Juliana Ribeiro- A série da Netflix, 13ReasonsWhy, teve estreia dia
31/03 e já tem record de audiência. É uma série que retrata como o bullying na
adolescência pode causar grandes estragos. No Brasil não há um levantamento
sobre o tema, mas diversos estudos em outros países apontam o crescimento da
depressão entre os jovens. Podemos dizer que esse aumento está relacionado ao
bullying sofrido nas escolas e quais outros fatores?
Prof. Renato Dias Martino- Na maioria dos casos o
sujeito que sofre grande desrespeito, violência ou qualquer que seja a agressão
no ambiente escolar, já tem um histórico de relacionamento malsucedido, dessa
mesma qualidade, em casa. Na realidade tudo aquilo que ocorre fora de casa
consiste em uma extensão das experiências ocorridas no seio do lar. Isso tanto
em relação às experiências saudáveis quanto às vivencias malsucedidas.
Juliana Ribeiro - Quais as consequência negativas que o bullying
pode trazer na vida de um jovem?
Prof. Renato Dias Martino- A mente tende a repetir as experiências
malsucedidas, como uma nova tentativa de elaboração. Sigmund Freud (1856 –
1939), em seu texto RECORDAR, REPETIR E ELABORAR de 1914, nos alerta que
tendemos a repetir em forma ação impensada, tudo aquilo que é desconfortável de
se recordar. “Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem,
naturalmente, saber que o está repetindo.”. (Freud, 1914). De tal modo, a violência que, muito
provavelmente já ocorria no lar, deve se repetir na escola e da mesma maneira,
acaba se desdobrando vida a fora. Manifestando-se na vida adulta, como assedio
moral e psicológico no ambiente de trabalho. Na realidade, a violência pode ser
percebida desde o berçário até os ambientes de casas de repouso de idosos,
independente da idade cronológica.
Essa ordem de experiência pode se repetir através de
dois modelos principais: a) a primeira, onde a criança repete a hostilidade
consigo mesmo, culpando-se pelo fracasso de sua vida. Dessa maneira retraindo-se
das experiências externas não conseguindo mais confiar no outro. b) Num segundo
modelo, de forma inversa, onde o sujeito que sofreu a violência desenvolve
características semelhantes as do que o agrediu, se tornando tão violento
quanto.
Poderíamos também pensar naquela criança que hoje é
agredida e que foi privado da presença paterna.Aquele que o defenderia e assim traria um modelo para que se
desenvolvesse um recurso de autodefesa. Também ausência paterna poderia ser
geradora da falta de limite no que agora se coloca na posição de agressor.
Juliana Ribeiro- Adolescentes que praticam bullying, praticam de
forma consciente?
Prof. Renato Dias Martino- O conceito de consciência é um conceito muito
complexo. Nunca é possível saber o que realmente é consciente ou não, quando
avaliando o outro. No entanto, me parece que se tornar consciente dos seus atos
é o que liberta o sujeito da ação repetitiva. Essa regra não deve se aplicar ao
sujeito onde exista uma perversão grave, ou mesmo uma psicopatia, que o levaria
agir de forma sádica, violento conscientemente, pelo prazer de fazê-lo.
Juliana Ribeiro- Qual a responsabilidade da escola?
Prof. Renato Dias Martino - Não acredito na responsabilização da
escola por questões que deveriam ser cuidadas no seio da família. Nenhuma
escola pode proporcionar aquilo que faltou no lar. É claro que existem medidas
para que se possa tomar para amenizar a violência dentro da escola, mas casos
em que possa ter havido uma real reparação do dano, por conta de uma intervenção
da escola, são raros.
Juliana Ribeiro - A importância da atuação familiar?
Prof. Renato Dias Martino - Total! A responsabilidade é toda da
família, por mais que vivendo em nosso tempo, isso possa ter sido terceirizado
muito cedo para creches, escolas, faculdades, chegando às casas de repouso para
idosos. Assim como na planta, a raiz tem função de base, onde todas as
substancias que nutrem a vida são oriundas dali, também a família tem função
análoga, na vida humana. Esse problema tem origem no lar e só a partir do lar é que pode se
reparar qualquer dano.
