sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Reclamação Crônica

Não é difícil encontrar um reclamão, aquele sujeito que nunca está bem com nada, ou em situação alguma. Um sujeito que justifica sua constante reclamação dizendo que, se sua vida não é fácil, a dela pode ser pior ainda. Além de afastar os amigos e as pessoas do seu convívio, parece usar esse mesmo afastamento para nutrir suas justificativas. Entretanto, mesmo com tantas justificativas ele é muito pouco consciente do que realmente incomoda.
Essa condição que poderíamos aqui chamar de  ‘insatisfação crônica’ é na realidade geradora de inúmeros sintomas, mas todos seguindo uma direção não muito distinta entre eles. Essencialmente como se algo o degradasse o tempo todo. A impressão de que a realidade do outro é menos cruel que a sua, pode ser o resultado de uma experiência, na vida do reclamão, onde realmente isso ocorria. A predileção por um dos filhos, por exemplo, pode naturalmente gerar um insatisfeito crônico no filho preterido e essa característica pode persistir por toda sua vida emocional. Na realidade, o reclamão parece sofrer de uma dor ligada a algo que faltou a ele num período da vida onde ele não tinha capacidade de identificar e nem recursos para nomear essa falta. Dessa forma reclama eternamente por algo que não teve e nunca mais terá.
Então ele afasta os amigos, pois tende sempre a culpar o outro pelos infortúnios de sua vida. Ele segue reclamando justamente para tentar evitar sofrer. Isso por que aquilo pelo qual ele reclama já não existe mais, o que permanece é a incapacidade de compreender isso, daí vem a recorrente queixa. Como numa situação de melancolia, onde se chorar a morte daquilo que morreu, assim como Sigmund Freud (1856-1939) escreve em seu texto ‘Luto e Melancolia’:

“No Luto é o mundo que se torna pobre e vazio, na melancolia, é o próprio ego.”  (Freud, 1917)

Podemos dizer que o sujeito descrito aqui é um melancólico, que não encontra nada de bom no mundo, pois não consegue reconhecer-se como alguém bom. Isso talvez, por nunca ter sido reconhecido pelo outro.
O melancólico não permite que morra, ele não se permite sofrer o luto, contudo amiúde esbarra na realidade da morte e aí reclama. A morte aqui não se caracteriza só na morte de uma pessoa, mas a perda de qualquer coisa na vida. Falo aqui de um modelo de vínculo, do eu para o eu mesmo e do eu para o outro.
Tipos melancólicos como esse estão presentes em todas as esferas da humanidade inclusive no mundo interno de cada um de nós. O humorista cria personagens a partir do reclamão, os contos de fadas (o anão Zangado), os desenhos animados (Smurf zangado)...
Com efeito, um reclamão emerge sempre e logo que se forma um grupo. As maiores vítimas são aquelas que não puderam ter um ambiente seguro, que fosse possível as reclamações reais de suas necessidades afetivas em seu tempo. Falo da fase da criança em que ser reconhecido é uma necessidade básica do desenvolvimento emocional. Aquele da qual o choro não foi acolhido e compreendido passará a vida toda chorando.
Assim como na colocação de freudiana, quando é comprometida a autoestima é como se o melancólico reclamão dissesse: sem isto, eu não consigo viver. Parte do eu parece morrer junto com aquilo que se perdeu no mundo. E a reclamação recorrente é o sinal daquilo que falta no eu e reflete-se no mundo externo. Uma parte do eu da qual o próprio eu não é capaz de se responsabilizar, então passa a ser responsabilidade do outro, que a partir daí passa a ser o alvo da reclamação.
E não importa o que se faça ou o que aconteça de bom, a reclamação persiste, pois o que parece morrer não é apenas aquilo que se deseja, mas, o próprio desejo. Na realidade a reclamação parece ser gerada da própria incapacidade de criar algo agradável.
O reclamão não para pra pensar no outro, ele apenas chora aquilo que não pode ter, ou ser. O reclamão é um narcisista que reclama de tudo que não é espelho. O mito grego de
Narciso só amou a si mesmo; quando amou o outro, o fez na sua imagem refletida na margem do rio, onde morreu depois de muito adorar sua própria face. O vínculo que o reclamão faz com aquilo que se perdeu e que reclama - segundo o modelo melancólico - é muito mais com aspectos do “eu” projetados no outro, do que o outro real. Isso ocorre, pois muito provavelmente esse sujeito reclamão não pode viver seu narcisismo natural em seu tempo e quando bebê foi impossível desfrutar de um curto período, mas, extremamente necessário, onde sente que ele é o centro do universo.




