quarta-feira, 29 de julho de 2015

Sobre confiar em si mesmo

O conceito de autoconfiança tratado aqui é uma qualidade do ego, que por sua vez é a parte da estrutura mental que tem função principal no funcionamento mental, assim como pudemos aprender coma psicanálise. O ego compõe a parte organizada e compõe também a porção organizadora da mente. O ego é o que popularmente chamamos de autoestima.
Assim como toda habilidade mental, também a autoconfiança é desenvolvida através do que podemos chamar de experiência emocional bem sucedida. E isso inclui alguém além do sujeito, para que seja possível viver esse ensaio de expansão da capacidade emocional. Quero dizer com isso que, a constituição da autoconfiança depende fundamentalmente da possibilidade de formar conexões emocionais saudáveis. A saúde dessas conexões é determinada justamente pela condição de se poder confiar no outro.
Vínculos dessa espécie não são apenas úteis no que diz respeito à manutenção da personalidade, por proporcionarem segurança para se viver de forma razoavelmente tranquila, mas nos servem como modelos para usarmos em relação a nós mesmos e assim expandirmos nossas possibilidades. Quero dizer com isso que, a autoconfiança é gerada pela confiança (real) do outro. Não sendo possível, portanto, cultivar autoconfiança sem ter experimentado a confiança do outro. Além disso, sem um bom vínculo de confiança as ilusões podem ser percebidas como fatos e o pensar, que prepara a ação, fica assim, comprometido. Sem uma fonte segura na realidade a coleta de dados fica sempre duvidosa.
Assim como a autoestima, também a condição da autoconfiança é à base de todo funcionamento mental em expansão. É o que nos possibilita reconhecermos nossos próprios limites e ensaiar para além deles. Só através dessa condição podemos realizar no mundo. E é bom lembrar certa diferenciação onde o realizar é distinto do produzir. De outra forma, seremos sempre desacreditados, hora pelo outro, hora por nós mesmos num ciclo mórbido que só poderá ser quebrado com um vínculo seguro de afeto e sinceridade.
A arrogância é o ultimo estagio da ignorância. Quando somos arrogantes é sinal de que não nos reconhecemos e tão pouco, podemos confiar em nós mesmos. A autoconfiança por sua vez, dissolve a arrogância. Muitas vezes um sujeito arrogante passa por alguém que tem muita autoconfiança. Mas, fica evidente que não deve ser a capacidade de autoconfiança que movimenta a arrogância. Aquele que busca confiar em si mesmo, já deixou de usar esse recurso hostil. No entanto, a arrogância serve bem àquele que inseguro, não confia em si mesmo e a hostilidade é filha dessa insegurança.


Na realidade somos arrogantes justamente quando estamos com medo e não estamos confiando em nós mesmos. Aprender a confiar em si mesmo é, antes de tudo, aprender a reconhecer sua própria realidade expandindo essa mesma realidade através da esperança que é o desejo do possível, mesmo que além do que é real.



Prof. Renato Dias Martino​
renatodiasmartino@hotmail.com 
http://www.pensar-seasi-mesmo.blogspot.com.br/

quinta-feira, 16 de julho de 2015

II ENCONTRO DO ATO DE PENSAR - REENCONTRO


II ENCONTRO DO ATO DE PENSAR.
REENCONTRO - O que de mim fica em você enquanto e não estou presente?
Dia 15 de agosto de 2015, sábado.
Horário: 14h às 17h.

O investimento é o valor simbólico de R$ 25,00, com certificação.
Para mais informações sobre a inscrição e pagamento, entrar em contato no e-mail: maiconvijarva@gmail.com e pelos telefones: 17 99132-9809 e 17 3011-1496.
 
Inscrições na hora R$ 35,00.


Prof. Renato Dias Martino
Psicoterapeuta e Escritor
renatodmartino@ig.com.br
http://pensar-seasi-mesmo.blogspot.com/

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Do psicótico que há em nós

A questão da real utilidade do diagnóstico nos transtornos mentais ser questionável para aquele que realmente dedica-se ao cuidado no acolhimento, é um tema que venho desenvolvendo há algum tempo e esse ensaio é mais uma tentativa de cogitação sobre esse assunto. Os avanços dos estudos psicanalíticos nos permitiram expandir as possibilidades e trazer a baila questões importantes como é o caso da diferenciação e divisão entre sujeitos mentalmente comprometidos e sujeitos saudáveis. A psicanálise nos auxilia a reconhecer outro vértice de pensamento, onde o que se admite é o quanto da mente de cada um de nós está comprometido. 

