sexta-feira, 10 de julho de 2020

O QUE É O GEPA?


O GEPA é um grupo composto por pensadores que conscientes de sua ignorância estão em busca de aprender com as experiências.A fundamentação do grupo é a de uma psicanálise com a premissa do acolhimento, carecendo de elementos que não podem manter-se tão somente no plano teórico, mas que devem transcender e manifestar-se nas experiências dos vínculos. Isso é o que promove um movimento terapêutico no nível psíquico. Para tanto, mais do que dotes intelectuais, a maturidade emocional é imprescindível.A proposta é de ir para além do nível do saber sobre o outro, para se expandir na dimensão do ser para o outro.

Coordenação: Prof. Renato Dias Martino

http://pensar-seasi-mesmo.blogspot.com/
https://www.gepa.com.br/



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domingo, 5 de julho de 2020

VERBORRÉIA: Da Comunicação à Evacuação


O animal humano desenvolveu um sistema muito bem elaborado de comunicação verbal. A fala é desenvolvida como recurso de comunicação e deve servir de auxilio na tentativa de informar sobre algum fato. O bebê humano desenvolve a habilidade de falar para conseguir aquilo que precisa ou deseja com maior facilidade. Nessa perspectiva a palavra configura-se num símbolo, assim como nos orienta Hanna Segal (1918 – 2011), quando propõe que:

“A formação de símbolos governa a capacidade de comunicação, já que toda a comunicação se faz mediante símbolos”. (Segal, 1982) Portanto, é necessário que o sujeito tenha desenvolvido a capacidade de simbolizar para que possa usar sua fala como instrumento de comunicar fatos. A comunicação verbal parece ser a principal forma de comunicação humana. Porém, por mais que tenha sido bem desenvolvida, ainda assim, guarda inúmeras limitações, geradoras de grandes equívocos. 


Identificação projetiva é como Melanie Klein (1882 -1960) chamou o mecanismo de evacuar desconfortos insuportáveis, com a função de defesa do funcionamento do aparelho mental (Klein, 1946). Klein chama a atenção para essa forma primitiva de comunicação inconsciente do bebê, como um mecanismo natural na tenra infância. Por conta do ego do bebê ainda não se encontrar integrado o suficiente para tolerar desconfortos, ele evacua suas frustrações pela ação motora.

Na primeira infância a mãe que é capaz de ser continente deve ter a atitude de acolhida do conteúdo caótico projetado nela pelo bebê. Dessa forma vai devolvendo esse conteúdo, que então, transformado, passa a ser passível de conexão mental. Essa atitude de maternagem vai promovendo a integração da mente. Função alfa é como Wilfred Bion (1897 - 1979) denominou essa ação materna de receber, transformar e então devolver os conteúdos projetados nela pelo bebê (Bion, 1962). 

