domingo, 5 de junho de 2016

SOBRE AMORES DE WHATSAPP

O estudo da psicanálise, assim como a pesquisa das mais expansivas áreas do pensamento humano nos ensina que a busca por reconhecer a si mesmo é uma tarefa de alargamento da mente que se realiza impreterivelmente pela ligação com o outro. Através do encontro com o outro revelamos características de nossa personalidade e somente por meio do estabelecimento de um relacionamento com este outro é que passa a ser possível perceber partes do eu que ficariam latentes sem essa experiência afetiva. "Necessitamos da opinião do outro quanto ao que somos. Isso existe naturalmente como necessidade de reconhecimento. Então, o ego carece disso, pois é daí que se nutre a autoestima." (Martino, em O amor e a expansão do pensar, 2013).

Assim, as relações afetivas que procedam no reconhecimento trazem o fundamento da sustentação e desenvolvimento do funcionamento mental. A proposta psicoterapêutica tem justamente esse intuito; o de dispor através do psicoterapeuta, certo vínculo de boa qualidade que possa proporcionar um autorreconhecimento para o paciente que se dedica.

A busca pelo alargamento no desempenho do pensar está diretamente subordinada às relações afetivas. Por conta disso a experiência de se relacionar afetivamente não está implicada simplesmente em uma questão de satisfação onde se enamora de alguém por atender aos desejos sexuais ou suprir carências superficiais e medos da solidão, mas falamos antes de tudo de uma necessidade fundamental para o bom funcionamento mental. O estabelecimento de boas alianças em vínculos afetivos saudáveis é o que nutre o eu de amor próprio e assim como nos ensina Freud (1856 - 1939) em seu importante texto SOBRE O NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO, "...nas relações amorosas, o fato de não ser amado reduz os sentimentos de auto-estima, enquanto que o de ser amado os aumenta."

Há um certo tempo atrás escrevi algumas linhas, entituladas AGORA A REGRA É A DO FICAR, que trata dos modelos de relacionamento adotados pelo ser humano em geral, que diferente dos outros animais, demuda e compõe novas formas a cada tempo. Na ocasião que me propus ensaiar sobre o assunto, foi possível enumerar alguns modelos de aproximação e relacionamento que foram se transformando conforme cada época, tendo como base a sociedade ocidental, da qual tenho maior acesso. Parti então, do modelo característico de uma sociedade onde as aproximações e relacionamentos aconteciam por conta de conveniências familiares, onde os pais decidiam com quem os filhos iriam se casar. Uma forma utilizada no passado onde os casais eram previamente arranjados pelos pais conforme conveniência familiar, tendo como referencial os bens das partes assim como tradições mantidas pelas linhagens. Esse modelo guardava características de imposição; o que não fez mais que gerar uma revolta culminando numa dissolução da forma autoritária de decisão quanto ao futuro afetivo dos filhos. Assim, essa forma de vinculação aos poucos foi se dissolvendo e dando lugar a outra modalidade de relacionamento que permitia ao sujeito o livre-arbítrio na escolha e que recebe então o nome de namoro.

"Descritivamente se trata de certo modelo de relacionamento que inclui um período de reconhecimento e avaliação entre as partes do casal, até que se optasse por estarem juntos (ou não) em um compromisso “legal” ou formalizado." (Martino, 2011)

Esse modelo de aproximação e relacionamento denominado namoro é o que funda a família pós-moderna.  No entanto conforme o passar do tempo este modelo também foi gradualmente substituído por um novo padrão de aproximação e ligação agora num formato mais breve, e que seria denominado ‘ficar’. Nesse formato de aproximação a ligação não duraria mais que alguns minutos e por sorte uma hora, ou coisa assim. O grande risco desse tipo de aproximação - penso que a palavra ligação, aqui começa a ficar inadequada, por conta da curta duração - é o fato de ser realizado tendo muito pouco compromisso e responsabilização, muitas vezes associado ao consumo de álcool e outras drogas, o que promoveria dificuldade na avaliação da realidade dos fatos e desta forma estimulando a superficialidade no contato. Com isso a geração de gravidezes indesejadas e a proliferação de doenças sexualmente transmissíveis passa a ser de uma frequência assustadora. 


