A teoria que seja proposta dentro do âmbito psicanalítico não pode se configurar de forma saturada, ou seja, não pode se prestar a trazer precisão ou exatidão. Assim como numa análise de alguma especialidade da medicina, o exame deve ser o mais exato possível. Diferente disso, a tarefa das teorias psicanalíticas é a de fornecer recursos para a nomeação de experiências que ocorrem no plano não sensorial. Portanto, carecem de modelos, para nos abordarmos o que se cogita. O modelo não é uma reprodução do que se busca, mas é uma ponte para nos aproximarmos disso. Deste modo, deve ser utilizado como analogia, num "como se fosse", guardando semelhanças e também diferenças e não de forma idêntica ao que se está propondo.
Na teoria das funções, proposta por Wilfred Bion (1897 – 1979) em APRENDENDO DA EXPERIÊNCIA, de 1962, ele traz o que mais tarde iria reconhecer como primeiro elemento de psicanálise na relação entre continente e contido. Para Bion, em 1963, na obra ELEMENTOS DE PSICANÁLISE, algumas características são condições para que um conceito (experiência) seja enquadrado como elemento de psicanálise. Deve estar a serviço da representação na formulação originalmente usada e ainda deve permitir relacioná-lo com outros elementos. Portanto, elemento é algo que pode ser combinado com outros para gerar significado. Com isso, passa a ser possível configurar um sistema interdependente para ser aplicada na experiência com a realidade.
O primeiro elemento de psicanálise, diz respeito a relação possível entre algo que possa dispor-se como continente e outro algo que se disponha a ser contido. “Ele é uma representação de um elemento que poderia ser denominado como uma relação dinâmica entre continente e contido.”. (Bion, 1963) Essa proposta é uma expansão do pensamento de Melanie Klein (1882 — 1960), na concepção do que ela chamou de identificação projetiva (1946), um mecanismo defensivo frente às angústias esquizoparanoides. No entanto, para Bion, identificação projetiva é a forma mais primitiva de comunicação. Em APRENDENDO DA EXPERIÊNCIA, Bion propõe “função” como sendo experiência mental de certos fatores que funcionam combinados e “fator” como experiência mental que funcionando em conjunto com outros fatores, configuram uma função. Assim como na matemática, aqui também, função representa a relação entre dois conjuntos de elementos, ou ainda, a transformação de um modelo para outro.
Para Bion, a função-alfa acolhe impressões sensoriais e emoções perceptíveis, no que Bion denominou elementos-beta e as transforma em elementos-alfa, então passíveis de se integrar e corresponder aos requisitos de pensamentos oníricos, logo, podendo ser sonhados. Enquanto os elementos-betas não tem a qualidade do que poderíamos chamar de integrabilidade, os elementos-alfa são a menor manifestação do que pode ser combinado com outros, para assim, ganhar significado. Portanto, a experiência emocional só pode se configura como pensamentos oníricos, depois de elaboradas pela função-alfa.
Immanuel Kant (1724 — 1804) |
“Elementos-beta: Este termo representa a mais antiga matriz da qual é possível supor que os pensamentos brotam. Eles compartilham qualidades com o objeto inanimado e com o objeto psíquico, sem que haja qualquer forma de distinção entre os dois. Pensamentos são coisas, coisas são pensamentos e elas têm personalidade.” (Bion, 1963)
Elementos-beta, são em última instancia, o que há de mais primitivo no funcionamento mental. No princípio da vida, quando o bebê sente uma necessidade, como fome, frio, dores, ou qualquer que seja o desconforto, isso ocorre sem a menor capacidade de pensar o que lhe acomete, configurando-se, portanto, num medo de aniquilamento.
Sobre isso, Donald Woods Winnicott (1896 - 1971), cogita, em 1963, sobre o medo do colapso (breakdown), terror que se configura num pavor do vazio profundo. No entanto, o bebê tem uma expectativa inata do acolhimento da mãe e isso o faz buscá-la. O amor da mãe se expressa pelo fator rêverie (do francês “devaneio”). Para Bion, rêverie é estado mental aberto a receber tudo que venha do objeto amado, sendo assim, acolhe as identificações projetivas do bebê. “Em suma, rêverie é fator de função-alfa da mãe.” (Bion, 1962) Se a projeção não é aceita pela mãe, o bebê sente que o seu medo da morte é real e reintrojetará não um medo mais tolerável, mas um “terror sem nome”, a ausência de representação.
