quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

TRANSFERÊNCIA E SEUS TRÊS MODELOS - Prof. Renato Dias Martino




TRANSFERÊNCIA E SEUS TRÊS MODELOS 


Freud propõe um modelo que se configura numa falsa ligação, que vai se manifestar durante o processo psicoterapêutico, por que falsa ligação, porque é uma tentativa de repetir modelos estereotipados já vividos por esse paciente na relação com o analista. O Freud vai, no primeiro momento, ele vai olhar para a transferência como um obstáculo para que a psicoterapêutica possa se realizar. Ele havia abandonado o processo de hipnose, de catarse e iniciado um novo modelo de processo de técnica, por assim dizer, que tinha a premissa da “regra fundamental”, que ele propôs. O que era regra fundamental? Era pedir pro paciente prometer que ele iria dizer tudo que viesse à sua cabeça, sem filtros, sem críticas, sem censura. E o Freud iria a partir da sua “atenção flutuante” e apreendendo elementos que precisariam ser melhor pensados. No entanto, por conta da transferência, do fenômeno da transferência, o sujeito acabava não conseguindo cumprir a promessa de que diria tudo que viesse à sua cabeça. Então, a transferência em primeiro momento, seria um grande obstáculo. Mas, Freud foi percebendo que na verdade, a transferência era um elemento fundamental para que a psicoterapia pudesse ser bem-sucedida. Enquanto o paciente não estabelecesse a tal da transferência, nada poderia ser realizado no âmbito da psicanálise, porque na realidade, nós estamos falando de “estar sendo” em relação ao paciente e não “saber sobre” o paciente. Tudo que vinha sendo feito dentro da psicanálise até então, estava dentro do âmbito de saber sobre e comunicar o que soube ao paciente, e a partir do estabelecimento da transferência, da percepção e do reconhecimento deste elemento, passou-se a praticar uma psicanálise do “estar sendo” em relação ao paciente, ou seja, um trabalho de dissolver a transferência para que o vínculo entre analista e paciente pudesse ser um vínculo verdadeiro e não uma repetição do passado.

FREUD ALÉM DA ALMA 

Eu lembrei agora daquele filme Freud Além da Alma. No finalzinho do filme ali a Cecily, personagem fictício ali, depois do trabalho do Freud esclarecer que na realidade ela sofria de um amor enrustido pelo seu próprio pai, era apaixonada pelo seu próprio pai. Ela acaba tendo consciência daquilo e aí ela agradece a ele e diz que ela está curada, mas ele diz: “não, você não está curada”. Porque, saber que ela foi apaixonada pelo pai custou ela se tornar apaixonada pelo Freud. E aí, o Freud fala: “não, a gente só começou o trabalho agora e agora a gente precisa dissolver esta falsa paixão por mim”. Que, na realidade, é só uma transferência saiu do pai e agora está na figura do analista então agora o trabalho é dentro da perspectiva do estar sendo em relação ao paciente e não mais o saber sobre.

TRÊS ETAPAS 

Em primeiro momento, o paciente teria uma resistência em manifestar a sua transferência, por mais que ele tivesse já sido acometido por ela, o paciente teria uma resistência de estabelecer efetivamente essa transferência. Em segundo momento, essa transferência vai ser vivida e atuada. Em terceiro momento, o trabalho seria de dissolução dessa transferência para uma relação real, uma relação verdadeira entre analista e paciente.

TRÊS MODELOS 

O Freud vai percebendo três modalidades dessa transferência. A primeira, que seria a transferência positiva, fundamental para um bom desenvolvimento da psicoterapêutica é um modelo de cooperação, onde o paciente vai projetar no analista, figuras que tenham sido nutridoras para ele, relações saudáveis para ele, esperançosas. Então, ele vai projetar essa esperança no analista e a partir daí, a psicoterapia vai acontecer, sendo de maneira bem sucedida. Um outro modelo é a transferência negativa, ou hostil, onde o paciente vai transferir pra figura do analista, experiências malsucedidas, ou experiências que tenham ódio, raiva e o paciente projeta isso no analista. E o terceiro modelo, uma transferência erotizada, onde o paciente vai projetar no analista uma paixão, ou uma atração, ou ainda uma tendência de controle sedutor deste analista. Lembrando aí, que a gente tem essas duas transferências, erotizada e a transferência negativa, como contraponto. Muitas vezes, o sujeito tem um ódio em relação ao analista e tenta seduzi-lo eroticamente para tentar controlá-lo e com isso ter o domínio. E o contrário também, muitas vezes o paciente tem uma paixão pelo analista e acaba hostilizando o analista para se defender desta paixão, que por assim dizer é proibida.

COTAS

Quando a gente está falando de transferência, nós estamos falando aqui, das três transferências. Todas elas acontecem ao mesmo tempo, dentro de cotas, dentro de proporções. Ora uma é mais proeminente, ora outra é mais proeminente, mas as três sempre vão estar presentes, sejam elas manifestas, ou latentes.