Mas, esse mesmo mecanismo de projeção, quando não conseguiu viver experiências bem sucedidas o suficiente, pode se instalar como um recurso psicótico num sujeito adulto. Bion propõe um modelo análogo ao sistema digestivo, onde aquilo que seja experimentado, captado pelo aparelho sensorial, deve ser digerido para ser integrado ao psiquismo ou então, caso não seja possível, deve ser evacuado, expelido sem que possa ser absorvido e integrado no aparelho mental.
“São objetos que podem ser evacuados ou usados em uma forma de pensar que depende da manipulação do que é sentido como as coisas em si mesmas, como para substituir tal manipulação por palavras e ideias.” (Bion, 1962) 
No início da vida, o bebê não é capaz de digerir, por assim dizer, os elementos captados pelo aparelho sensorial e é a mãe quem deve faz-lo por ele. Nessa perspectiva a capacidade simbólica ainda não está presente, já que o comunicado é equalizado ao desconforto. O sujeito sente desconfortos e tenta expelir o que está sentindo por meio da ação motora e a fala pode ser uma ação dessa espécie.
Com isso provoca no outro aquilo que ele sente. Através de uma evacuação desse tipo, um paciente que não esteja sendo capaz de comunicar sua ansiedade ao analista, por exemplo, pode provocar ansiedade no analista. Num mecanismo psicótico evacua-se elementos dolorosos independente da configuração da realidade. 
Contudo, existe outra forma de utilização da fala. A mesma fala que se usa para comunicação, mesmo que de forma rudimentar e primitiva, amiúde pode se manifestar não como tentativa de transmissão de informações, mas como meio de evacuação de desconfortos emocionais que não estejam disponíveis a transformação. A fala ainda deve ser usada pelo ser humano com outro intuito, que não aquele de comunicação de fatos.
A verbalização também pode ser utilizada no intuito de atacar e ferir o outro. Essa forma de utilização da fala é feita muito provavelmente como defesa. Por conta do sentimento de insegurança, o sujeito evacua hostilidades verbais. Numa forma de defesa, assim como a evacuação de desconfortos internos, também em relação ao mundo externo, quando o sentimento de insegurança é gerado na relação com o outro. Um sujeito pode proferir palavras para aplacar sensações de vulnerabilidade frente à outra pessoa. 
De tal modo, Sigmund Freud (1856 – 1939) nos orienta sobre as duas tendências distintas de pulsões: “as pulsões sexuais, compreendidos no mais amplo sentido – Eros, se preferem esse nome - e pulsões agressivas, cuja finalidade é a destruição” (Freud, 1933[32]). Enquanto a pulsão de vida, retratada por Eros tem a função de unir, por outro lado tratamos aqui da ação da pulsão de morte, que projetada no mundo externo, opera no formato de pulsão de destruição, reação que reduz e alivia o desconforto da tensão interna acumulada.
Por conta da intolerância à frustração essa experiência “torna-se objeto mau indistinguível de uma coisa-em-si, e que se presta apenas à evacuação.” (Bion, 1967)
Trata-se de uma tendência natural, com o intuito de diminuir certa cota de tenção interna. Quando ocorre um aumento desse conflito, deve ser gerada uma descarga motora, visando sua diminuição. “Suponhamos que um homem seja insultado, esmurrado, ou qualquer coisa desse gênero. Esse trauma psíquico está ligado a um aumento da soma de excitação de seu sistema nervoso. Surge então instintivamente uma inclinação a diminuir de imediato a excitação aumentada.” (Freud, 1893)
Quando o sujeito revida, sente-se melhor, como se tivesse se livrado do mal que tenha recebido do outro. A palavra pode servir muito bem a esse propósito. No modelo freudiano, por não poder ter sido elaborado, o conteúdo é expelido por meio do que em psicanálise usualmente chamamos de acting out (ação não pensada), pois é incomodo. O que não pode ser pensado tende a ser expelido.
Nesse caso a fala não tem o intuito de comunicação, mas de atingir e destruir o objeto que impõe ameaça. Mesmo que o discurso possa parecer coeso e bem elaborado, muitas vezes usando de vocabulário rebuscado. Na realidade, se nos propusermos a perceber mais atentamente é possível reconhecer que o ser humano tem se utilizado muito mais da palavra no intuito de se livrar de desconfortos do que de participar fatos. Grande parte do que é dito não tem o intuito de comunicar, mas sim de evacuar. Isso deve acontecer sem a menor chance de que o conteúdo evacuado esteja disponível à transformação através da intervenção do outro, mas com o único e exclusivo intuito de se livrar do desconforto gerado. Seja esse desconforto provocado tanto por agentes internos, quanto pelo outro, no mundo externo. 
Muitas vezes a fala ainda pode estar a serviço de confundir o outro, muito menos do que para esclarecer fatos. Bion, já havia nos alertado para isso. “Às vezes, a função do discurso é comunicar a experiência emocional para outrem; às vezes, a função é comunicar a experiência emocional de modo errôneo.” (Bion, 1970). A fala pode servir para comunicar aquilo que é verdadeiro, apesar de que a verdade independe de ser dita. No entanto, existe uma relação de dependência entre a mentira e o mentiroso.  A mentira depende exclusivamente de alguém que a repita, para que se mantenha. A verdade existe independente de alguma pessoa para difundi-la. "É frequentemente esquecido que o dom da fala, tão fundamentalmente empregado, foi elaborado tanto com o propósito de ocultar o pensamento através da dissimulação e da mentira, como com o propósito de elucidar ou comunicar o pensamento.". (Bion, 1970).
A mesma palavra que serve para desvelar a verdade, pode também servir à mentira, assim como na tentativa de manter a verdade oculta.
Quando a palavra é proferida ausente de sinceridade e desnutrida de amor o seu efeito deve ser danoso, causando inúmeros estragos. Um “não” dito sem amor pode surtir efeito oposto. Quando um pai diz “não” com brutalidade, tende a gerar no filho um ímpeto de disputa, acendendo o desejo de retaliação. Assim, fica claro que a fala muitas vezes está distante do que realmente acontece. A palavra é um mero instrumento de comunicação. Se fossemos mais capazes de nos respeitar, não precisaríamos falar tanto. A palavra deve estar irrigada de sinceridade e amor, para que seja uma extensão da realidade. Um “não” dito por amor não carece de justificativas.
Na prática clínica psicanalítica a fala tem um papel importante, onde na história da elaboração da psicanálise ela própria foi apelidada pela paciente de Freud, Anna O de “cura pela fala”. “Ela descrevia de modo apropriado esse método, falando a sério, como uma ‘talking cure’ (cura de conversação), ao mesmo tempo em que se referia a ele, em tom de brincadeira, como “chimney-sweeping” (limpeza da chaminé).” (Freud, 1910 [1909]) Para Freud, a palavra era o instrumento fundamental no exercício clínico, onde tanto aquilo que se ouvia quanto aquilo que se falava formavam a base do processo de associação livre de ideias e suas interpretações. “A cura pela fala constituía um processo onde, através de interpretações verbais, visava-se promover mudanças na forma como o paciente pensava, desfazendo assim mal entendidos quanto às relações afetivas.” (Martino, 1915). No entanto, o que realmente parece surtir real efeito terapêutico parece ser o ato de acolher o paciente de maneira que não seja ameaçado por julgamentos ou interesses escusos, mesmo que não esteja dentro do âmbito verbal. 
Só desabafar não é o suficiente. O conteúdo precisa ser acolhido para haver transformação. Essa transformação não se dá necessariamente por meio das palavras, mas se realiza numa configuração ambiental, onde o estar sendo em relação ao outro é que realmente se configura no agente transformador. A criação de certa psicosfera benigna que propicia a vivencia de experiências emocionais reparadoras.
Para tanto é necessário que o psicanalista esteja integrado em sua personalidade, sendo capaz de se responsabilizar por suas questões emocionais. Na ocasião da desintegração do psicanalista ele também tenderá a evacuar suas frustrações no paciente, que muito provavelmente, padecerá com isso, por conta de seu estado de vulnerabilidade. Sem conseguir perceber o que realmente ocorre o paciente pode ser saturado dos conteúdos impensados do analista, que só por ocupar sua posição, não está livre de que isso ocorra. Um psicanalista desintegrado, que esteja incapaz de manter condições mínimas necessárias de concórdia interna e que não esteja em paz consigo mesmo, tenderá também evacuar suas frustrações em seus pacientes. Num tom bem humorado poderíamos pensar que quando a palavra é usada para evacuação é possível diagnosticar uma verborréia. Portanto, na ocasião em que as interpretações de um psicanalista desintegrado têm o intuito de evacuar seus desconfortos emocionais no paciente, que se mostra um alvo fácil, é possível então diagnosticar um quadro de interpretorréia. Quando o psicanalista sofre de interpretorréia deixa o paciente enfezado.


