terça-feira, 9 de março de 2021

SOBRE ADMITIR A IGNORÂNCIA


A ciência tradicional (ciência, do latim scientia, que significa conhecimento) fundamenta-se nas previsões para o domínio dos fenômenos que possam ser observados. A partir de um conjunto de informações armazenada se catalogadas, são produzidas teorias e leis. Essa modalidade de ciência é fundamental para as articulações da configuração material da realidade, onde sem ela estaríamos mais vulneráveis do que já estamos frente aos frequentes percalços. Ainda assim, nem mesmo a ciência mais avançada tem a resposta que possa resolver os problemas que nos deparamos, mesmo no nível material. Isso é verdade, já que as variantes das possibilidades são muito maiores do que aquelas possíveis de serem previstas por terem sido calculadas e catalogadas. 


A realidade abrange muito mais além do que a esfera material, nos fenômenos observáveis. "A consciência é a mera superfície de nossa mente, da qual, como da terra, não conhecemos o interior, mas apenas a crosta" (Schopenhauer, 1818). Acreditar que a verdade é configurada por aquilo que se pode confirmar pelos órgãos dos sentidos é uma grande estupidez humana.


Aprendemos desde muito cedo sobre o poder atribuído ao conhecimento e da ciência, sendo que o ser humano se sente extremamente importante e passa a ser respeitado conforme acumula saberes. Por outro lado, quanto maior a ignorância sobre as coisas, mais inseguro o sujeito se sente e assim, se vê desmerecido pelos outros. Na maior parte das situações, o que realmente motiva o sujeito na busca pelo conhecimento não é a curiosidade ou o intuito de realmente saber, mas sim se livrar do desconforto por se sentir ignorante e todo o prejuízo que isso acarreta frente ao outro. Isso pode fazer com que se apegue à saberes superficiais e os defenda com veemência. Muitas vezes o sujeito se contenta com um título de graduação, mesmo que não tenha bom conhecimento sobre aquilo do qual tenha se graduado. 


Reconhecer que a realidade abrange para muito mais além do que nossa limitada capacidade de entendimento possa atingir gera grande insegurança. Requer enorme tolerância às frustrações e muita humildade, admitir a verdade de que somos grandes ignorantes sobre a realidade, que envolve muito mais do que a simples configuração material.


Em Hamlet, tragédia repleta de dúvidas e incertezas, William Shakespeare (1564 — 1616) levanta essa questão. No Ato I - Cena V, o príncipe Hamlet, tenta ocultar de Horácio e Marcelo o que realmente aconteceu com o fantasma de seu pai, mas acaba por contar o que sucedeu, com a condição de que não revelassem a ninguém. Diz Hamlet: “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a sua filosofia". O príncipe de Shakespeare traz à baila a questão de que existem muito mais coisas no mundo do que a superficial razão humana possa abranger e então explicar.  


Wilfred Bion (1897 – 1987) propõe o conceito de “capacidade negativa” em sua obra ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO, como a possibilidade de se permanecer num estado de dúvidas, admitindo as incertezas, sem se apressar na tentativa de explicação ou formação de significados. Esse termo foi extraído por Bion de uma carta escrita pelo poeta inglês John Keats (1795-1821) aos seus irmãos Georgee Thomas Keats. Tolerar a própria ignorância frente à realidade é a premissa dessa capacidade fundamental na prática da clínica psicanalítica. A partir da capacidade de se tolerar o vazio passa a ser possível conter os elementos desconhecidos e acolher aquilo que é trazido pelo paciente. Keats cogita na carta sobre a Capacidade Negativa como certo atributo fundamental na configuração do que chamou de “Homem de Realizações”, “... isto é, quando o homem é capaz de ser entre incertezas, Mistérios, dúvidas, sem qualquer irritação que o faça sair em busca dos fatos & da razão” (Keats, 1952) O poeta atribui essa capacidade a Shakespeare em que avaliava possuir em tão alto grau. 


Bion já havia esboçado a ideia de “Linguagem de Realização”, capacidade do “Homem de Realizações” em APRENDENDO COM A EXPERIÊNCIA (1962), retomando em 1970. Um analista de realização é aquele que tenha a equanimidade de lidar com incertezas, para estar qualificado para se comunicar através da “Linguagem de Realizações”. Em algumas traduções podemos encontrar o termo “Language Achievement” como linguagem de êxito, ou ainda linguagem de consecução, no entanto, penso que a melhor maneira de expressar o que pude aperceber dos escritos de Bion ainda é linguagem de realização. Segundo a proposta de Bion, a linguagem comum ou o que chamou de “linguagem de substituição” não é adequada na prática da psicanálise. Isso, pois linguagem de substituição tem a configuração saturada impedindo a possibilidade dinâmica da expansão e obstruindo a chance de transformação. Enquanto a linguagem de substituição passa a exercer as funções da ação, a linguagem de realização serve como preparação para a mesma. 


A formulação da capacidade negativa está muito próxima da recomendação de Sigmund Freud (1856 – 1939) para que o analista não concentre atenção ou selecione qualquer material que lhe é apresentado pelo paciente, para com isso não correr o risco de negligenciar de outros conteúdos importantes. Freud recomenda que não se dirija atenção a nada específico, mantendo o que denominou de “atenção uniformemente suspensa” frente ao conteúdo trazido pelo paciente. Por ter consciência de que, na maioria do material trazido pelo paciente, só se consegue um significado posteriormente, Freud alerta que, “Ao efetuar a seleção, se seguir suas expectativas, estará arriscado a nunca descobrir nada além do que já sabe; e, se seguir as inclinações, certamente falsificará o que possa perceber.” (Freud, 1912) Ora, se o inconsciente é a parte desconhecida do eu, só pode ser possível reconhecê-la mediante a capacidade de tolerar a ignorância.


Esse exercício de admitir a ignorância no reconhecimento da realidade como algo desconhecido deve ocorrer a partir da renúncia do desejo do que se espera que a realidade seja, o que está sempre ligado à memória, que também deve ser renunciada em seu conteúdo armazenado. Assim como na recomendação de Freud ao psicanalista praticante: “Ele deve simplesmente escutar e não se preocupar se está se lembrando de alguma coisa.” (Freud, 1912) Essa tarefa, nada simples é que pode nos fazer permanentes principiantes, fazendo de cada experiência uma oportunidade de aprendizado.


BION, W.R. (1962). APRENDENDO COM A EXPERIÊNCIA. Rio de Janeiro: Imago,1962. 

________. (1970). ATTENTION AND INTERPRETATION. In: Seven servants: four works by Wilfred R. Bion. New York: Jason Aronson, 1977.

FREUD, S. RECOMENDAÇÕES AOS MÉDICOS QUE EXERCEM A PSICANÁLISE (1912) In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, Vol. XII

KEATS, J. LETTERS. Editado por M. B. Forman .4ª ed. Londres: Oxford University Press,1952

Schopenhauer, A. (1818). O mundo como vontade e como representação (J. Barboza, Trad.). São Paulo: Unesp. (2005)