sábado, 31 de maio de 2014

Algumas Palavras Sobre a Palavra

A palavra é uma unidade de linguagem, um instrumento de comunicação das ideias por meio da fala ou da escrita, e essa é uma definição lógica, aquilo que transforma em conceito o conjunto de letras “p”, “a”, “l”, “v” e “r”, arranjadas de certa forma específica. Palavra vem do grego parabolé. Cedo percebemos que a palavra foi criada no intuito de vinculação entre as pessoas, a palavra une as pessoas.
De qualquer forma, a proposta desse texto não é se prender a modelos já pensados, mas tentar transcender o modelo de conceito racional, vazio de experiência, até porque, não é só isso: o valor que se pode dar à palavra está intimamente ligado ao desenvolvimento emocional. A palavra está vinculada e é subordinada de certa área de nosso psiquismo onde o racional não pode penetrar. Logo, da forma como lidamos com a palavra, podemos revelar sinais da saúde mental, que pode ser descrita como a capacidade de vínculo que se pode ter entre nosso mundo interno (impulsos instintuais e fantasias) e mundo externo (o outro, aquilo que existe independente do desejo do eu).
Dessa forma é indispensável, para o desempenho da palavra, a capacidade de simbolização, já que a própria palavra é antes de tudo um símbolo, e isso quer dizer que tem a propriedade de fazer o conteúdo da ideia presente, mesmo em sua ausência.
Poderíamos, até, fazer uso de um modelo filosófico para pensar o que é símbolo. Imaginemos, então, algo, alguém, algum lugar, que possamos sentir a presença, mesmo não podendo confirmar com os órgãos dos sentidos. Quando dermos conta dessa proposta, podemos de alguma forma simbolizar. O símbolo se encontra exatamente na ausência real sensorial. O bebê aprende a simbolizar a mãe e, isso é o que lhe permite tolerar, até que ela atenda seu choro. O símbolo sustenta a alma na falta do objeto, aí então, se está apto a transformar em palavra.
Hanna Segal ( 1918 – 2011)
 
Hanna Segal ( 1918 – 2011), grande pensadora da psicanálise, coloca em 1982 que: “A formação de símbolos governa a capacidade de comunicação, já que toda a comunicação se faz mediante símbolos”.
Ela postula que, quando ocorrem perturbações que comprometem essa capacidade simbólica, a capacidade de comunicação é também perturbada:

Hanna Segal ( 1918 – 2011)
primeiro, porque a diferenciação entre o sujeito e o objeto se desfaz; segundo, porque os meios de comunicação estão ausentes, já que os símbolos são sentidos de modo concreto e, portanto, não estão disponíveis para fins de comunicação.

Quando se comunica a ideia de alguma coisa através da palavra, acredita-se nela, mesmo sem que se tenha, a mão, a coisa em si. A capacidade do espaço mental em sustentar uma imagem interna boa o bastante para que se possa transmiti-la ao outro é o que define a qualidade da palavra e consequentemente da saúde psicológica.
Quando levantamos a hipótese da degradação da palavra, estamos antes de tudo descrevendo um estado de incapacidade de troca afetiva. A palavra deve ser uma extensão do ser, ou seja, a qualidade da ideia contida na palavra é o que define a própria palavra. Palavras distantes do ser são frias e como uma “nota fiscal fria” (refiro-me a um modelo tributário), não conta com a responsabilidade daqueles que a emitem.


Capítulo do livro Para Além da Clínica. Renato Dias Martino - 1. ed. São José do Rio Preto, São Paulo: Editora Inteligência 3, 2011.