Juliana Ribeiro- Na era
digital esse jovens estão se sentindo ainda mais só?
Prof. Renato Dias Martino- Não
vejo dessa forma. É muito conveniente culparmos os computadores pela solidão
originada do despreparo e do egoísmo dos pais. O advento da internet poderia
ser um veiculo de enorme expansão da consciência se pudéssemos contar com mais
respeito, companheirismo e responsabilização por si mesmo e por aquilo que
criamos.
Juliana Ribeiro- Quais
são os sinais de alerta que os pais podem ficar atentos?
Prof. Renato Dias Martino- Os sinais são evidentes, o grande problema é a
incapacidade dos pais em percebê-los e reconhecê-los, por estarem tão ocupados
tentando correr desesperadamente, atrás de sabe-se lá o que; talvez seus
próprios umbigos. Existe uma conveniência em não perceber os sinais do
sofrimento dos filhos, pois uma vez reconhecidos inicia-se um processo de ter
de se responsabilizar por isso. A grande dificuldade em se enxergar a realidade
é a conveniência em se manter cego.
Juliana Ribeiro- Para
esses jovens, que estão cada vez mais inseguros e, no momento se sentem
sozinhos, sem poder confiar em ninguém. Como fazê-los se abrir de forma
natural?
Prof. Renato Dias Martino- Essa
insegurança é fruto do despreparo dos pais em proporcionar um ambiente que
possa trazer o mínimo de estrutura para esses jovens. Falo de um lar que possa
contar com a presença dedicada dos pais, onde respeito, afeto e sinceridade
sejam atributos fundamentais. Um convívio cotidiano de paz e harmonia. Isso
tudo nada tem haver com condições financeiras, já que é possível viver isso
dentro de um lar que seja muito humilde. Só através da construção de um
ambiente saudável, por se mostrar realmente confiável, pode haver uma real
abertura.
Juliana Ribeiro- Há quem
acredite que por ser vítima de bullying deve praticar o ato com outras pessoas.
Como fazer com que isso não se transforme em um ciclo vicioso?
Prof. Renato Dias Martino- Uma vez instalado o trauma pela violência é
muito difícil se desenvolver recursos para se reverter. Nessa experiência a
questão da prevenção deve implicar num dispêndio bem menor do que a tentativa
de remediar. Ainda assim, a busca por reparação dessa ordem de traumas sempre
se encontra no acolhimento vindo da família, aliado ao um processo
psicoterapêutico de qualidade.
Juliana Ribeiro - Dá para superar o bullying e sair
fortalecido emocionalmente?
Prof. Renato Dias Martino- Na
medida em que se possa contar com um ambiente acolhedor, existe grande
esperança de superação. Ainda que cada caso deva ser avaliado separadamente,
conforme suas complexidades e particularidades, a disposição de um ambiente
acolhedor e livre de julgamento tem sempre poder curativo.
Juliana Ribeiro- Por que
quem sofre qualquer tipo de humilhação tem tanta dificuldade de falar, de
buscar ajuda? Essas pessoas chegam acreditar que são o que os outros dizem e
por isso não merecem ser ouvidas?
Prof. Renato Dias Martino- Depois
de ser hostilizado o sujeito tende a se fechar para as novas experiências, e
vive uma grande dificuldade em confiar no outro. Isso ocorre, pois cada nova
relação que se apresente virá carregada de desconfianças. O sujeito sempre
guardará suspeita (imaginária) de que em algum momento, igualmente será
hostilizado, de algum jeito. Isso pose se revelar-se na personalidade do
sujeito, na melhor das hipóteses, como um grande acanhamento, mas também pode
torná-lo uma “eterna vitima” das circunstâncias.
