Quando a gente fala da realidade material, nós estamos falando aqui daquilo que pode ser visto, que pode ser tocado. Realidade sensorial, aquela realidade da qual nós podemos tocar, podemos acessar pelos órgãos dos sentidos. Então, esta é a realidade material, esta é a vida material, essa é a materialidade das coisas.
Esta essa dimensão da realidade, dentro da formulação religiosa, a gente tem lá nos Vedas, por exemplo, na cultura védica, a ideia de Maya. O véu de Maya. Uma das traduções ali do sânscrito Maya, quer dizer, aquilo que pode ser medido. Então aquilo que pode ser medido, para a formulação religiosa é ilusão. Ela é simplesmente uma fragmentação do que a gente pode chamar de real. Então, essa é a disposição das escolhas do humano. O ser humano quando escolhe, escolhe a partir da realidade material porque é o que se pode obter, é o que se pode ter. É o que você tem a ilusão de obter. É uma decisão. Você está fragmentando. Quando você decide alguma coisa, você fragmenta, você tira aquilo do todo e isso é esquizoparanóide. Aí vamos buscar a psicanálise ali. Dentro da perspectiva kleiniana da contribuição da Melanie Klein (1882 — 1960), o bebê divide a mãe em duas da mãe boa e a mãe ruim. E aí ele escolhe a mãe boa pra ele. Então, no nosso cotidiano, a gente precisa escolher o que é bom e o que é ruim. Porque a gente não consegue concatenar, a gente não consegue atingir, abranger, melhor dizendo, a realidade como um todo que vai muito pra além desta configuração material. Quando você está de acordo com a realidade, o caminho é um só. Qual realidade? Primeiro de todas e soberana, a realidade de si mesmo, a sua própria realidade. Quando você tá de acordo consigo mesmo, quando você está em acordo com sua limitação, com o seu limite, você começa a se conectar com o todo. Porque aí você consegue reconhecer o limite do outro também. Schopenhauer (1788 — 1860) usa a palavra “negação” da vontade. Na tradução que a gente tem ali da obra do Schopenhauer “negação” da vontade. Mas a gente usa num outro formato. Negação pra gente aqui é ignorar. Não é negar a vontade, não é ignorar a vontade, mas simplesmente adiar a vontade. Ser capaz de adiar a vontade e renunciar dos desejos. Quando eu sou capaz de renunciar dos desejos e adiar a vontade, eu entro num acordo com a realidade. Qual é o remédio pra isso? O ato de fé, a esperança! E o livre arbítrio é um dom divino. Ele dá isso daí. Ele permite que você possa se apegar à realidade material. O livre arbítrio é isso, e se a escolha e se a escolha só está dentro da perspectiva da materialidade então... Por que está dentro da materialidade das coisas? Porque dentro do âmbito emocional afetivo, por exemplo, não tem escolha. Você não escolhe sentir nada. Você não decide gostar de alguém ou deixar de gostar de alguém. Você não decide amadurecer ou não. Você não decide odiar. Essas coisas não estão dentro da perspectiva da escolha ou da decisão. Aquilo existe, a gente precisa tomar consciência disso e se responsabilizar quanto a isso. Reconhecer isso e passar a se responsabilizar por isso, cada um por si. A mudança é interna, a mudança é de cada um. A transformação é através da desobstrução do reconhecimento da realidade. Da possibilidade de renunciar, aprender a tolerar a frustração a ponto de conseguir renunciar a satisfação sensorial que a materialidade das coisas nos traz. O cara perguntou pra Jesus Cristo: que eu preciso para ir com você, pra te seguir? Ele fala: meu amigo, larga tudo, mas não traz nem outra muda de roupa. Vem com a roupa do corpo. Por que que ele falou isso aí? Porque seguir Jesus Cristo a entrar num acordo com a realidade. É justamente essa possibilidade de se sustentar com uma imagem internalizada, não é? E com isso dispensar o real concreto. Quando eu tenho um símbolo, aquele símbolo significa um monte de outras coisas. Me lembrou aqui a raposa, lá com o principezinho. Então, olha que bacana, né? O simbólico faz com que você olhe para a realidade material para além da realidade material. A raposa não gostava de trigo, mas a partir do momento da simbolização do principezinho, os campos de trigo passaram a ter importância pra ela. Importância do quê? De ir lá colher o trigo pra fazer farinha e comer? Não, a importância da contemplação que fazia com que ela recordasse os cabelos dourados do principezinho. Então, não é só a materialidade, é para além disso.Se a gente está falando de religião, nós estamos falando de religar. Religar. Então, se a gente tá falando de se religar qualquer dogma que vier para fragmentar, para separar, para segregar, está sendo um desserviço dentro disso. Então, religião dentro do meu entendimento é tudo aqui que promove a ligação e a religação, que acontece porque o sujeito se desliga de si mesmo quando ele entra em contato com essa sociedade mundana que faz com que ele separe, segregue... Assim como eu comecei minha fala lá atrás: Dentro da vida cotidiana, você precisa separar, você precisa segregar... Aqui é o lugar de fulano, ali é o lugar de cicrano. A sociedade é classista. Principalmente nos dias de hoje. O grupo LGBT, não seio o que mais..., os negros, os índios, os brancos. Então, existe uma tendência de segregar, de fragmentar. E se a religião tiver a serviço disso, ela está advogando contra a sua o seu próprio fundamento. Então, quando a gente fala de formulações religiosas aqui, nós estamos nos utilizando da religião seja ela qual for. Então, de vez em quando fala da cultura védica, do budismo, do cristianismo. Mas está aberto aí, se o sujeito tem conhecimento do candomblé, o que vier, vai vir para enriquecer e expandir e integrar. É pra isso que serve, se não for nesse serviço pra nós também não interessa.