sábado, 24 de maio de 2014

COGITAÇÕES SOBRE A INVEJA

E então, vemo-nos aqui, mais uma vez, na difícil missão de focalizar na direção daquilo que é extremamente desconfortável, mas nem por isso, menos frequente nos processos do desenvolvimento psíquico. Aqui, em especial, trataremos do sentimento responsável pelo que teria sido o primeiro homicídio registrado na humanidade, segundo o livro do Gênesis na Bíblia.
Caim mata Abel a pauladas e faz isso, invejoso do seu próprio irmão. O assunto aqui tratado é sobre o segundo dos sete pecados capitais, antecedido apenas pela vaidade, conforme São Tomás de Aquino (1225-1274) o mais sábio dos santos e o mais santo dos sábios.
O conceito de inveja é algo que aprendemos a determinar como parte das “coisas ruins da vida”. A partir dessa ideia, criamos um mecanismo onde toda inveja que possa ser percebida deve ser afastada, arrancada a qualquer custo da alma.
Assim, sem tempo ou chance para que se possa entender ou estabelecer um sentido sobre esse sentimento, ele é arremessado de volta para as profundezas de onde surgiu um dia. Entretanto, a priori, tudo aquilo que somos hoje, um dia passou pela inveja.
Se hoje “somos alguma coisa” foi por que um dia invejamos, pelo menos em certa medida, aquele do qual tivemos como modelo. Logo, se pensarmos sob certo vértice lúdico da família, o sentimento de inveja é filho do desejo e, se esse sentimento der sorte de casar-se com a esperança, dessa união eles poderão gerar uma linda realização.
Parece claro, que na tentativa de evitarmos sentir inveja, morremos invejosos. Isso ocorre, pois, quando estudamos os elementos que estão em certo nível onde se encontram os sentimentos, falamos de uma classe de manifestação psíquica da qual não temos o menor controle, mas nem por isso deixa de existir.
Não se pode escolher sentir ou não sentir.
Apenas “se sente”, e a partir deste sentimento, conforme as experiências, pode se tornar ou não capaz de “tomar consciência” do sentimento que o acomete. Assim, como o medo ocorre sem que possamos controlá-lo, a inveja nos acomete, forçando a repressão. Falamos então do reprimido, se estivermos falando aqui de algo que se sente, mas que não se é capaz de tomar consciência.
Sigmund Freud (1856-1939), o pai da teoria psicológica do qual chamamos de psicanálise, escreve em 1905 os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. Por causa dessa obra literária Freud, sofreu “críticas duras”. Pelo fato de “expor uma verdade” da qual a civilização “guardava sob sete chaves”, justamente por não se imaginar capaz de sustentá-la conscientemente. Contudo, essa mesma civilização formatou-se sem perceber em conformidade com certo sentimento indesejável, inconscientemente e sem ter chance de escolhas.
Em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud escreve sobre as fases do desenvolvimento libidinal e, dentre elas, cita uma que, em especial, nos chama atenção no presente trabalho. A fase fálica, onde, segundo ele, a criança vive a fantasia de que todo ser humano possui pênis. Diante desta fantasia a criança, sem capacidade para argumentações mais elaboradas, começa a justificar a ausência do pênis, nos que não o possuem, através da crença de que ainda não cresceu ou então, que eles perderam por alguma razão. No menino, Freud chamou essa experiência de complexo de castração, certa experiência geradora do medo horrível no garotinho, de ser castrado. Freud afirma também que, o reconhecimento do valor do órgão genital feminino só é feito bem mais tarde, na vida da criança.
Essa dificuldade de reconhecimento é, sem dúvida, colaborada pela disposição anatômica interna do órgão feminino. Nesse período, o ambiente fica especialmente propenso à formação de inveja. Aquilo que no menino, Freud chamou de complexo de castração, na menina, surge como inveja do pênis. Para Freud, na menina, essa é uma experiência tão dolorosa quanto o complexo de castração no menino. A experiência do reconhecimento fálico é sempre muito confusa e dolorida para qualquer criança.
A capacidade racional auxilia a reprimir grande parte dessas experiências doloridas e que foram incompreendidas.
Aprendemos a esquecer, até certo ponto, o que hoje nos parece quase inviável admitir conscientemente, o quanto nos foi confusa a época em que tivemos que arrumar um sentido para explicar a problemática da genitália humana.
Aqui me parece caber um exemplo bem humorado das experiências infantis confusas sobre o reconhecimento da genitália. 

Um garoto corre para ver o que a irmãzinha quer chamando aos berros. Ao chegar ao banheiro o menino vê a garota que vive ali, pela primeira vez, sua menstruação. Ela pede ajuda do garotinho mostrando seu genital sangrado. O menino, assustado pergunta: “Puxa, arrancaram seu pipi?”.