No Brasil, aproximadamente um em cada dez estudantes é vítima frequente de bullying nas escolas. São adolescentes que sofrem agressões físicas ou psicológicas, que são alvo de piadas e boatos maldosos, excluídos propositalmente pelos colegas que não são chamados para festas ou reuniões. Esse é o assunto do programa Bem-Estar ao Vivo de hoje, que vai ao ar às 14h30, ao vivo pelo Facebook do Diário da Região. Os convidados do dia são o psicoterapeuta Renato Dias Martinoo e a psicóloga Karina Rodrigues.
O ser humano não nasce sabendo amar, mas aprende a
amar através do amor do outro. A lealdade, por sua vez, é uma extensão da
capacidade nobre do amar. Portanto, necessita de modelos para se desenvolver.
Não se aprende a ser leal através de ensinamentos teóricos. Essa nobre
capacidade só pode ocorrer em personalidades em que a maturidade emocional
tenha atingido um bom nível.
A saber, quando falo de maturidade emocional não
me refiro a referenciais cronológicos, pois, uma criança de pouca idade pode,
muito bem, desenvolver uma maturidade emocional bem mais evoluída do que muitos
adultos. Isso dependerá da maneira como tenham sido conduzidas as suas
experiências afetivas, ou seja, o quanto o sujeito possa ter se sentido amado,
e se foi possível confiar na lealdade daquele que cuidou dele numa época em que
não era capaz de cuidar de si mesmo.
Para o desenvolvimento da lealdade, é impreterível
que se possa ter desenvolvido a capacidade de tolerar frustrações. O sujeito
deve ter crescido na disposição para renunciar muitos de seus desejos
narcisistas, que naturalmente fazem parte da mente imatura, para ser capaz de
se tornar leal. Contudo, ainda que um sujeito tenha desenvolvido sua capacidade
de lealdade, ainda assim terá que cuidar dessa habilidade constantemente, haja
visto que em nós humanos, existem tendências narcisistas que atuam o tempo todo
e que nos convidam a desistir das práticas nobres frente a inseguranças
eventuais.
A lealdade é filha da confiança e assim sendo é uma
função dos vínculos. Ser leal é sempre em relação a alguém em que se confia. Na
realidade, a lealdade é condição fundamental para se definir um vínculo
saudável. No entanto, a lealdade quando não correspondida se invalida em sua
função e se transforma em mero conceito vazio de conteúdo. “A con-fiança que
significa fiança compartilhada, mantida pelas partes, nutrida pela fé e assim
geradora da fidelidade. O fio que permite, depois do conhecer, ausentar-se para
que assim no regresso seja possível o reconhecer.” (Martino em O amore a Expansão
do Pensar, 2013).
MARTINO, Renato Dias. O amor e a expansão do pensar
: das perspectivas dos vínculos no desenvolvimento da capacidade reflexiva , 1.
ed. São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2013.
Das
mutações ocorrentes nas emoções e as consequências dessas transformações.
Texto parte da revista Grandes Temas do Conhecimento PSICOLOGIA, especial
MEDOS E FOBIAS.
Os
desdobramentos dos elementos constituintes da vida mental provocam naturalmente
certa instabilidade que demanda de aprendizado em seu manejo para que seja
possível manter um bom funcionamento da mente. Uma experiência emocional que
possa gerar um componente psíquico pode então se desdobrar em outro elemento
que muitas vezes representa seu contrário. Uma mente inundada por insegurança,
por exemplo, pode gerar hostilidade. Na descrição da síndrome de Estocolmo,
onde o sujeito é submetido a um tempo prolongado de ameaça, ele passa então a
apresentar afinidade ou até carinho por seu agressor.
Dessa maneira uma manifestação psíquica gera uma outra como defesa, configurando assim um conjunto, que é tomado como um complexo com certa coerência. Esses elementos componentes articulam-se entre si em várias vinculações, de subordinação ou não, que por conta disso são de difícil compreensão racional. A relação entre desejo e medo é um bom exemplo dessa ordem de reveses sofridos nas experiências emocionais. O medo parece ser um subproduto do desejo, e essa afirmação torna-se fato na medida em que passa a ser possível perceber que aquele que não deseja nada não teme coisa alguma.