Prof. Renato Dias Martino
Psicoterapeuta e Escritor
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sábado, 15 de novembro de 2014

Do Desenvolvimento do Amar

Numa visão superficial da obra freudiana, a conceptualização do amor pode ser facilmente mal interpretada. Se não for pesquisado de forma cuidadosa o conceito pode tomar uma proporção um tanto quanto rasa. Isso, pois, é encontrada frequentemente coincidindo com o termo libido, se restringindo no desejo que se sente por alguém, ou algo. Uma tendência do funcionamento mental a se pronunciar em direção ao objeto de desejo, a pulsão de vida descrita por Freud. Eros, o deus do amor na mitologia grega, serve como ilustração. Entretanto, o autor que aqui escreve procura desenvolver um quadro que inclui o amor como sendo certa capacidade que guarda a característica do desenvolvimento.
Ainda que oriunda desse mesmo desejo (libido), entretanto, enquanto amor, não permanece meramente como desejo que se pronuncia em direção a um objeto ou a si mesmo (narcisismo), mas que evolui como inclinação em acolher esse objeto e contê-lo. O ‘amar’: aquela que talvez esteja (assim como a sinceridade) entre as mais sublimes capacidades que um ser humano pode desenvolver, pode nascer do desejo, mas desse estágio deve evoluir. Isso considerando que estamos diante da nomeação de certa experiência que está disposta ao desenvolvimento dentro de uma graduação evolutiva, onde, mediante a um ambiente propicio, tende a expandir-se pra além de sua forma original.
Partindo de suas formas mais toscas e rudes, até tomar configuração mais alargada, mais elevada e por isso desenvolvendo características nobres. Cada evolução dessa experiência confere então uma nova nomeação que adequará a relação entre conceito e experiência.

Na ausência desse desejo do qual Freud chamou de Eros e que aqui elegemos como protótipo de amor e é responsável pela integração das partes, o que se apresenta é a quietude ilustrada na teoria freudiana, por Thânatos, que conduz a dissociação das partes.
Um processo de involução, uma ação defensiva de retirada do amor do objeto e redirecionando-o para si mesmo. Duas tendências: amor do outro e amor do eu, vivendo e convivendo no funcionamento da mente humana, em suas experiências afetivas. O desejo, ora bruto e egoísta, seria aqui um protótipo do que um dia poderia, adequadamente ser chamado de amor. Isso se for irrigado de afeto, dentro de um ambiente acolhedor e podendo se desfazer de sua forma antiga, na proposta de um novo modelo mais evoluído, ungido da capacidade de tolerar frustrações.



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sábado, 1 de novembro de 2014