"O beijo que seria símbolo do amor pós-moderno, agora passa a ser o troféu na superficialidade do encontro denominado ‘ficar’. Troféu desligado de noções como qualidade, mas fica condicionado segundo a quantidade de sujeitos beijados numa só noite de balada."
(Martino, 2011)

Ainda no plano da transformação dos modelos de ligação e relacionamento, o formato do 'ficar' em muito pouco tempo foi migrando para um modelo mais superficial ainda, que denominou-se 'pegar'. Ora, se no 'ficar' ainda existia, mesmo que breve, algum tempo de permanência, no modelo do 'pegar' a ação do 'largar' seria de maior facilidade ainda, promovendo assim maior superficialidade.
          
Aqui pretendo retomar o tema, tentando atualizar a maneira como o ser humano em geral vem funcionando dentro do âmbito afetivo. Claro, que ao escrever este tipo de ensaio esse autor conserva consciência de que existe uma cota da sociedade que busca outras formas de relacionamento que podem contar com maior capacidade de compromisso e responsabilização, que não estão incluídas nessa forma generalista de funcionar.

Pois bem, hoje assistimos (ou participamos) de uma nova sena no âmbito das ligações e dos relacionamentos. Não é novidade alguma o fato de que atualmente a grande maioria das pessoas não consegue viver sem um aparelho celular que esteja à mão e que a comunicação entre grande parte das pessoas se resume em breves palavras digitadas ou gravadas em pequenos trechos de áudio enviados à qualquer hora em qualquer lugar onde possa alcançar a rede de sinal dos provedores de telefonia móvel.
Sendo assim, as aproximações e os relacionamentos parecem seguir a mesma tendência.
Me parece que grande parte das aproximações hoje acontecem através das redes sociais virtuais.  Redes de relacionamento como Facebook, ou ainda recursos aplicáveis que se restringem aos aparelhos celulares como Whatsapp, ou ainda o Tinder, um aplicativo de encontros onde o usuário pode conhecer novas pessoas que possuem interesses em comum. Esse último busca as informações como localidade e preferências de um perfil e relaciona com dados de outro. Ora, me parece muito interessante poder  desfrutar de recursos tecnológicos como estes e pelo menos a princípio, não consigo identificar nem um dano provável nesse meio de procura por um par afetivo. No entanto, o que ocorre é que  aquilo que poderia configurar-se no início de um relacionamento saudável, se pudesse evoluir, em grande parte dos casos não passa de troca de mensagens eletrônicas.
De tal modo, o benefício da facilidade se converte em fracasso na expansão do vínculo. A impossibilidade de se encontrar de maneira presencial pode criar certo desgaste num vínculo que mal surgiu. Com inúmeras experiências do mal-entendido frequentemente ocorrentes nessa forma limitada de comunicação, por não contar com impressões fundamentais de afetos que só podem ser possíveis de forma presencial o vínculo que se inicia dificilmente resiste por muito tempo.
Na realidade temos sempre, duas forças conflituosas disputando lugar dentro do funcionamento mental. Freud nos ensina com muita propriedade sobre as duas tendências que trabalham nos processos psíquicos e regem nossa interação com o mundo externo onde se encontra o outro e assim interferindo diretamente nos modelos de vínculo afetivo.
"Depois de muito hesitar e vacilar, decidimos presumir a existência de apenas dois instintos básicos, Eros e o instinto destrutivo. (O contraste entre os instintos de autopreservação e a preservação da espécie, assim como o contraste entre o amor do ego e o amor objetal, incidem dentro de Eros.) O objetivo do primeiro desses instintos básicos é estabelecer unidades cada vez maiores e assim preservá-las – em resumo, unir; o objetivo do segundo, pelo contrário, é desfazer conexões e, assim, destruir coisas. No caso do instinto destrutivo, podemos supor que seu objetivo final é levar o que é vivo a um estado inorgânico. Por essa razão, chamá-lo também de instinto de morte."  (Freud em ESBOÇO DE PSICANÁLISE, 1940 [1938])