Ainda
que seja o medo da morte gerado pelo desejo de viver, a relação entre esses
dois elementos da vida psíquica são inseparáveis quando examinados. Dentro
dessa perspectiva, o medo estabelece um elemento constitucional do
funcionamento mental daquele que está sendo conduzido pela cautela. Sendo
assim, a mente que se encontra saudável terá o medo como integrante do instinto
de autopreservação que é manifestado pelo desejo de viver. Esse medo deve
originar certa ansiedade, reação à percepção do perigo externo. Por se tratar
de um instinto, vai para além do campo racional e pode, com isso, nos orientar,
alertando, inclusive, para aquilo que se pronuncia pra além do que é percebido
pelos órgãos dos sentidos, pra além das aparências. No entanto, existe outra
ordem de relações estabelecidas entre medo e desejo, que não se encontram no
âmbito saudável.
Em sua TEORIA GERAL DAS NEUROSES, publicada em 1917, Sigmund Freud (1856-1939) propõe dois tipos de ansiedade. “É possível, no princípio, trabalhar o tema da ansiedade, por um tempo considerável, sem absolutamente pensar nos estados neuróticos. De imediato, os senhores me entenderão quando eu descrever essa espécie de ansiedade como ansiedade ‘realística’, em contraste com ansiedade ‘neurótica’.” (Freud, 1917). Enquanto na ansiedade realística o medo é gerado por uma causa externa real e anuncia assim a capacidade da saúde mental, a ansiedade neurótica acontece por conta de uma desordem no curso do desenvolvimento do pensar, que encontra entraves no andamento de seus desdobramentos.
Freud formou-se em medicina neurológica, mas apesar disso estruturou o que chamamos de psicanálise a partir da percepção de que grande parte dos pacientes que atendia não tinha a origem de suas enfermidades no corpo físico, mesmo que se manifestassem ali. Por meio de exames clínicos, Freud não conseguia diagnósticos no âmbito fisiológico, sendo que a constituição biológica, em suas funções, conservava um funcionamento coeso, no entanto, a dor e o incômodo ainda jaziam presentes na queixa do paciente. Em sua obra AS NEUROPSICOSES DE DEFESA, de 1894, Freud designou a ordem patológica que percebia em seus pacientes, o nome de neurose, e, nesse caso, mais especificamente, histeria de conversão. Algo que advinha da dimensão do psíquico, mas se manifestava no corpo. “Na histeria, a representação incompatível é tornada inócua pela transformação de sua soma de excitação em alguma coisa somática. Para isso, eu gostaria de propor o nome de conversão.” (Freud, 1894).
Bem, embora essa proposta tenha sido publicada em 1894, quando a psicanálise ainda engatinhava, mesmo hoje essa intuição freudiana nos serve como um excelente instrumento para pensar nos processos que desencadeiam as patologias mentais. Ora, é indiscutível o fato de que a dor, quando surge no corpo, tem maior poder de convencimento, tanto para nós mesmos quanto para o outro. Por outro lado, enquanto a aflição é psíquica, se encontrando na ordem do não sensorial e não podendo contar com os órgãos dos sentidos para confirmá-la, fica então desacreditada. Um conflito interno com a iminência de transbordar os limites emocionais do eu psíquico e manifestar-se no corpo físico.
Aqui
também estamos tratando, antes de tudo, de algo que se configura como extensão
do conflito entre um medo e um desejo. Uma ordem de conflitos que pode promover
severas perturbações no funcionamento mental com a geração de inúmeros
sintomas. Freud, em seu ESBOÇO DE PSICANÁLISE, publicado em 1940, propõe que
“Os sintomas das neuroses, poder-se-ia dizer, são, sem exceção, ou uma
satisfação substitutiva de algum impulso sexual ou medidas para impedir tal
satisfação, e via de regra, são conciliações entre as duas, do tipo que ocorre
em consonância com as leis que operam entre contrários, no inconsciente”. Sem
poder tornar-se consciente desse conflito que subtrai suas energias
sorrateiramente, o sujeito vive certa batalha inconsciente que acaba por
revelar-se nos vínculos. Toma certa prática especial nas relações onde passa a
odiar como forma de distanciamento e proteção daquilo que de fato deseja tanto.
