quinta-feira, 23 de abril de 2009

Conhece-te a ti mesmo









"O reconhecimento da própria identidade é um processo árduo e em permanente construção, abastecido de crises existenciais, mas evitá-las pode colocar em xeque uma mente saudável"

Por Renato Dias Martino



Na busca por instrumentos que nos possam auxiliar na tarefa de pensarmos o conteúdo psíquico, faces da alma, ou qualquer nome que possamos criar para os aspectos da personalidade (aquilo que transcende o corpo físico), cogitaremos sobre algo dinâmico, algo que se forma como processo e nunca como produto. Sugiro até uma analogia com algo fluido e corrente, como a água que corre num rio. Apesar de tendermos a pensar a personalidade como algo estático ou um produto pronto, ou acabado, e a criticar veementemente qualquer possível falha, não nos esqueçamos que se trata de algo vivo e, portanto, só estará concluído na morte (e ainda assim viverá nas impressões que deixará no mundo). Perceba que, por mais fiel que possa ser o retrato de um rio, ele nunca mais será aquele que fora retratado anteriormente. Os conteúdos psíquicos estão, e é bom que estejam, em constante movimento. Sob o olhar psicanalítico podemos pensar em impulsos internos, em suas tentativas de encontrar no mundo externo o que possa representá- los. Cada experiência que permita o vínculo de um impulso interno (psíquico) com um objeto do mundo externo como representante é, para o eu, um tijolo em sua construção, um passo na busca pela maturidade. Assim, no encontro impulso interno/ representante externo dá-se à capacitação do Ego, ou em outras palavras, o desenvolvimento do que poderíamos chamar de órgão emocional. Assim como no corpo é função do fígado certa tarefa no funcionamento biológico, na alma é função do Ego organizar o que se sente, transformá-lo em pensamento e, finalmente, em palavras comunicáveis ao outro. Essa capacidade do Ego progride conforme a qualidade do vínculo que se pode ter com o real, a realidade ou a verdade sobre o que se vive.

Porém, o desenvolvimento de um processo implica sofrimento. A própria expressão da fala coloquial nos orienta quando diz: “sofrer o processo”. Penso que todo e qualquer movimento de expansão implica em crise e é, em si, uma fase no processo de crescimento da alma, ou qualquer que seja o objeto de observação e estudo. O sofrimento estará presente, mesmo que em uma pequena dimensão, tanto naquele (ou naquilo) que busca crescer, como naquele que impede o desenvolvimento.




Ser ou não ser
Eis a questão; se é mais nobre ao espírito suportar as pedradas da sorte ultrajante ou se opor a um mar de percalços e vencê-los, continuaria Shakespeare. Em outras palavras, ou nos conformarmos com o que somos e/ou temos, ou enfrentamos as diversidades conscientemente. Mas, diante de uma ou outra opção enfrentaremos o mar de percalços, isto é pagaremos “seu preço”, o preço da crise existencial de ter que escolher as conseqüências da decisão tomada.




Somos dotados de uma parte da alma chamada identidade (iden-entidade). Idem, que sugere algo que é sempre igual, ou numa visão mais ampla, aquilo que é como o outro, e entidade, como figuração de algo vivo, algo que existe. Esse é o lugar de nossa origem, da nossa herança e mais profundamente daquilo ao qual o psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), discípulo de Sigmund Freud (1856-1939), chamou de inconsciente coletivo, o conjunto de arquétipos que nos liga a toda humanidade. É nossa essência, o que realmente somos, aquilo que podemos evitar, mas não podemos fugir - ou seja, aquilo que explicaria nossa existência. O pensamento que nos antecedeu e que nos tornou pensador.

Se tomarmos esse vértice, podemos pensar a crise existencial como o resultado de conflito entre o que sou e aquilo que gostaria de ser. É como se nosso ‘si mesmo’ se sentisse ameaçado de abandono por não ser bom o bastante. O reconhecimento de partes de nossa identidade é sempre um desequilíbrio do eu, e é em si o processo doloroso da expansão da alma. Existe sempre um medo implícito no processo do desenvolvimento, algo que surgirá, como no primeiro vôo de um pássaro, a liberdade e a insegurança. A dor gerada pelo confronto entre o narcisismo (Freud, 1914) e nossa real capacidade. Nunca somos exatamente o que imaginamos, ou queríamos ser, e isso é o que nos faz lutar pra melhorar. Quanto mais se amplia a visão da alma, maior será a sua capacidade de expandir-se no mundo.