O despreparo dos pais em resolver problemas dessa ordem em suas próprias experiências, é um fator importante no processo que nos leva a reprimir ideias, das quais, nunca conseguimos arrumar uma explicação.
Então, carente de sentido ficam reservadas num lugar interno junto ao reprimido. No entanto, como a sina de qualquer que seja o impulso reprimido, também a incompreensão na descoberta da ausência do falo, perdura inconscientemente.
Agora, amiúde essa experiência é projetada no ter ou não ter, naquilo que temos ou deixamos de ter. Muitas vezes, justificamos nossas experiências de derrotas e vitórias criando valores baseados na fantasia de que alguns são fálicos e outros castrados.
A obra “Inveja e Gratidão”, publicada em 1957 é um trabalho de enorme repercussão no pensamento psicanalítico. Nesse importante livro, Melanie Klein (1882-1960) propõe que o sentimento de inveja é vivido originalmente nas tenras fases do desenvolvimento emocional. Numa época onde o modelo de vínculo ainda limitava-se na experiência primitiva entre mãe e bebê. A ideia de Klein parte de certa pressuposição onde o funcionamento mental saudável deveria contar com a introjeção do objeto suficientemente bom. 
Para a pensadora, esse objeto deveria, de forma segura, ser capaz de enraizar-se no ego. Isso numa época onde esse ego ainda apresenta-se como uma pequena formação psíquica, num estágio imaturo e desprotegido da estrutura mental. Através do vínculo afetivo inicia-se a formação de um modelo de cuidado e contenção. Um padrão de vínculo com o outro, que servirá de modelo com o próprio eu em formato de “auto cuidado”, “auto contenção”.
Desgosto ou pesar pelo bem ou pela felicidade de outrem. Desejo violento de possuir o bem alheio. Com essas frases, o dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, descreve esse sentimento. 
Contudo, a proposta e o vértice apresentados aqui, mostram que Klein chama a atenção para a necessidade de se distinguir, de início, a inveja, o ciúme e a voracidade.
Klein propõe que a inveja é um sentimento de desejo pelo que é do outro, e que gera certo impulso de tirá-lo dele ou então danificá-lo. A partir da idealização do que é do outro sem a menor capacidade de conseguir por si mesmo. A inveja, ainda guarda certa característica primitiva particular, onde a relação pode se restringir a apenas duas pessoas.
Klein continua sua proposta dizendo que o ciúme tem a mesma base da inveja, apesar disso, inclui mais uma pessoa, assim sendo, é vivido entre três pessoas. Isso também sugere um modelo mais evoluído e complexo, dentro do funcionamento mental. Nessa etapa, o sentimento de ciúme inclui três posições básicas, num modelo triangular: (Édipo) sujeito, objeto e rival (modelo ou aliado).
A voracidade, para ela encontra sua definição naquilo que o sujeito deseja e que se encontra além da capacidade e disponibilidade do objeto em dar. Klein ainda vê uma diferença entre voracidade e inveja, quando propõe que enquanto a primeira está relacionada à introjeção, a segunda é referente à projeção.
Klein nos ensina que na primitiva relação entre mãe e bebê, ele sente que ela (o seio) possui tudo que necessita para viver. Esse é o primeiro e maior gerador de inveja. Na realidade, a impossibilidade de se estabelecer certo vínculo saudável o bastante para que o bebê possa se perceber dependente da mãe é o que dificulta a elaboração do sentimento de inveja na estrutura mental.
Quando não há uma possibilidade de sentir-se seguro na relação com aquele que depende, as defesas do aparelho psíquico devem emergir e a inveja vem repleta delas. As defesas se pronunciam contra qualquer possibilidade de reconhecimento de separação entre o eu e o objeto, assim como contra qualquer reconhecimento sobre a ligação de dependência que acontece.



“Na primeira infância, surgem ansiedades que obrigam o ego a criar mecanismos de defesa específicos. Neste período se encontram pontos de fixação de distúrbios psicóticos”. Inveja e Gratidão - Melanie Klein, (1957 - p.20)



Essas classes de defesas contra a verdade apresentam-se com grande força, pois o reconhecimento dos movimentos, na direção da separação desperta a percepção da fragilidade do eu, na ausência do objeto. A ausência do outro esvazia e desvaloriza o eu. O resultado desse movimento de reconhecimento do valor do objeto é, em si, gerador de inveja. Logo, dentre as defesas que emergem junto com a inveja, a negação da realidade, leva a desvalorização do objeto de desejo. Dessa forma, afasta-se o desconforto presente no sujeito invejoso. 
Estamos cogitando sobre uma experiência da qual Freud se apoia fortemente em toda sua obra. Freud sugere em seu texto “Uma dificuldade no caminho da Psicanálise”, datado de 1917, certa experiência que propõe a quebra do que chamou de ilusão narcisista.
A ideia freudiana é de um colapso no funcionamento de qualquer estrutura a partir do reconhecimento de qualidades no outro (externo) das quais são vitais ao sujeito. Situação de extrema fragilidade, desencadeadora da inveja. Chegamos então num certo desfecho onde necessidade e desconfiança resultam na impossibilidade de elaboração da própria inveja.