E talvez seja desta religião que o Freud (1856 - 1939) estivesse falando ali. Talvez seja desse Deus que o homem criou e não o Deus que criou o homem. Isso é próprio do humano, não tem como sair disso. Nós estamos presos nisso. A tua casa é tua casa. Você precisa tê-la como tua casa, por mais que não seja tua. Porque, como é que você vai fazer? Você vai deixar o portão aberto, a porta aberta a noite a hora que você for dormir? É ilusão? É, mas é teu! Nós estamos presos nisso. Não tem como fugir disso. Ah! Mas a posição esquizoparanóide é uma posição é ruim, não, ela não é ruim, ela faz parte do desenvolvimento. A segregação é parte do crescimento. Mas ela te afasta da realidade. Assim, e se você for perceber em toda configuração existe uma segregação dentro da perspectiva do princípio e uma integração na perspectiva da expansão do crescimento, do ir para além. A própria Bíblia, por exemplo, o antigo, o velho testamento é fragmentário, é esquizoparanóide. É segregador. E aí Jesus Cristo veio, no novo testamento para agregar. O próprio Bion, traz a ideia do ato de fé como o principal norteador do psicanalista que abre mão da sua memória, do seu desejo e da ânsia de compreensão. Qual é a importância disso na prática clínica. Qual é a importância dessa coisa da renúncia, ou da não escolha. Ou do reconhecimento de que nós não escolhemos porcaria alguma. Já que Freud nos mostrou aí que o ego não é dono da sua própria casa. Lá em 1917, em UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE, ele é muito claro quanto a isso. Não é o ego que escolhe. O ego pode no máximo se responsabilizar pela escolha. Mas escolher é uma faculdade do id e também do superego. Nós estamos no meio dessas duas instâncias aí. Então, como é a intervenção do analista em relação ao seu paciente, a partir dessa nossa reflexão? O uso da ideia de escolha dentro da sessão psicanalítica precisa ser sempre questionado. Porque, quando o paciente tem a convicção a definição de que ele escolheu alguma coisa, ele entrega isso ao seu “deveria ser”, ele entrega isso ao seu superego. Então, se você escolheu isso e se isso e por acaso teve um insucesso, então você é o culpado por isso. Não! Não foi você que escolheu! Você foi em direção daquilo que você dava conta naquele momento. Então você não pode ser condenado por isso. Porque, a grande questão da nossa clínica é justamente isso: não é o fato que o paciente traz. Mas é a exigência, a cobrança, a condenação, que o paciente cria a partir daquele fato que ele traz. É esse o grande dano! Quando você desobstrui esse caminho, o paciente começa a se responsabilizar por aquilo. Não! Eu fiz isso porque é aquilo que eu dei conta de fazer naquele momento. Então, não tem escolha. Então, não foi você que decidiu, meu amigo! E isso pra gente também. Você decidiu, você escolheu o que dizer pro seu paciente? Não, meu amigo. Não tem isso. Se você tiver dentro do teu tripé. Muito bem, meu amigo. Porque, aí você está mais responsável disso tudo. Então, se a gente ainda tiver a crença de que a gente pode escolher, de que a gente pode decidir, então acabou... Então a nossa psicanálise é superegóica. É daquilo que você deveria ser, então a gente tem um critério de “certo ou errado” que a gente vai ter que correr atrás, quando na verdade não é isso. Quando na verdade o que depende é o nosso nível de estar iludido ou estar de acordo com a realidade. E quanto a isso, não tem escolha. Isso depende do dia, depende da forma, depende da configuração do teu background do teu tripé. Do quanto você está podendo contar com a tua análise pessoal, com uma supervisão bem sucedida, com encontros riquíssimos, como esse dessa noite. Então, não tem escolha. Não tem decisão! Vou mais longe. Ah! A decisão só pode acontecer dentro do âmbito material. Mas, será? Vamos ir um pouquinho além? Será que você escolheu a roupa que você está usando agora? Será que você realmente escolheu essa roupa que você está usando hoje? Ou foi uma série de questões, uma série de configurações, de contingências, que te levaram a pegar esta roupa pra colocar hoje? E aí, a gente enche o papo, dizendo assim: eu escolhi! Você escolheu? O que você escolheu?
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