A tarefa de reconhecer-se é, antes de tudo, uma tarefa de tornar-se consciente de nossa própria ignorância

Contudo, todo momento de crise é também caracterizado por uma bifurcação das escolhas. Nesse trecho o caminho abre-se em dois. Um lado é especialmente atrativo por sua acessibilidade, porém se apresenta como círculo e volta sempre no mesmo ponto; o outro lado é sempre mais difícil e sem dúvida menos atrativo, pois exige paciência. Nesse caminho existe uma ponte após a qual nunca mais somos os mesmos. Uma vez cruzada a ponte da maturidade da alma, não mais se retorna. Como coloca o poeta chileno Pablo Neruda em Adioses: “Quem volta jamais partiu”. Para que possamos reconhecer- nos a nós mesmos, ou aquilo que podemos chamar de substância do existir, é necessário um movimento de regressão. Um caminho de volta, porém agora, percorrendo-o em busca de responsabilizar- se pelo cuidado da própria vida, e aí sim não tem volta. Penso em uma seqüência de experiências que nos convida a aproveitar como aprendizado. Nessa direção reconhecemos cada falta existente no eu e iniciamos um trabalho de capacitação para viver com elas.
Mas não é sempre assim, podemos aproveitar a crise para crescermos, ou como um motivo para alimentar uma possível crença de destino para o fracasso. Nesse segundo modelo, no lugar da maturidade do eu, o que se dá é uma fixação regressiva, é como se caminhássemos com a cabeça voltada para trás, fixados num ponto do passado. Reconhecemos o ‘si mesmo’, porém não conseguimos nos responsabilizar por ele, assim, responsabilizamos o outro pelo fracasso do eu.


Sigmund Freud
A lenda grega de Narciso, filho de um ato de estupro do deus-rio Cefiso à ninfa Liríope, é uma ótima ilustração do uso que podemos fazer da experiência do reconhecimento de nossa identidade. Em uma consulta, a mãe ouve do adivinho Tirésias que Narciso teria vida longa desde que jamais contemplasse a própria figura. Sua identidade não poderia ser reconhecida, ele não poderia passar pela crise existencial do reconhecimento do ‘si-mesmo’. Quando o fez, não suportou e morreu contemplando a própria imagem na margem do rio. Narciso não se preparou para o reconhecimento de ‘si-mesmo’. Se tivesse suportado conhecer sua essência, teria dado um enorme passo para sua individuação (Jung, 1916, Psicologia do Inconsciente, ed. Vozes), para o auto-conhecimento.


O desespero humano
Certa vez um sábio oriental falou: Um homem no campo de batalha conquista um exército de mil homens. Um outro conquista a si mesmo - Este é o maior. É nesta perspectiva que o filósofo Kierkegaard (imagem) fala sobre o desespero humano: como um processo de conquista do próprio eu. Para ele, o homem em desespero tem o costume de se considerar uma vítima das circunstâncias, porque o desespero revela a miséria e a grandeza do homem, pois é a oportunidade que ele possui de chegar a ser ele mesmo. O desespero é universal.




As crises são partes de um processo natural de uma mente saudável. Podemos evitar o reconhecimento do ‘si mesmo’, mas não podemos evitar a crise. Se pudermos nos arriscar em uma metáfora, é só com a crise no ovo que o pintinho pode nascer. Se o ovo evita a crise, coloca em risco a vida do pintinho. Nesse modelo, a patologia, então, ocorre quando tentamos evitar a crise. Um modelo que nunca se propõe crescimento, ficando assim exposto aos desequilíbrios do mundo externo e interno, torna-se emocionalmente vulnerável e permanece imaturo em suas escolhas.
Wilfred Ruprecht Bion
(1897 - 1979)
Wilfred Ruprecht Bion (1897 - 1979), que foi o discípulo mais turbulento de Melanie Klein (1882–1960), propõem algo nessa direção quando escreve: “A personalidade desenvolve a onipotência como um substituto a associação da preconcepção, ou concepção, com a realização negativa. Isto implica a adoção da onisciência como um substituto do aprender com a experiência (...).”
Assim como duplas que estão juntas tentando evitar crises dentro de uma relação perversa e falida, o fazemos conosco mesmo. Não abrimos mão de certos conceitos que são inúteis (ou servem para mascarar a verdade) por medo de nos reconhecermos em nossa essência e abrirmos a mente para o novo. É a questão dos paradigmas. Acabamos por obstruir o reconhecimento do eu em nossas reais capacidades e assim adiamos o desempenho das mudanças necessárias em nossas vidas. Sabotamos dessa forma, nossas capacidades.