Desenvolve de tal modo, um quadro obsessivo, se envolvendo crescentemente com
aquilo que na realidade foge compulsivamente. Temos assim um quadro do qual
Freud denominou de “neurose obsessiva”. Enquanto essa modalidade de neurose
projeta-se no mundo externo, a “histeria de conversão”, em contrapartida, faz
do sujeito uma vítima de si mesmo. Instigado por certa culpa, pode-se tornar
servil àquele do qual mantém grande ódio. Esse sentimento de culpa do paciente
histérico, quando em seu maior nível, é que deve sofrer certa conversão do
plano psíquico para o nível orgânico. Dessa forma, passa a representar-se numa
patologia no corpo, ou seja, uma doença física onde o sujeito pode encontrar
certa via para se
autopunir.
Essa dor física, por mais que seja penosa, ainda deve ser menor do que a culpa
que carrega. Se antes havia descrédito sobre sua enfermidade, agora fisicamente
doente, pode convencer o outro, assim como convencer-se a si mesmo, do seu
sofrimento.
Freud
introduziu a teoria da repressão a partir da observação dessa ordem de
experiências: “A teoria da repressão é a pedra angular sobre a qual repousa
toda a estrutura da psicanálise.” (Freud, 1914). Das tentativas de vinculação
com a realidade externa que tiveram desfechos mal resolvidos, são então
geradores do movimento de repressão.
O reprimido, junto com os elementos instintuais, estaria contido no nível inconsciente da mente. “O reprimido está condenado, pelas instâncias censoras do ‘eu’ a viver nas profundezas do inconsciente. Mas, amiúde, tenta emergir na personalidade consciente provocando, assim, os sintomas da neurose.” (Martino, 2012). Segundo Freud, as neuroses estão para as perversões como curso oposto do mesmo caminho, pois, quando uma satisfação da libido primitiva não puder ser atendida, pode suscitar uma fixação perversa de satisfação, que na medida em que é reprimida cria uma formação substituta: o sintoma. “Portanto, os sintomas se formam, em parte, às expensas da sexualidade anormal; a neurose é, por assim dizer, o negativo da perversão.” (Freud, 1905).
No caso
clínico do Homem dos Ratos, publicado em 1909 com o título NOTAS SOBRE UM CASO
DE NEUROSE OBSESSIVA, o pai da psicanálise expõe as características da neurose
obsessiva comparada à histeria. Propõe que a manifestação da neurose obsessiva
possa ser considerada assim como na forma da histeria, no entanto, numa
configuração muito mais compreensível por revelar-se de forma externa, enquanto
a histeria leva o processo psíquico para uma conversão somática. Porém, os
pacientes que apresentam esse quadro, diferentemente dos histéricos,
dificilmente procuram psicoterapia, ou, quando o fazem, já se encontram num
quadro avançado. Os aspectos fundamentais dos transtornos apresentados pelo
Homem dos Ratos “eram medos de que algo pudesse acontecer a duas pessoas de
quem ele gostava muito: seu pai e uma dama a quem admirava.” (Freud, 1909).
Freud propõe que o neurótico não pode perceber as conexões importantes que
estabelece, pois as resistências o enganam pelas forças reprimidas, onde o que
se revela é o medo, nunca o desejo.
Depois de ter sido reprimido o desejo, é
difícil para o sujeito admitir que tenha de fato desejado, ou que possa voltar
a desejar, no entanto nunca deixou de fazê-lo. Isso acontece com o paciente de
Freud relatado no caso. Ele negava que os medos relacionados à morte do pai
correspondessem a um desejo (agora reprimido) de que o pai morresse.