COMO FAZER UMA LEITURA PROVEITOSA

A leitura de textos introspectivos, como são na sua maioria aqueles das teorias do pensar, requer um cuidado especial. A leitura de escritos dessa ordem, não é como a leitura de um romance, de um jornal, ou mesmo de um manual de instruções. Algumas atitudes são fundamentais para que a leitura dessa ordem de textos seja realmente proveitosa. Por tanto, gostaria de propor, algumas delas nas linhas que aqui seguem. São aspectos que, envolvem uma evolução do desenvolvimento da prática da leitura.
Em primeiro lugar gostaria de propor o aspecto circunstancial como condição fundamental para o que a leitura seja bem sucedida. A experiência deve ter inicio no momento da disposição interna para a leitura, enquanto isso não ocorrer nada poderá ser realizado. Dessa forma, prudente seria, ter sempre a consciência de que muitas vezes é mais interessante aguardar outra ocasião e não insistir em algo de forma forçosa. Se estivermos forçando a leitura, não estaremos aproveitando nada, e muito provavelmente nos pegaremos paginas a frente sem sequer se recordar o que foi lido até ali.
No entanto, a capacidade de tolerar não compreender tudo que esteja sendo lido é fundamental para que a leitura possa fluir. Muitas vezes não compreendemos certa parte do texto que será possível ser compreendida só no final da leitura. Em alguns casos iremos compreender só tempos depois de termos lido, ou mesmo pode ser que nunca seja entendido, mas que nem por isso não foi possível aprender, crescer e expandir o pensamento com o conteúdo do texto.
O segundo é o aspecto importante é o ambiental, que diz respeito a onde será realizada a leitura. Um local arejado, com boa iluminação e o mais livre possível de ruídos estressantes é fundamental para uma boa leitura. Esse aspecto poderá ser descartado quando for possível respeitar o primeiro e assim que os próximos forem cumpridos de forma efetiva. Estando num momento disponível à leitura e buscando desempenhar os seguintes elementos, pouco importará onde esteja lendo. Assim, se encontrará tão integrado em si mesmo e em sua leitura que a localização no espaço físico será de muito rara influência, pois a paz e o silêncio já se encontram interiorizados.
Em seguida temos o terceiro aspecto: o constitucional, que diz respeito ao intuito da leitura. Dificilmente nos engajaremos numa leitura introspectiva, podendo desfrutar de sua essência, sem que haja um bom motivo para isso. Se esse motivo não for de certa forma claro para o leitor, mesmo num ambiente adequado, não haverá disponibilidade de concentração para uma leitura proveitosa. Esse motivo não precisa necessariamente ser claro para o outro, bastando que o leitor sinta como presente sua motivação interna.
O quarto é o aspecto conceitual, aquele que diz respeito à nomeação de experiências. Se o conteúdo do texto estiver deveras distante da possibilidade de vivência subjetiva do leitor, a leitura logo se mostrará entediante e desinteressante. Isso acontece por conta do choque de realidade, onde o conteúdo se configura num absurdo inimaginável. Ora, se aqui falamos de leitura introspectiva, então aquele que não é capaz de olhar para as experiências internas, não poderá se aproveitar de conteúdos dessa espécie.
O aspecto reflexivo é o quinto aspecto importante para uma leitura introspectiva, e diz respeito à possibilidade de transcendência da ideia contida no texto. Um leitor que não for capaz de ir para além do que está escrito, numa analogia com outros temas e outras leituras, não será capaz de se beneficiar de maneira profícua da leitura que agora se dedica.  Fica assim, de forma limitada, preso ao conteúdo de maneira unívoca. Isso empobrece o conteúdo independente do que está escrito, pois não contará com referencias para levantar semelhanças e diferenças, o que enriqueceria a substância do texto.
O aspecto contemplativo é o sexto aspecto e se encontra numa esfera muito nobre, que traz à leitura a possibilidade de certo aproveitamento muito profundo. A contemplação do conteúdo do texto é uma capacidade rara, e que não pode ser aplicada a qualquer texto. Alguns textos trazem uma conotação poético-artistica e permitem que o leitor desloque a leitura da busca cultural numa dimensão contemplativa, tanto do conteúdo quanto da forma de escrita. Porém, a ânsia por compreensão e a busca voraz pelo saber pode dificultar esse aspecto. Quando o que se deseja é entender, muitas vezes, a contemplação se torna impedida.





quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Sobre Ser Amigo de Si Mesmo


A procura por tornar-se uma boa companhia pra si mesmo é sem dúvida uma tarefa inesgotável. Entretanto, a questão é: como ser amigo de si mesmo sem nunca ter tido um modelo pra isso? Quando falamos da possibilidade de um dialogo bem sucedido consigo mesmo, isso dependerá diretamente da possibilidade de ter mantido um dialogo saudável com o outro, anteriormente, não sendo provável que aconteça sem essa condição.
O que acontece é que as pessoas costumam fugir das conversas com elas mesmas, por temerem um dialogo cheio de acusações e críticas pesadas. Isso, pois provavelmente foi só o que tiveram nas conversas com o outro e de tal modo, não encontram experiências de diálogos mais saudáveis na sua história de vida. Por conta disso o que acontece é um empobrecimento na autoconfiança e o dialogo interno se dá através de um clima hostil que tende a gerar transtornos mentais e até patologias graves. 
No processo psicoterapêutico isso fica muito claro, onde, através do vínculo estabelecido entre psicoterapeuta e paciente é possível para esse ultimo criar um modelo de vínculo consigo mesmo. Não se trata de uma proposta de completar o outro, mas fornecer modelos para um dialogo interno que proporciona a integração do eu que vive em conflito consigo mesmo.
Penso ser realmente muito importante desenvolver um dialogo interno que possa ser digno de confiança para nos orientar na busca pelas respostas da vida, mas não acredito que isso possa acontecer sem ter sido precedido pelo vínculo com o outro, como resultado dessa experiência.
Amizades sinceras e irrigadas de afeto servirão de modelos mesmo quando os amigos não estiverem mais juntos, por algum motivo. Isso ocorre através de uma recordação (re - novamente, cor- coração e dar - doar). Não saberemos como acolher a nós mesmos para sentirmo-nos bem sozinhos, sem que antes tenhamos aprendido isso através do acolhimento do outro. Imaginar que seremos capazes de lidar sozinhos com as questões que a vida nos traz faz parte de uma ilusão narcisista. Só aprenderemos a ser uma boa companhia para nós mesmos tendo um bom companheiro para instruir-nos nisso e na ordem natural das coisas isso seria papel dos pais, porém pode ser possível encontrar esse modelo pra além desses vínculos primários. 
Estou de acordo que as respostas estão sempre no mundo interno, entretanto é necessário que exista uma relação com o mundo (externo) para que isso possa se realizar. A psicanálise nos mostrou de forma clara que a personalidade é formada, nutre-se e se desenvolve através dos vínculos bem sucedidos com o outro e por outro lado, padece na medida em que esses vínculos fracassam.
A qualidade do dialogo que podemos travar com nós mesmos depende de um dialogo estabelecido com o outro, sendo que antes disso não teremos recursos de integração do eu o suficiente para essa ordem tão nobre e elevada das experiências psíquicas. Na realidade só iniciamos o processo do pensar a partir da entrada do outro, antes disso o que fazemos é simplesmente imaginar. 







