Quantas vezes nos propomos a refletir sobre nossos vínculos? De que forma estamos ligados ao outro e porque insistimos em continuar dessa forma? Por que não conseguimos nos vincular ao outro, ou ainda, por que nos desligamos tão facilmente?
Quando inundados pela culpa criamos uma forma especial de vínculo. Sentindo-nos culpados, somos defensivamente obrigados a nos refugiar nos domínios do nosso mundo interno. O sentimento da culpa força a se desfocar o olhar que seria dirigido ao mundo externo e sugere a focar-se atenções em aspectos internos. Isso com o intuito de restabelecer o bom funcionamento da mente. Toda energia mental é agora concentrada no mundo interior, onde está a culpa.
Assim como no funcionamento primitivo do bebê em sua primeira infância, onde pouco conhece do mundo além dele mesmo, também naquele que carrega uma culpa a energia psíquica está dirigida para o eu. A partir da experiência da culpa o ego fica desvalorizado. Independente da realidade dos fatos a culpa faz do eu um criminoso, e dessa forma toda e qualquer força da mente deve se colocar em função e aos cuidados desse ego enfraquecido. O sujeito acometido pela culpa deve reunir características egoístas.
Não é absurdo propor que cada experiência de perda, ou mesmo de ameaça de perda, implica em certa cota de sentimentos de culpa da incapacidade de ter cuidado do que se foi. Assim essa forma da mente trabalhar se instala, ocupando o funcionamento mental. Quanto maior a dependência para com o objeto que é ameaçado pela perda, ou mesmo o objeto que foi perdido, tanto maior a culpa implicada na experiência.
Dentro dessa perspectiva a relação com o mundo externo nos vínculos com o outro só é sustentada com o intuito de afastar ou aplacar o desconforto ocasionado pela culpa, ou ainda, em função do medo da perda. Nada pode ser construído, nada se edifica, pois toda energia centraliza-se no intuito de restabelecer a harmonia do aparelho mental. O objeto externo, nessa situação, já não pode mais ser chamado assim, isso por conta da dependência dele para o funcionamento mental do sujeito. O eu e o outro se confundem, não podendo ser separados. Dessa forma objeto interno e objeto externo se fundem.
Pelo menos a priori, a culpa tem sua origem na fantasia. Isso quer dizer que não depende da confirmação da realidade para se sustentar. É oriunda de experiências ocorridas no passado que o hoje não pode atestar.
Sigmund Freud (1856 - 1939) |
A partir da construção dessa conjectura quanto à culpa, podemos dizer então que enquanto a mente está ocupada em cuidar da culpa, se vê impedida de responsabilizar-se pela realidade.
A responsabilização, diferente da culpa, é um movimento do ego estruturado e fortalecido. Um ego forte qualifica o “sujeito desejante”, aquele que escolhe e se expande em direção ao mundo, em nome da realização. Contudo, aquele que está culpado se encontra impedido de escolher e, assim, também se vê impedido de realizar.
A realização parte justamente da capacidade de responsabilizar-se por tudo aquilo que foi gerado a partir do encontro com o que está para além do eu. Essa responsabilização deve contar com o espaço mental que ocupa¬rá essa ideia. Uma mente entulhada de culpa não pode conter a responsabilização. O sujeito responsável está ocupado em realizar, enquanto que o culpado está preocupado com suas culpas. A pré-ocupação é sempre perigosa e um sinal claro da presença da culpa. Aquele que, intoxicado pela culpa se pré-ocupa com o fu¬turo (ou mesmo com o passado), pode ver-se impedido de ocupar-se do presente, único lugar do tempo que pode guardar a realidade.
A responsabilidade é um conceito que está na ordem da ética, enquanto a moral se utiliza da culpa. A verdadeira responsabilidade (assim como outras ações éticas) deve ser incorporada quando criança, e isso se dá através da identificação no vínculo com os pais, nunca imposta em um padrão de educação pré-estabelecido.
Já tivemos a chance de refletirmos sobre os conceitos de respeito e reconhecimento, e assim parece claro que, quando se é reconhecido pelo outro, abre-se então a possibilidade do auto reconhecimento, e a partir daí então se torna capaz de reconhecer o outro. Tendo como hipótese que o amor é uma capacidade desenvolvida a partir da experiência do reconhecimento, então podemos propor que aquele que não se encontra capaz de amar pode ver na culpa um modo de manter-se ligado ao outro.
A desvalorização ocorrente no ego culpado o faz incapaz de se responsabilizar por si mesmo. Isso pode levá-lo a esconder dele próprio as piores características, justamente por se ver incapaz de se responsabilizar por isso. Contudo, estas mesmas características não deixarão de existir, permanecerão ali, atuando no funcionamento mental, mas agora resguardadas pela culpa, aparecem como se fossem responsabilidade do outro.
Capítulo do livro: O amor e a expansão do pensar : das perspectivas dos vínculos no desenvolvimento da capacidade reflexiva / Renato Dias Martino. - 1. ed. - São José do Rio Preto, SP : Vitrine Literária Editora, 2013.
Prof. Renato Dias Martino
Psicoterapeuta e Escritor
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