Enquanto se raciona o mundo em pessoas normais e pessoas mentalmente comprometidas corre-se o risco da patologisação das características humanas. Entretanto mesmo sendo característica do que se configura na sociedade contemporânea, ainda assim proponho refletirmos sobre esse tema. Como que na provável tentativa ilusória de controle sobre o funcionamento da mente, mas que apesar da promessa de domínio, acabam por promover uma padronização mórbida, numa desejável e confortável fantasia de normalidade.

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais ou o DSM, compendio psiquiátrico que identifica doenças mentais e as cataloga, descrevendo seus principais sintomas, vem ganhando mais itens em suas nomenclaturas patológicas a cada nova edição.
Nas novas catalogações psicopatológicas da última edição, o DSM-V temos relacionados o luto (Transtorno de Depressão Maior), a gula (Transtorno de Compulsão Alimentar Periódica) e também a TPM (Transtorno Disfórico Pré-Menstrual).
Com isso o que se revela a patologisação de processos e características comuns no sujeito humano, na criação de uma padronização do que pode ser realmente saúde e o que deve ser visto como doença.

Bem, assim o que se percebe é a tentativa infecunda de controle sobre as manifestações humanas, numa normalidade arranjada por administrações químicas aliadas à modernas propostas terapêuticas de doutrinação dos comportamentos, na propostas de tarefas de “readequação comportamental”, conforme um padrão conveniente ao mercado de consumo.

Sigmund Freud
(1856-1939) 
" Essas duas descobertas – a de que a vida dos nossos instintos sexuais não pode ser inteiramente domada, e a de que os processos mentais são, em si, inconscientes, e só atingem o ego e se submetem ao seu controle por meio de percepções incompletas e de pouca confiança -, essas duas descobertas equivalem, contudo, à afirmação de que o ego não é o senhor da sua própria casa”. (Freud, 1917)

Assim Sigmund Freud (1856-1939) nos orienta em seu importante ensaio UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE, entretanto bem antes da criação da psicanálise é possível encontrar certa busca de expansão nessa direção.

Terêncio Afro
(195-185 a.C. - 159 a.C.)
“Sou homem: nada do que é humano me é estranho” (no original em latim “Homo sum: nihil humani a me alienum puto”) é um ensinamento que Publio Terêncio Afro (195-185 a.C. - 159 a.C.), poeta romano registra no verso 77 de sua obra Heautontimorumenos. Terêncio já havia alertado sobre a incapacidade do ser humano em se responsabilizar por si próprio. Essa busca consiste em certa expansão para um nível onde cada um de nós guarda uma cota da angústia de toda humanidade.


Partes indesejáveis do eu

No texto de 1924: “Neuroses e Psicoses” Freud afirmou que na neurose, o ego em virtude da submissão á realidade, suprime uma parte das suas pulsões enquanto que nas psicoses o mesmo ego retira seu contato com a realidade. Pois bem, foi o mesmo Sigmund Freud que revelou-nos sobre a cota de neurose que cada um de nós carrega, desenvolvida sobre tudo pelo simples fato de vivermos sob os domínios das regras civilizatórias. O pai da psicanálise escreve em seu texto “Sobre o Inicio do Tratamento” de 1913, que é parte dos Artigos Sobre Técnica, sobre a dificuldade que encontrava na tarefa do diagnóstico de seus pacientes, candidatos a analise: “Não concordo que seja sempre possível fazer uma distinção tão facilmente” no que se refere à neurose e a psicose.

Melanie Klein (1882–1960)
No entanto, foi a partir dos estudos da escola inglesa, sobretudo orientados pelas idéias de Melanie Klein (1882–1960), que a compreensão do funcionamento psíquico psicótico, ou narcisista, encontrou maior clareza, assim como instrumentos no manejo clínico de pacientes que apresentam esse quadro. Através de nomes como Wilfred Ruprecht Bion (1897 - 1979), um dedicado discípulo de Klein, foi possível o desenvolvimento da teoria psicanalítica na criação de métodos de analise que abrangesse recursos para lidar com essa classe de pacientes mais comprometidos, assim como o reconhecimento de episódios psicóticos que ocorrem em qualquer ser humano dito mentalmente saudável, pelo menos a priori. 