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sábado, 6 de setembro de 2014

O Saudável e o Prazeroso


É incansável a pesquisa na busca por modelos que possam representar as coisas da alma. Penso que não podemos discutir, com propriedade, qualquer outro assunto, se antes não pudermos falar na responsabilização do ser humano por si mesmo e pelo mundo. Discutirmos assuntos como a preservação da natureza, a ética na política, a violência nas ruas (seja da policia ou do crime), é sempre mais produtivos (se é que de outra forma se produz) quando podemos sinceramente nos responsabilizar pelo menos por nós mesmos.
Insisto nisso, pois apesar de sermos animais pensantes e até nos diferenciando dos outros animais por isso, a própria capacidade de pensar ainda é muito pouco eficiente (diria até embrionária) no humano atual. Humanos que na realidade, age muito mais por suas defesas, do que por demandas que puderam ser pensadas (haja vista as atrocidades que hoje já não têm mais hora para passar nas televisões ou redes de comunicação na internet). Sinto extrema dificuldade em falar e escrever sobre esse tema, sem experimentar uma estranha sensação de estar sendo “chato”, por tocar em algo desagradável e que, a maioria das pessoas, prefere não mexer, e quem dirá olhar com cuidado.
Podemos até confundir esse texto com um discurso intelectual, mas o assunto aqui tratado está muito mais próximo de questões emocionais na busca pela maturidade do que de qualquer construção da intelectualidade. Seguindo esse caminho das pedras, penso que nos seria útil distinguir duas ideias que amiúde se confundem e até parecem sinônimos, se não atentos estivermos.
Porém, se pudermos manter certo vértice especial de pensamento, perceberemos que os termos em que, proponho o pensar, proporcionam um encontro antagônico. Quero propor que, nesse ponto de vista, algo prazeroso não é necessariamente e ao mesmo tempo saudável, e, vice-versa. Na verdade, a psicanálise nos mostrou, com muita propriedade, que a mente só pode se expandir na medida em que podemos abrir mão de certos prazeres, em nome do pensamento, até para que possamos perceber o que realmente é saudável pra nós.
Para mantermos esse ponto de vista, teremos que lançar mão do conceito de símbolo ou da capacidade de simbolizar, recurso que é criado na tentativa de preencher o vazio da realidade não sensorial. Quando o real não está ao alcance sensorial, o que sustenta a alma é um pensamento simbólico. Sem o recurso do símbolo, ou seja, sem a capacidade de simbolizar, o que se deseja e parece ser saudável será sempre o que é prazeroso e não existirá aí qualquer chance de diferenciação entre as duas ideias.


Então poderíamos cogitar a hipótese de que: “aquilo que é saudável caminha mais próximo da ausência do prazer, pois, quando a satisfação do prazer sensorial se faz predominante, muito pouco se produz no pensamento simbólico, que é o que nos liberta do concreto (apreensível pelo sensorial ou órgãos dos sentidos), o que nos faz real e nos permite reconhecer a própria realidade (o que poderíamos chamar de saudável).”