É só com a crise no ovo que o patinho pode nascer.
Se o ovo evita a crise, coloca em risco a vida do filhote

De qualquer forma esse processo emerge e manifesta-se em forma de comportamento; sentimos que algo errado ocorre em nosso interior e também no externo, pois nossos relacionamentos ficam também comprometidos. Ao evitar-se o conhece-te a ti mesmo (inscrição do portal grego de Delfos), transformam-se as relações em modelos de dependência, nos quais o que se percebe é uma alma comandando dois corpos. Num modelo de vínculo umbilical, depende-se exclusivamente do outro para que se possa desempenhar o pensar. Como na relação mãe/bebê, na qual ela é quem decodifica cada choro da criança, mostrando a ela (que sente apenas um incômodo) que chora por um motivo e não por outro. Nesse modelo as esco- lhas são sempre de relações como espelho. É como se a falta que está sendo negada e escondida do eu aparecesse no outro, naquele que mais importa para o eu. Aqui também é interessante a analogia com o mito de Narciso, que só despertara interesse por uma mulher em sua vida, Eco, a ninfa, que fazendo jus a seu nome tinha uma característica particular em sua fala: só repetia o que ele dizia.
A manifestação do conflito é em si o sintoma (manifestação do ‘sinto mal’). Identificamos que está ocorrendo esse modelo de funcionamento mental por meio do que chamamos popular- mente de auto-estima baixa. Percebemos que es- tamos incomodados, mas não sabemos por quê. É nessa fase do processo que geralmente procu- ra-se (ou pelo menos deveria se procurar) alguma forma de Psicoterapia. O choque do reconheci- mento do eu naquilo que somos e não no que queríamos ser implica certa desvalorização do próprio eu, sentida como baixa auto-estima ou complexo de inferioridade. Isso por que com- paramos o que somos àquilo que desejamos ser; nesse período do processo do desenvolvimento da mente, tudo parece importar mais que o eu.



Ao evitar-se o autoconhecimento,
as relações transformam-se
em modelos de dependência,
em que um comanda e decide pelos dois
Assim, podemos perceber a importância de encontrar na dupla analítica ou na relação terapeuta-paciente um ambiente seguro para se viver e pensar esse tipo de experiência. Existe um tempo para qualquer que seja a maturação e com a mente não é diferente. O medo da mudança pode ser um componente da prudência. Dessa forma, como poderíamos cobrar de um eu imaturo que se responsabilize por si mesmo? O impedimento no curso do desenvolvimento pode ser um indicativo de uma ameaça real, o eu pode não estar maduro o bastante para sua independência. Para percebermos essa capacidade egóica, a idade cronológica é um péssimo referencial, pois aquilo que se deve cuidar não está vinculado a nenhuma noção de tempo ou espaço, além de ser algo genuinamente imaturo por si só. Aqui, a tolerância em perceber-se imaturo é imprescindível. Mas, a tole- rância só é saudável se contar com a fé. Paciência sem esperança é comodismo e trans- forma o que seria um sujeito prudente em um covarde.

Paciência sem esperança é comodismo e transforma o que seria um sujeito prudente em um covarde

 Immanuel Kant (1724-1804),
 filósofo alemão
Na verdade, a tarefa de reconhecer-se a si mesmo é antes de tudo, uma tarefa de torna-se consciente de nossa própria ignorância quanto a nós mesmos - algo extremamente ambíguo. É ao mesmo tempo necessário e impossível, pois não há vida sem experiência, mas nunca nos conheceremos em nossa totalidade. Immanuel Kant (1724-1804), filósofo alemão, propõe-nos que a ‘coisa em si’ nunca poderá ser conhecida e que talvez a vida exija-nos preparação para viver frente às possibilidades. Contamos sempre com a capacidade de imaginação e criatividade para nos reinventarmos a cada dia, criando modos de nos relacionarmos com o mundo.
A própria Psicanálise, assim como toda ciência séria, carece de reconhecer-se a cada pensamento que toma conta de um pensador que nasce. Cresce e desenvolve-se por meio da descoberta de verdades que revelam suas falhas. A crise constantemente será uma chance de crescer e de regredir, sempre ao mesmo tempo. Penso que a necessidade é de nos fortalecermos com instrumentos de reflexão, desenvolvendo nossa capacidade para alavancar nossa vida com a crise. Com o estimulo da criatividade, propormos mudanças constantes em busca da melhor forma de nos instrumentar com aparatos emocionais em prol do crescimento.

Prof. Renato Dias Martino é Escritor e psicoterapeuta. Contato: renatodmartino@ig.com.br




Prof. Renato Dias Martino
Psicoterapeuta e Escritor
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