“Conforme
a teoria psicanalítica, eu lhe disse, todo medo correspondia a um desejo
primeiro, agora reprimido; por conseguinte, éramos obrigados a acreditar no
exato contrário daquilo que ele afirmara. Isto também se ajustaria a uma outra
exigência teórica, ou seja, a de que o inconsciente deve ser o exato contrário
do consciente.” (Freud, 1909).
Testemunhamos,
assim, a infindável e inexorável peleja entre o amor e o ódio. Simultaneamente,
quando o ódio ocupa o topo da consciência, o amor se mantém encoberto, de forma
latente, e vice-versa. Contudo, mesmo estando num estado latente, ainda assim
mantém-se muito intenso e definindo “escolhas” na vida do sujeito. Paralisado
pela impossibilidade na proibição de integrar amor e ódio, o estado de
ambiguidade provoca sintomas de formas diversas configurando um complexo estado
transtornado de funcionamento mental. Um complexo que foi gerado por uma
experiência peculiar, onde aquilo que um dia constituiu um desejo proibido
torna-se exatamente o que desperta o maior desejo, mas agora de forma
inconsciente. Esse desejo, por ser inconsciente, amiúde, é impulsionado à ação
(atuação) para sua concretização. No entanto, a consolidação tropeça na
proibição, gerando assim o medo que se vincula ao objeto desejado. Podemos
afirmar com isso que o medo é filho do desejo.
Essa
configuração também aparece como base da teoria das posições elaborada por
Melanie Klein (1882-1960), em que propõe que, no ego primitivo, presente no
início da vida do bebê, existe uma tendência de divisão do seio em objeto bom e
objeto mau, como sendo dois objetos separados. Essa seria expressão do conflito
inato entre amor e ódio e das ansiedades que dessa experiência decorrem.
“O bebê projeta seus impulsos de amor e os atribui ao seio gratificador (bom), assim como projeta seus impulsos destrutivos e os atribui ao seio frustrador.” (Klein, 1952). Dessa maneira, o seio bom que é desejado é separado do seio mal que é temido, quando na realidade trata-se de um só, um objeto total. Uma experiência que longe de se restringir ao âmbito da primeira infância, configura-se num funcionamento que amiúde experimentamos na vida adulta quando nos colocamos frente a uma decisão (de-cisão) de grande importância. Desejamos um caminho, mas tememos que o outro seja melhor opção.
Ora,
ainda que estejamos aqui tratando de revisão teórica, minha experiência na
prática clínica mostrou com clareza a relação existente entre o medo e o
desejo, confirmando assim essa proposta da teoria psicanalítica, que por sua
vez também não fora desenvolvida de outro lugar que não fosse as experiências
clínicas. Nos casos que em atendi, em que o paciente sofrera de abuso sexual na
infância, por mais aterrorizante que tenha sido a experiência, ainda assim
sentira algum prazer, pelo fato do estímulo de áreas erógenas, hipersensíveis.
Por conta disso, agora, quando adulto, o paciente sente medo de que ele abuse
de crianças, pois o registro da experiência prazerosa ficara gravada, e então é
revivida de forma reativa, ou seja, de maneira inversa. Acontece que por conta
da experiência traumática que viveu, hoje ele deseja, por mais que não deseje
desejar, e passa a ter medo do desejo que sente.