BION, W. R. O APRENDER COM A EXPERIÊNCIA. 1962 - Rio de Janeiro: Imago, 1991.
__________. ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO, tradução de Paulo Cesar Sandler. - 2. ed. 1970 - Rio de Janeiro: Imago, 2006.
__________. Conferências brasileiras 1 – São Paulo, 1973. Rio de Janeiro: Imago,1975.
__________. ESTUDOS PSICANALÍTICOS REVISADOS (SecondThoughts). (TraduçãoWellington M de Melo Dantas) Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1967).
Freud, S. (1893) SOBRE O MECANISMO PSÍQUICO DOS FENÔMENOS HISTÉRICOS: UMA CONFERÊNCIA In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
________. (1910) CINCO LICÕES DE PSICANÁLISE. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
________. (1911) FORMULAÇÕES SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS DE FUNCIONAMENTO PSÍQUICO. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
________. NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS EM PSICANÁLISE (1933 [1932]). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
KLEIN, M. Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. 1946 - In: KLEIN, Melanie. Tradução de A. Cardoso. Rio de Janeiro, RJ: Imago.
MARTINO, Renato Dias. O LIVRO DO DESAPEGO – 1ª ed. São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2015.
SEGAL, H., “Notas a respeito da formação de símbolos” in A obra de Hanna Segal, Imago, Rio de Janeiro, 1982.





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