 1966).
Freud. S. UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE Vol.
XVII, (1917).
MARTINO, Renato Dias. ACOLHIDA EM PSICOTERAPIA – 1ª ed.
São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2018.
Fone: 17- 991910375
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Um comentário:
Ao pouco que entendo, a avaliação de certo/errado vem de critérios de criação,ponto de vista, ignorar o que não e confortável.Entao uma forma de sentir uma situação e verdadeira pra um e falsa para outro,de forma que imagino se uma verdade absoluta?
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