Dessa maneira, quando a pulsão de morte rege nosso funcionamento somos forçados a nos desligarmos do mundo externo só nos relacionando com o outro de maneira narcisista, ou seja como se fosse aquilo que satisfaça o nosso desejo. A tolerância, quando acontece, é mínima dentro dessa forma de funcionar. Tenho percebido de maneira muito clara que vivemos numa sociedade contemporânea que tende a se configurar-se num formato narcisista e sendo assim os encontros e ligações afetivas se mantém cada vez mais enquanto for conveniente para as partes. A pulsão de vida da qual Freud ilustra com o Deus do amor, Eros vem sendo extremamente frágil, se desfazendo com muita facilidade e atuando de forma cada vez mais breve. Assim, dando lugar para o domínio de Thanatos, o Deus da morte ilustração da pulsão de destruição que funciona como fator de desligamento.
Isso quer dizer que na medida em que ocorram conflitos ou mesmo se o outro se revele sendo ele mesmo e não mais aquilo que o sujeito deseja que ele fosse (uma extensão de seu desejo) as relações se desfazem. "A experiência clínica familiarizou-nos com as pessoas que se comportam de uma maneira notável, como se estivessem enamoradas de si mesmas, e essa perversão recebeu o nome de narcisismo." (Freud, em DOIS VERBETES DE ENCICLOPÉDIA, 1923 [1922]).

Se no modelo do 'ficar' ou mesmo do 'pegar' ainda existia um contato físico, mesmo que breve, nesse novo modelo não chega a existir sequer a mínima presença física. No entanto, se por acaso inicia-se uma relação presencial ainda assim essa experiência deve enfrentar outro obstáculo. O uso da tecnologia através de aparelhos como os celulares, smartphones e similares, que se mostrava limitador quando não passava de contato virtual perdura impedindo que os casais possam desenvolver a relação. O abuso da tecnologia parece perdurar mesmo depois que a relação presencial possa ter sido estabelecida, evitando que o vínculo se aprofunde. Como que hipnotizados pelo pequeno aparato eletrônico, os casais parecem estarem presentes apenas fisicamente, onde cada um está muito mais inteirado com o que se passa nas redes sociais ou nos conteúdos da internet, do que com a pessoa que está do seu lado.
Então se concordamos que é somente através do encontro com o outro que podemos revelar e reconhecer características fundamentais de nossa própria personalidade, nesse modelo de relacionamento grande partes do eu permanecerão ocultas do próprio eu. O eu se vê de nutrido na auto-estima, que sem reconhecimento tem comprometido o desenvolvimento do funcionamento mental. Numa tentativa de fugir do encontro emocional/afetivo com o outro que impreterivelmente revelaria características do eu. Numa experiência mórbida evita-se o outro e fugindo do outro o sujeito se perde dele mesmo.
Infelizmente as consequências desse tema não se restringem simplesmente ao âmbito dos relacionamentos afetivos entre casais, mas se estendem nas próximas gerações que se originam desses tipos de relacionamento. O que será das crianças que nascem desses "encontros" narcisistas?

FREUD, S. [1914]. Sobre o narcisismo: uma introdução. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. 1. ed. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
_________ 1923 [1922]. DOIS VERBETES DE ENCICLOPÉDIA. Idem.
________ 1940 [1938]. ESBOÇO DE PSICANÁLISE. Idem.
Martino, R. D. O amor e a expansão do pensar : das perspectivas dos vínculos no desenvolvimento da capacidade reflexiva - 1. ed. -- São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2013.