Porém, a despeito da força do impulso que arrasta para a ação com o objetivo de realização do desejo, o que na verdade pode acalmar o conflito está na possibilidade de reconhecimento do que se deseja e não da consumação, que geraria mais culpa ainda. “A ideia é que o desejo é um fluxo muito forte de libido (energia psíquica), e carrega em si muito dos conteúdos impensados e impregnados de um narcisismo prematuro. Assim, um pensamento que tenha nascido dessa forma, prematuro, já agia no funcionamento da mente, mesmo sem ainda poder ser chamado de pensamento” (Martino, 2011). No relacionamento entre pais (ou cuidadores) e filhos, a relação entre desejo e medo revela-se de grande influência. Isso pelo fato de que a criança passa por um longo período de dependência dos pais ou daquele que cuidou dela. Assim, não seria absurdo afirmar que “a forma como o bebê é desejado (mesmo antes de nascer) definirá certos traços em sua personalidade que perdurarão por muito tempo, se não, por sua vida toda.” (Martino, 2011). Existe nessa experiência o perigo de que satisfações frustradas da vida dos pais sejam oferecidas ao filho com a incumbência de satisfazê-los. Dessa forma, o que um dia fora um desejo nos pais, pode-se tornar um medo nos filhos. “Um medo de frustrar aqueles que cuidaram dele e viver um dolorido sentimento de incompetência.” (Martino, 2011). Bem, o reconhecimento do sentimento é o que pode levar ao pensar, e não é surpresa o fato de que isso coincide com a capacidade de adiar a ação. Sobre isso, Freud escreve em 1911, em sua obra FORMULAÇÕES SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO MENTAL, que “O pensar foi dotado de características que tornaram possível para o aparelho mental tolerar uma tensão intensificada de estímulo, enquanto o processo de descarga era adiado.” (Freud, 1911). Isso equivale a dizer que o reconhecer é aterrorizante e o medo de reconhecer se faz novamente presente, relacionando-se ao desejo. Trata-se de uma moção interna que leva a abrir mão da satisfação do prazer que se encontra na realização do desejo. A psicanálise nos ensina com muita propriedade sobre o fato de que, para que exista o pensar, é necessário desistir da satisfação imediata, na tolerância quanto às frustrações.
Na proposta de Wilfred Bion (1897 – 1979), um dos mais importantes nomes da psicanálise contemporânea, o desejo do analista, juntamente com a memória e a ânsia por entender, é fator prejudicial para o desenvolvimento da análise, obstruindo o fluxo saudável do processo psicoterapêutico. “No processo de psicoterapia, o desejo do psicoterapeuta de resolver o problema do paciente, ou mesmo de gratificá-lo por algum motivo, ou ainda o desejo de curá-lo, são prejudiciais ao desenvolvimento do tratamento.” (Martino, 2015). Bion refere-se a uma disciplina que aos poucos torna-se natural, conforme o desenvolvimento da maturidade emocional do analista. Para Bion, não é“suficiente ‘esquecer’: é necessário um ato positivo de abstenção de memória e desejo.” (Bion, 1970). No lugar da memória, do desejo e da compreensão e o que entra é o desenvolvimento do “ato de fé” de que a verdade e a realidade última existem, e isso requer capacidade em tolerar frustrações.
Segundo Bion, se o psicanalista for permissivo com a intromissão de memórias sobre o paciente, dos desejos do analista e da ansiedade de compreensão sobre os fatos a qualquer custo “ele irá
prejudicar sua capacidade analítica. Todo aquele que esteja acostumado a
lembrar do que os pacientes falam e a ficar querendo seu bem-estar, terá
dificuldade de avaliar o dano infligido à intuição analítica, inseparável de
toda e qualquer memória e qualquer desejo” (Bion, 1970).
A busca
pela realização do desejo, por mais que se mostre prazerosa, é exatamente a
responsável pelo conflito. Portanto, todo esforço para apaziguar e assim
reduzir a intensidade do desejo deve converter-se na diminuição do medo. Arthur
Schopenhauer (1788-1860) que segundo o próprio Freud é o filosofo precursor da
psicanálise, nos alerta sobre a Vontade que nos aprisiona. Mesmo não querendo
ter vontade, ainda assim ela persiste, se transformando num medo de agir
conforme essa mesma vontade. No pensamento de Schopenhauer, a Vontade tem a
primazia em relação ao intelecto e à razão humana, que são produtos das
manifestações da Vontade, existindo para justificá-la. Segundo Schopenhauer, a
vontade é a essência imutável do homem, e sua razão não tem poder para determinar
uma mudança no querer da vontade. A vontade tem origem no desconforto e tem seu
retorno na mesma dor. Assim, como propõe em O MUNDO COMO VONTADE E
REPRESENTAÇÃO, “Tal veemência excessiva do querer é já de per si e diretamente,
uma fonte constante de dor. Primeiramente porque qualquer querer, como tal,
nasce da necessidade, portanto, da dor.” (Schopenhauer, 1818).
