quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Quem é Narciso

Quem é Narciso
Por Renato Dias Martino


A parte narcisista da mente é um bom exemplo de idéias que perduram no tempo, assim como substancia do existir.
Reflexões sobre o mito de todos nós.
Narciso (1594-1596),  por Caravaggio


È curioso como algumas idéias perduram no tempo e assim como substancia do existir, ainda hoje se mostram tão atuais. Mais interessante ainda são aquelas que além de perdurarem, ainda evoluem, sugerindo até certo misticismo como conotação de ‘previsão do futuro’ daquele que propõe pensarmos sobre essa ideia. Pensamentos que encontram espaço para expansão em áreas como cultura ou mesmo no conhecimento cientifico. São exemplos de pensamentos que em sua história, encontram pensadores propostos à transcendência da idéia inicial e através de discussão e certas atenções cuidadosas puderam proporcionar evolução de tal pensamento. É o caso de Narciso (em grego Νάρκισσος) na mitologia grega, famoso por ser um rapaz extremamente belo tanto quanto orgulhoso. O mito de Narciso é uma bela e triste tragédia escrita a muitos anos, reescrita inúmeras vezes e ainda hoje se mantém extremamente viva nos servindo de modelo especial na proposta de simbolização, criação de sentido e conhecimento das vicissitudes da alma humana. Algumas versões do seu mito sobreviveram como a de Ovídeo, em Metamorfoses, escrita em torno do ano 14, e a de Pausânias, no Guia para a Grécia (9.31.7). A saga desse mito é muito triste e realmente tocante á aquele que se propõe conhecê-la. Conta o mito que sendo filho de um ato de violência do deus-rio Cefiso á ninfa Lirípe, Narciso tem do vidente Tirésias a previsão de que teria vida longa, desde que jamais contemplasse a própria imagem, ou seja, que não conhecesse a si mesmo. Destino particularmente complicado para aquele que se vive na Grecia, onde a lei fundamental é ‘conheça te a ti mesmo’.Em 1914 Sigmund Freud (1856-1939) publica “Sobre o Narcisismo Uma Introdução”, usando do mito de Narciso como modelo no estudo do aparelho psíquico. Freud apoiado em alguns pensadores, chama de narcisismo, a fase do desenvolvimento mental onde se inicia o reconhecimento daquilo que existe além do eu, nessa etapa com a condição de que seja um espelho. Mais que uma fase do desenvolvimento, um estado de ampliação do pensamento, que na medida em que encontra conflitos severos em seu inicio se instalam como funcionamento mental. Narcisismo está para a mente também como uma defesa, um recolhimento em direção ao mundo interno, que ocorre (ou deveria ocorrer) diante da perda de algo importante, no mundo externo. Um processo que Freud, mais tarde, em 1917, descreve ocorrendo ante a situação de forma saudável no luto e de maneira patológica na melancolia. Na patologia, o sujeito que sente a falta no mundo externo, é incapaz de se colocar direcionado para o mundo interno sem ali se perder. Assim como o mito que ao deparar-se com sua imagem refletida no rio, ali permanece como que apaixonado por si mesmo. Nesse mesmo local morre e onde está seu corpo cresce uma flor venenosa. A cogitação se encontra na inteiração das duas direções que o amor pode tomar, a saber; para o eu ou para o outro.
Há um Narciso em cada um de nós, e que só poderá ser salvo do destino do mito se, através da busca do conhecimento do “EU” ou a busca daquilo que C. G. Jung (1875-1961) chamou de individuação, nos propusemos nos libertarmos do modelo que depende exclusivamente do outro para reconhecermos coisas que na realidade estão dentro de nós mesmos. Tarefa que é freqüentemente adiada com o auxilio da tecnologia e outros recursos que revela um sujeito encapsulado hermeticamente sem chance de troca num encontro com o outro, mas perdido dentro de si mesmo. No obstáculo de olhar pra si mesmo, fica-se justamente distante do outro real, vendo ali um pedaço evitável de si mesmo. Como se disséssemos: ‘O outro só existe na medida em que desejo que exista’.
A dificuldade de contato com o mundo interno e em conseqüência com a realidade que existe no externo propõe obstáculos que surgem em nome da conservação da posição narcisista de cada um de nós. Como sair deste cárcere narcísico? No exercício e aprimoramento da maior peculiaridade do animal humano; a habilidade de pensar. Isso diz respeito a passar de estagio primário de guiarmos pelo reflexo de nós mesmos e refletirmos (como coloca brilhantemente o psicanalista Wilfred Ruprecht Bion (1897 - 1979) em direção a verdade e a vida. Experiência que, em cada esquina nos propõe um novo desafio, nos desequilibrando e nos tirando a certeza onipotente do narcisismo. O mito de Narciso que na Grécia era encenado nos teatros de arena. Num exercício de profundo pensamento proporcionava certa catarse, ou seja, um movimento interno naquele que assistia. Hoje está exposto no jornal da tarde, revelando não apenas o mito que perdurou, mas também a incapacidade de pensarmos sobre ele. Cada um de nós, seres humanos, que sem poder ter tido chance e um ambiente seguro para pensar certas paixões e ódios, sentimos o impulso guiar-nos até a ação, como única alternativa.

Prof. Renato Dias Martino

Psicoterapeuta e Escritor
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