“O analista acabou de dar uma interpretação que trouxe alívio ao paciente e que lhe produziu uma modificação de humor do desespero para a esperança e a confiança. Com certos pacientes, ou com o mesmo paciente outras vezes, essa interpretação propiciadora pode logo tornar-se objeto de uma crítica destrutiva.” Klein (1957, pp.40,41)

Assim como no bebê invejoso, no nível das áreas psicóticas da mente ocorre algo análogo. Ataca-se destrutivamente o vínculo com a realidade, quando é intolerável reconhece-se necessitando do outro. Segundo Klein a inveja é equivalente da pulsão da agressividade presente no bebê. Essa pensadora estuda a inveja como um movimento baseado no ódio. O invejoso é incapaz de reconhecer o quanto necessita do outro, dessa forma, bloqueia o desenvolvimento do ego.
Assim, a incapacidade de elaboração da inveja compromete o desenvolvimento do ego e dificulta a manutenção da autoestima. O ego só se desenvolve de forma saudável em um ambiente seguro e na primeira infância, esse ambiente é a mãe. Assim, como coloca o psicanalista e pediatra Donald Winnicott (1896-1971), é importante que a mãe suficientemente boa seja o ambiente do bebê, enquanto ele se ocupa na difícil tarefa de se “autoconhecer”.

“No desenvolvimento inicial do ser humano, o meio ambiente que se comporta suficientemente bem (que faz uma adaptação ativa suficientemente boa) possibilita a ocorrência do crescimento pessoal. Se o meio ambiente não se comporta suficientemente bem, o indivíduo fica então ocupado em reagir à invasão, e os processos do self são interrompidos.” D. Winnicott (1954)

Os processos que se dão de forma saudável no self correspondem á capacidade de criação simbólica e se estivermos de acordo com certa ideia, onde o ego é constituído por símbolos, o ambiente inadequado coincide com a falha severa no processo de simbolização.

O símbolo é a realidade interna que sustenta o vínculo durante a falta do objeto no nível real/sensório. Dentro deste ponto de vista, a capacidade simbólica do invejoso é extremamente deficitária. O sujeito tomado pela inveja não consegue encontrar satisfação em si mesmo, isso porque a relação que tem com ele mesmo guarda um ambiente hostil, repleto de críticas, condenações, tudo isso regido pela culpa. Sendo tratado assim, o ego passa a ser dependente do outro (externo) para desempenhar suas funções básicas. Na impossibilidade do desenvolvimento do ego, o ideal de ego (superego) é o que comanda o funcionamento mental.
Nas palavras de M. Klein: “o superego invejoso é sentido a perturbar ou aniquilar todas as tentativas de reparação e criatividade.” (Klein.1957 p.128) Entretanto, a capacidade do pensar (simbólico) é função exclusiva do ego.
“O pensar foi dotado de características que tornaram possível para o aparelho mental tolerar uma tensão intensificada de estímulo, enquanto o processo de descarga era adiado.”  É o que Freud escreve nas Formulações sobre os dois Princípios do Funcionamento Mental em 1911.
Cogitamos aqui sobre uma capacidade restringida para o pensamento, também o sonhar é comprometido. O sonho do invejoso é ocupar o lugar do outro, logo o ambiente de rivalidade deve culminar na exclusão ou do eu ou do outro. Nas elaborações oníricas, uma instância crítica na mente (ideal de eu) cobrará pela falta do objeto de desejo, mas também condenará pelo fato da exclusão do outro.
Em 1962, Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979) considera, em “Uma Teoria Sobre o Pensar”, que o “aparelho de pensar” se desenvolve através da capacidade do bebê frente à expectativa (preconcepção) de encontrar um seio que o alimente. A partir da ideia do O da experiência, ou seja, a capacidade de suportar o vazio. De tal modo, o aparelho se desenvolve na medida em que possa haver tolerância no encontro da ausência da mãe.
O desenvolvimento mental necessita que ele possa contar com a percepção do não-seio disponível para a satisfação. E, se o bebê não se esquivar (negando a realidade da ausência), o “não-seio”, transforma-se em pensamento e desenvolve-se um aparelho para pensar. A fonte de onde emanam os símbolos. Na perspectiva de Bion assim como dentro da ideia kleiniana, a capacidade de gratidão pelo objeto do qual se dependia é a chave para a transposição do modelo invejoso de vínculo.
Da possibilidade de simbolização dos cuidados maternos é gerado então um modelo de autocontenção. Através do vínculo, admitindo a falta do seio pela simbolização do mesmo, torna-se capaz de reparar aquilo que antes destruiu ou espoliou. Agora, enquanto seu valor real, o sujeito pode ultrapassar o preconceito de desejo chamado inveja e só a partir daí ser capaz de realizar o si mesmo.





Capítulo do livro - MARTINO, Renato Dias. Para Além da Clínica. Renato Dias Martino - 1. Ed. São José do Rio Preto, São Paulo: Editora Inteligência 3, 2011.