Em sua obra TRANSFORMAÇÕES, Bion levanta a questão dos elementos de transformação e as invariâncias. Bion propõe a analogia de um pintor que contempla uma certa paisagem para pintá-la. De um lado da experiência está a paisagem e do outro, a tinta na tela. A pintura representa a paisagem. Entre a contemplação da paisagem e a tela pintada existem elementos permaneceram inalterados ao ponto de ser possível reconhecer que aquela tela representa a paisagem em questão. Ainda assim, como o artista vê a paisagem e passa para tela, promove transformações. “Aos elementos responsáveis pelo aspecto inalterado da transformação, chamo invariantes.” (Bion, 1965). Dessa forma, a mãe continente, recebe a imagem do bebê desesperado e através de sua função-alfa, devolve a ele, a imagem de uma mãe acolhendo esse bebê. E ainda, o pai continente, recebe a imagem de uma mãe acolhendo um bebê desesperado e devolve a ela a imagem de um pai protege e provendo uma mãe que acolhe seu bebê. A função-alfa, que a princípio é uma capacidade da mãe, a cada experiência bem sucedida, vai sendo aprendida pelo bebê, que aos poucos se capacita para fazer a transformação de elementos-beta em elementos-alfa, por si próprio.
Desse modo, os elementos-beta procuram um continente que seja capaz de acolhê-los. A função-alfa, acolhendo impressões sensoriais e experiências emocionais (elementos-beta) as transformam em elementos-alfa, que combinados podem formarem pensamentos oníricos. Conforme a integração de elementos-alfa e à medida em que proliferam, irão formar o que Bion chamou de barreira-de-contato. “Esta, em processo contínuo de formação, indica contato e separação entre elementos conscientes e inconscientes e inicia a diferenciação entre ambos.” (Bion, 1962). A barreira-de-contato funciona como uma membrana e sua estruturação capacita a permeabilidade de transição e a circulação dos elementos mentais entre mundo interno e mundo externo, fantasias e realidade, inconsciente e consciente, sonhando e acordado...
Por outro lado, quando falha o estabelecimento da função-alfa há uma tendência a se formar o que Bion chamou de tela beta, que diferente da barreira de contato, a tela de elementos-beta é obstrutora para a vinculação saudável entre elementos internos e externos. Enquanto a barreira de contato é composta por elementos-alfa a tela-beta é composta por elementos-beta. “Vale lembrar que esses últimos parecem carecer de uma capacidade de ligação entre si.” (Bion, 1962) Facilita a evacuação de desconfortos gerados pelas frustrações não toleradas. Um aglomerado de elementos obstrutores do reconhecimento e ligação com a realidade. “Na parte psicótica, os elementos-beta que seriam evacuados aglomeram-se dando origem à tela beta.” (Bion, 1963) A tela-beta propicia a geração do que Bion chamou de objetos bizarros, um elemento-beta que já tem marcas do ego e também do superego. Um nódulo de elementos-beta que dificultam a fluência do pensar saudável.
BION, W. R. O APRENDER COM A EXPERIÊNCIA. 1962 - Rio de Janeiro: Imago, 1991.
__________. ELEMENTOS DE PSICANÁLISE. 1963 (J. Salomão, trad.; E. H. Sandler e P. C. Sandler, revs.). Rio de Janeiro: Imago, 1991.
__________. (1965). TRANSFORMAÇÕES: mudança do aprendizado ao crescimento. Rio de Janeiro: Imago.
KLEIN, M. NOTAS SOBRE ALGUNS MECANISMOS ESQUIZOIDES. 1946 - In: KLEIN, Melanie. Tradução de A. Cardoso. Rio de Janeiro, RJ: Imago.
Winnicott, D. W. (1994). O MEDO DO COLAPSO. In D. W. Winnicott, Explorações psicanalíticas (J. O. de A. Abreu, Trad., pp. 70-76). Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1963).
Prof. Renato Dias Martino
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