Analistas que se arriscam nessa árdua tarefa foram conduzidos a repensarem a colocação original de Freud, que muito provavelmente fora conduzido por fatores que vão desde questões pessoais, como a análise de sua própria personalidade, até o questionamento impiedoso da ciência que cobrava resultados claros. Freud via dificuldade no estabelecimento da transferência na relação com pacientes mais comprometidos com as áreas psicóticas da mente.

Porem, apesar de todo o pessimismo quanto à psicanálise das psicoses, o próprio Freud deixara o caminho preparado quando propõe as características do narcisismo primário, a condição de funcionamento mental nesse período da vida do bebê e o quanto esse modelo primitivo permeia o desenvolvimento saudável da mente e das relações, aparecendo com mais ou menos frequência também na vida adulta.

Vários foram os fatores que trouxeram novos vértices até que se reconhecesse essa expansão no alcance da psicanálise. A necessidade de se desfazer a nítida diferenciação entre pacientes que apresentassem um quadro psicótico daqueles que revelassem um diagnostico neurótico, talvez fora uma das premissas do desenvolvimento dessa nova tendência clínica. Pensadores da psicanálise trouxeram novas ideias que contribuíram enormemente para o abandono da necessidade de precisão na distinção psicopatológica.

Esse movimento ocorre na teoria, pois na prática clínica foi possível perceber que só poderá ser cumprida a função psicanalítica, sendo o analista alguém verdadeiro (sinceridade) e acolhedor (afeto).  Só aquilo que se é capaz de ser é o que pode influenciar numa real experiência emocional reparadora. Bem, o analista real, sem dissimulações ou defesas ásperas, deve lidar com a realidade do paciente, independente de como esteja sendo no momento do atendimento.

Uma parte de cada um de nós

Em 1957 na obra, “Diferenciação entre a Personalidade Psicótica e a Personalidade Não Psicótica”, Wilfred R. Bion, propõe um vértice de pensamento onde não se reconhece mais um sujeito psicótico, mas uma certa área psicótica presente na mente de cada sujeito. O reconhecimento dessa faceta que não mantem conexão com a realidade externa, nele mesmo, ou seja, a descoberta de certa parte psicótica em sua própria mente, seria para Bion (1962) o que capacitaria analistas a receber e acolher pacientes que apresentem esse funcionamento mental. 
Assim, a saúde mental passa a depender da capacidade de reconhecimento do lado 'louco' do eu. Bion propõem que tal diferenciação depende da fragmentação em pedaços mínimos do todo da personalidade, que recusam as influências da realidade e que amiúde atacam o vínculo que se possa manter com a verdade. Assim, apoiado pelas intuições kleinianas, Bion propõe que na parte psicótica da personalidade a repressão, própria do funcionamento neurótico, é substituída por identificações projetivas.

Assim como a necessidade da capacitação emocional do analista em reconhecer suas próprias partes psicóticas, a criação de novos conceitos como é o caso da ‘identificação projetiva’, introduzido por Klein, foram de grande importância na compreensão de como funcionaria a situação transferencial nos pacientes mais comprometidos com as partes psicóticas da mente. Um formato especial de transferência se estabelece, com a identificação projetiva de aspectos primitivos de ligação com o objeto. Tentam uma reedição, emergindo agora na relação com o psicoterapeuta.


Funcionamos o tempo todo de maneira primitiva em alguma proporção. Seja no nível neurótico, onde por uma dependência à realidade externa, suprimimos uma parte das pulsões, ou seja, no nível psicótico, quando retiramos o contato com a realidade externa, nos entregando às ilusões de satisfação. Ainda assim, mantemos uma cota de ligação com a realidade externa que somos capazes de sustentar formas saudáveis, mais evoluídas e expansivas de vínculo e é através dessa espécie de ligação que alimentamos nosso bom funcionamento mental.