TRÊS MODELOS ILUSTRATIVOS


Existem três modelos de transferência e correspondentemente contra transferência e esses três modelos podem ser relacionados em outros três modelos enriquecendo a nossa possibilidade de reflexão. O primeiro modelo são os modelos de vínculo que o Bion propõe, ou seja, L, H e K. L = Love, H = Hate e K = knowledge. Amor, ódio e conhecimento, que são os três vínculos que o Bion propôs. O modelo que o Bion propõe vem depois depois do Freud e um modelo que vem anteriormente ao Freud, que é o modelo da cultura védica da Trimurti, das três deidades que regem o mundo material. Brahma, que é o criador, Vishnu, que é o mantenedor e Shiva que é o destruidor. A transferência erotizada, ou seja, da paixão, seria relacionada com Brahma, que é o Deus da criação e também com o vínculo Love, do Bion. A segunda, que é a transferência positiva, seria relacionada com o vínculo knowledge, do conhecimento de Bion e na cultura védica a deidade Vishnu. E a terceira que é Shiva, dentro da cultura védica, a deidade de Shiva que é o destruidor, com a transferência negativa, ou hostilizada e ainda com o modelo Hate, ódio de vínculo, que o Bion propõe.

TRÍADE 

Se a gente for olhar com um pouco mais de atenção, a gente vai perceber que esse tipo de tríade está presente na nossa vida, como um todo. A Trindade, a Santa Trindade do cristianismo, a trimurti da cultura védica, os três modelos de transferência do Freud, os três modelos de vínculo do Bion. O Bion também vai propor três pressupostos básicos como aquilo que rege um grupo: luta e fuga, acasalamento ou pareamento e dependência. o Bion ainda propõe os três vínculos: o comensal, o simbiótico e o parasítico. Dentro do tripé psicanalítico, não é? Que a gente fala de análise pessoal, supervisão e estudo teórico. Dentro da perspectiva ainda cristã, a gente tem lá, o belo, o bom e o verdadeiro. No estético, o ético e o metafísico. Tríade está presente em toda a formulação dos pensamentos mais nobres humanos.

MENOS

Cada vínculo que o Bion propõe, L, H, ou K, tem o seu correspondente negativo. No caso do amor, por exemplo, do vínculo L, que seria um estado de paixão, de apaixonamento manifesto e o menos L seria uma tentativa de dissimulação deste amor, que se manifesta. Como é que eu posso dissimular o amor? Com elogios, com bajulações, ou ainda, dentro de uma perspectiva de puritanismo. Tentativas de dissimulação, de uma atração erotizada em relação ao analista.

MODO DA PAIXÃO

Transferência erotizada, vínculo L, ou menos L, é proposto por Bion e guna rajas, que é o modo da paixão, que compete a deidade Brahma, dentro da trimurti, que é o Deus da criação. O Bion, quando propõe o vínculo L, ele está propondo o vínculo amor, love, mas apartado do conhecimento, knowledge, vínculo K.

MODO DA BONDADE 

Se cada vínculo tem o seu menos a sua tentativa de dissimulação, o vínculo K também tem o seu menos K enquanto. K é uma tentativa de conhecer, da busca da verdade, menos K é a tentativa de obstrução da busca da verdade. Relacionando o vínculo K com a transferência positiva, ou seja, o paciente está buscando a verdade e está relacionada também ao guna sativa, que é conferido ao Senhor Vishnu. Guna satva quer dizer modo da bondade. Quanto regido pelo modo da bondade, ou pelo vínculo K, o sujeito está em transferência positiva, cooperando com o processo. Dentro do vínculo menos L e o vínculo menos H, também temos relacionado o vínculo menos K, porque os dois dizem respeito, também, a dissimulação da verdade.

VERDADE E ARROGANCIA

Todas as vezes que o sujeito está tentando dissimular, para que não revele a verdade, quando ele não está sendo sedutor, ele está sendo arrogante e muitas vezes, as duas coisas. Muitas vezes, ele está sendo arrogantemente sedutor. Muitas vezes, a gente tem essa ilusão de que o sujeito que é prepotente e arrogante é um sujeito mais verdadeiro. “Eu falo a verdade, por isso que eu sou assim”. Então, muitas vezes, o arrogante desperta até a idealização do outro, como se fosse alguém poderoso, como se fosse alguém verdadeiro, quando na realidade é o contrário. Né? O sujeito que está seguro da sua verdade não precisa impor aquilo, não precisa ser arrogante.

DE K PARA O

Para quem não conhece Vishnu e sua manifestação em Krishna é aquela deidade azul, aquele Deus azulado da cultura védica, indiana e Krishna é a manifestação de Vishnu no mundo material. E K que é um vínculo de conhecimento, proposto por Bion é o que leva para a realidade última que é “O”. K seria a representação no mundo material da realidade última, que é a verdade absoluta, que é a realidade que existe independente da expectativa dos seres humanos.

MODO DA IGNORÂNCIA 

A transferência negativa está relacionada ao vínculo H que o Bion propõe. Vínculo Hate, ódio e também o seu equivalente negativo que é o menos H, menos ódio, enquanto um é o ódio manifesto, dentro da hostilidade o outro é uma dissimulação deste ódio, que vai aparecer por exemplo na crítica. O paciente, quando critica, ou ainda numa hipocrisia, os seus atos não correspondem com aquilo que ele profere. E este vínculo está ligado com Shiva, que é o encarregado da guna tamas que é o modo da ignorância da destruição. “Ah! Mas o modo da destruição é ruim!” Não é ruim. Ele faz parte do processo. Muitas vezes, ele precisa ser manifestado para que alguma experiência aconteça e as pessoas possam despertar e aprender com a experiência. Então, muitas vezes, a gente tem essa ideia de que a transferência negativa é ruim. Não, ela é necessária, isso não quer dizer que você precisa permitir ataques, mas, muitas vezes, a sua manifestação, em relação ao ataque do seu paciente vai ser extremamente terapêutica. Mostrar o limite. Dizer que daquela forma você não continua, para que o paciente possa acordar.




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