Sendo
dessa maneira, toda a busca pela diminuição do desejo converte-se em redução da
dor. Sendo que as experiências mais afortunadas são aquelas em que nos sentimos
livre das ânsias e desejos desmedidos. Assim como coloca Schopenhauer:
“Por
meio da felicidade que então provamos, torna-se-nos possível julgar da
beatitude do homem cuja vontade não está, como no êxtase da estética, acalmada
apenas por breve instante, mas para sempre, quando está de fato consumado,
salvo na derradeira centelha que serve para manter a vida corpórea e que
desaparecerá com ela.” (Schopenhauer, 1818).
O
desejo está na dimensão material da vida corpórea, que nasce, permanece por
algum tempo, crescendo e se
desenvolvendo, produz alguns efeitos nos fenômenos e então passa a definhar,
gradativamente, até a morte. Essa parte da existência é de pouca importância
para o que é da alma, que por sua vez não se presta aos atributos materiais do
espaço ou da temporariedade. Não está aqui ou lá. Não tem passado, nem futuro.
O medo de perder é produto do desejo de ter, mas enquanto aquele que deseja ter
teme perder, aquele que ama terá pra sempre.
O grande problema é que só se aprende
amar na falta do objeto amado. Aquele que ama abre mão do desejo de “ter” o
outro em nome do “ser” para o outro. “É então, pela capacidade de tolerar o
vazio e desapego do desejo, que se abre a possibilidade para desenvolver a
disposição para amar.” (Martino, 2015).
Isso
diz respeito a uma constante batalha, pois aquilo que o corpo busca para se
satisfazer não interessa à alma e na realidade só faz por desvalorizá-la. Por
outro lado, aquilo que nutri a alma está justamente na renúncia dos prazeres do
corpo.
O
Bhagavad Gita, que faz parte das escrituras védicas da Índia antiga, trata da
busca pelo exercício no desapego para a expansão da consciência. No quinto
capítulo é revelada a “Sabedoria do Desapego”, onde Krishna, a Personalidade
Suprema de Deus, orienta seu companheiro Arjuna, em um momento de insegurança,
que “quem a tudo renuncia, jubiloso, alcança, já agora, a mais alta paz do
espírito; mas quem espera vantagem das suas obras é escravizado por seus
desejos”. Um texto que transcende a aplicabilidade religiosa se estendendo no
âmbito filosófico e também psicanalítico, já que trata da experiência do
desprendimento e da capacitação da tolerância às frustrações.
“No
Bhagavad Gita é retratado um diálogo simbólico, representando o funcionamento
interno de cada um de nós, onde o guerreiro Arjuna representaria o ‘eu humano’
(que em algumas traduções se lê ego), cujo reino foi usurpado, e Krishna
estaria representando o “eu divino” plenamente realizado, que convida Arjuna a
fazer a sua autorrealização, derrotando seus parentes, que se recusam a
devolver seu trono” (Martino, 2015).
Um
modelo muito bem aplicável no funcionamento da mente, onde a narração retrata a
renúncia dos desejos e, em consequência disso, também os medos. Em
contrapartida, manter-se ligado ao desejo é viver de ilusões, já que a
realidade não é definida pela vontade do humano. Por conta disso é necessária a
capacitação para o desprendimento daquilo que se encontra na dimensão do real
concreto, num exercício do desapego da materialidade por meio da renúncia do
que satisfaz o corpo, mas empobrece e nos distancia da alma. Numa relação
afetiva, a confirmação sensorial deve, dentro dessa perspectiva, ser
substituída pelo vínculo simbólico, que dispensa a confirmação compulsiva pelos
órgãos dos sentidos. O simbólico vai para além da morte, já que é possível se
manter vinculado com aqueles que já morreram.
Bion, W.
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