Prof. Renato Dias Martino​
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quarta-feira, 8 de julho de 2015

Dica de Filmes – A Grande Ilusão 2013

A ordem do tema está na possibilidade de elaboração de um estado severo de melancolia. Emanuel, interpretada por Kaya Scodelario, que é uma moça prestes a completar 18 anos, perdeu a mãe durante seu parto. Vive com seu dedicado pai e sua madrasta, que tenta de tudo para que Emanuel a aceite afetivamente. Quando Emanuel conhece a mãe recente Linda, que no filme é interpretada por Jessica Biel, rapidamente a identifica como figura materna.
A garota se oferece para cuidar do bebê de Linda e então elas vivem uma profunda experiência emocional. Oportunidade de grande expansão na busca pela verdade, onde o amor se mostra fundamental.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

DO REENCONTRO

O que de mim fica em você enquanto eu não estou presente?

O ato de encontrar-se novamente é o tema desse pequeno ensaio. Uso aqui o termo reencontro como sendo a situação onde houve uma aproximação que é sucedida por um afastamento e essa experiência então, possibilita o reencontro. Entretanto o reencontro tratado aqui não é o fim do processo, já que outros distanciamentos ocorrerão. Quando partimos desse pressuposto de que existe um processo acontecendo, em que o reencontro não é desfecho, mas é elemento de um processo que não interrompe de acontecer, é então possível reconhecer que na realidade, a ocorrência desse ciclo é sinal de que o vínculo esta se desenvolvendo.

Os sites de relacionamento e redes sociais virtuais como o Facebook, trouxeram grande chance para o reencontro de pessoas que há tempos não se viam. Muitos deles importantes, já que os vínculos podem manter-se independentes do tempo e da distância.
É justamente através do vínculo que nos mantemos ligados ao mundo externo ou à realidade que existe independente de nossa vontade. É também através dos vínculos que nutrimos nossa autoestima, mas, além disso, é por onde podemos nos intoxicar emocionalmente. É o que permite estarmos ligados à aquilo que está fisicamente ausente. Isso só é possível por conta da recordação. Experiências bem sucedidas com essa realidade que ora está sensorialmente ausente, mas que deixara uma boa impressão emocional. Essa questão da perpetuação do vínculo depende particularmente e diretamente da capacidade de simbolizar. Quando nos é possível introjetar a imagem do outro de maneira verdadeira e afetiva, o vínculo é preservado e a recordação é um sinal de que isso valeu.

Em grego a palavra "symbolon" é derivada do verbo "symbalo" que significa reunir, ou mais precisamente lançar junto, a possibilidade de concórdia. O contrário é a "diabolé" que constitui divisão e promove a discórdia. O conceito de símbolo tem uma concepção clássica na Odisseia de Homero, poeta épico da Grécia antiga. A Odisseia relata o retorno de Ulisses, herói da guerra de Troia. Depois de vinte anos ele volta para sua esposa Penélope:

"O símbolo era um objeto primitivamente uno, que duas ou mais pessoas repartem entre si no momento em que vão separar-se por um longo tempo. Elas conservam seu fragmento, em sinal dos vínculos que as ligavam. Quando mais tarde se reencontram, cada qual se serve de seu fragmento para fazer-se reconhecer. Nesse reconhecimento, elas se identificam por um nome novo, como sinal da história que viveram em separado, mas também do novo lugar e da nova função que vão ser os seus no todo igualmente renovado".

Sigmund Freud
(1856- 1939) 
Nos primeiros estudos de Sigmund Freud (1856- 1939) sobre observação de bebês, ele percebeu a ansiedade da criança na ausência da mãe. Notou as brincadeiras de sumir e aparecer como um ensaio para ausências cada vez mais longas que o bebê terá de suportar.

“Certo dia, fiz uma observação que confirmou meu ponto de vista. O menino tinha um carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dele. Nunca lhe ocorrera puxá-lo pelo chão atrás de si, por exemplo, e brincar com o carretel como se fosse um carro. O que ele fazia era segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua caminha encortinada, de maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas, ao mesmo tempo em que o menino proferia seu expressivo ‘o-o-ó’. Puxava então o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre ‘da‘ (‘ali’). Essa, então, era a brincadeira completa: desaparecimento e retorno”. (Freud em ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER, 1920)

Isso quer dizer que quanto maior for a preparação para esse momento de separação, mais viva estará a imagem simbolizada da mãe no mundo interno do bebê; consequentemente e posteriormente esse modelo de experiência se aplicará com amigos e outras pessoas amadas.