Capítulo do livro Para Além da Clínica. Renato Dias Martino - 1. ed. São José do Rio Preto, São Paulo: Editora Inteligência 3, 2011.




sábado, 16 de agosto de 2014

Pensando o Pensar

Mas sobre qual experiência estamos aqui cogitando, quanto ao “pensar”?
Se existe algum sentido em afirmar que fora do domínio da experiência, não pode existir aprendizado, então temos aqui, como ponto de partida para se entender o processo que compreende o desenvolvimento mental, ou seja, como ocorre a expansão do pensamento.
Nas tentativas de examinar atentamente o que chamamos de “pensar”, estaremos cogitando sobre a capacidade da qual os humanos se gabam perante os outros animais, mesmo, sendo muito pouco habilidosos, no uso deste recurso mental.
Digo isso, apoiado no pressuposto de que esses humanos, que somos nós, ainda fazem a maior parte das suas escolhas, por motivos, dos quais não puderam ser submetidos a um pensamento atido e dedicado. Fazendo isso por necessidades extremamente primárias, onde, na maioria dos casos, o pensamento não tem acesso.
O humano escolhe, sem pensar, onde a urgência se pronuncia. Escolhe sem pensar, onde a necessidade de satisfação imediata não permite tolerar frustrações.

Em um modelo muito primitivo de funcionamento mental, podemos encontrar o modo como os seres humanos contemporâneo fazem suas escolhas. Mesmo assim, tentaremos, aqui, fazer o possível para angariar o máximo de recursos nessa breve tarefa de pensar o “pensar”.

A palavra pensar parte do Latim PENSAREA, que diz respeito a pesar, ou avaliar o peso.

Aquilo que chamamos de “pensamento” faz parte do processo de construção do espaço interno mental. Esse espaço interno mental serve a várias tarefas, entre elas a de dar conta dos conteúdos internos como é o caso das emoções e também conter aspectos colhidos na realidade. Pois bem, mas que tipo de benefício poderia nos trazer o exercício e aprimoramento da habilidade de pensar?
Para Freud (1856-1939), o pensar tem função fundamental no adiamento da ação, resultado do impulso. É o que propõe nas Formulações Sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental, publicado em 1911: 
“o pensar, foi dotado de várias características, entre elas a que torna possível ao aparelho mental tolerar uma tensão intensificada de estímulo, enquanto o processo de descarga era adiado.”

O teste da realidade e seus recursos foram criados pelo aparelho psíquico com intuito de, viabilizar o confronto das fantasias com as informações advindas da realidade. Assim, logo percebemos o benefício de expandir essa capacidade. Quero propor que pensar é também capacitar-se no desempenho da vida, no que diz respeito à realização de mundo. É a criação do continente mental que sustenta o processo do pensar, sem que se entregue antes à ação. É quando a percepção, feita através dos órgãos dos sentidos, indica a necessidade de ação, a capacidade de pensar pode, adiar essa ânsia. Isso, até que se perceba com mais acuidade a realidade. 
Como vimos, o significado semântico da palavra nos orienta com grande ilustração e avaliamos pelo pensamento, o peso das ideias. Essa é talvez a primeira das funções do pensamento, ou a mais básica delas. A partir da capacidade em adiar ações inicia-se, uma série de expansões na perspectiva dos processos mentais.
A psicanálise nos mostrou com muita propriedade que só podemos aceitar no mundo real aquilo que já existe no mundo interno, ou seja, dentro de nós. Criamos espaço em nossas mentes e, só depois, conheceremos a realidade.

A capacidade de reconhecimento do mundo interno é o encontro e o reconhecimento de fantasias, medos, desejos apaixonados, ódios e tudo mais que está em nosso mundo interior. São características do incerto, do informe. Nosso mundo interno nunca é bem definido e sempre é pobre de referencias da razão. Por conta disso é um terreno escuro, sombrio e cheio de ameaças. No entanto, só buscando conhecer nosso eu interior é que podemos distingui-lo do que está fora e que chamamos de realidade. O estado emocional do “eu” (dentro) tem menor chance de se abalar em situações e ambientes emocionalmente danosos (fora), isso se estiver se dedicando a um reconhecimento do si mesmo. O pensamento é, por assim dizer, a capacitação do “eu” (compreendendo o mundo interno) na ligação afetiva com o mundo (externo).

Capítulo do livro Para Além da Clínica. Renato Dias Martino - 1. ed. São José do Rio Preto, São Paulo: Editora Inteligência 3, 2011.



Prof. Renato Dias Martino
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