Wilfred Ruprecht Bion
(1897-1979)
Bion (1897-1979), (1962/91) descreve a capacidade de rêverie como sendo “um estado mental aberto à recepção de quaisquer objectos do objecto amado, capaz de receber as identificações projectivas do bebé, sejam elas sentidas como boas ou más” (p. 36). Este estado se inicia no sonho e nas brincadeiras das menininhas que um dia serão mães.
Com a rêverie a mãe realiza um processo mental comparável ao procedimento digestivo no nível fisiológico/orgânico.  A mãe se encontra na função de sonhar o sonho do bebê. No significado da palavra rêve = sonho. Através do processo de rêverie o bebé adquire uma sensação de continuidade existencial que servirá ao seu próprio processo de pensar. O conceito de rêverie proposto por Bion encontra-se relacionado com a imaginação, os devaneios, num estado particular de consciência receptiva. Receptiva à transformação que ocorre no bebê. A mãe reencontra o bebê e em cada reencontro ele cresceu um pouquinho. Com a capacidade de rêverie que ficou não foi somente o ‘saber’ armazenado na memória, mas o ‘ser’ que brota na recordação. A necessidade do reencontro é inerente ao desenvolvimento e o funcionamento saudável da mente.
        
Homero
A necessidade natural do reencontro tem no nível dos sonhos uma chance de elaboração. É possível o reencontrar aquilo que desejávamos, mas que por algum motivo é impossível reencontrar na realidade, assim o fazemos através dos sonhos. Reencontramos nossos afetos no sonho, entretanto de forma mais sincera e nem sempre muito compreensível. O que define o conteúdo dos sonhos é justamente a necessidade do reencontro. Um reencontro consigo mesmo, mas que sob a influência onírica configura-se num funcionamento de características infantis. Desprovido das mentiras e dissimulações que os adultos aprenderam e aperfeiçoam para conviver bem em sociedade.
“O que um dia dominou a vida de vigília, quando a psique era ainda jovem e incompetente, parece agora ter sido banido para a noite – tal como as armas primitivas abandonadas pelos homens adultos, os arcos e flechas, ressurgem no quarto de brinquedos. O sonho é um ressurgimento da vida anímica infantil já suplantada. Esses métodos de funcionamento do aparelho psíquico, que são normalmente suprimidos nas horas de vigília, voltam a tornar-se atuais na psicose e então revelam sua incapacidade de satisfazer nossas necessidades em relação ao mundo exterior.”  (Freud, em A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS, 1900).

Antoine de Saint-Exupéry
( 1900 - 1944)
Essa inocência é o que povoa o mundo dos sonhos num reencontro com a criança em cada um de nós. Muitas vezes me questionei se não foi disso que Antoine de Saint-Exupéry (1900 - 1944)  tratava em seu magnífico “Pequeno Príncipe”.

A recordação funciona como um reencontro onde a experiência é oferecida mais uma vez ao coração. Mas no reencontro parte dos elementos se mantêm invariantes como algo que permanece para promover a identificação no reconhecimento, entretanto uma outra parte dos componentes compartilhados se transforma. O reencontro dos discípulos com Jesus Cristo no terceiro dia, a Páscoa. Assim como nos lembra S. Lucas: “Assim está escrito que o Messias havia de morrer e ressuscitar dentre os mortos, ao terceiro dia” (Lc 24,46).

São Lucas
O reencontro pode ainda estar configurado sob emoções negativas e impossibilidade de simbolização.  Isso se dá por conta de experiências mal sucedidas onde o afastamento foi povoado de raiva (ódio) e incapacidade de afeto na tolerância quanto ao afastamento. O reencontro então possibilita reviver tanto momentos saudáveis de desenvolvimento, quanto as faltas e falhas, que talvez não tenham tido chances de serem melhor elaboradas. Assim surgem defesas ou o que chamamos em psicanálise de resistência. O reencontro com pessoas não tão queridas, ou com aquelas que não podem contribuir com afeto, sinceridade, e que muitas vezes contaminam e intoxicam, também propõe um novo olhar para um relacionamento que clama por nova chance de serem repensados, certificando a necessidade da distância.

Uma oportunidade de elaborar a imagem do outro que fica no eu. É uma chance então de se revelar o verdadeiro amigo: aquele que tivera chance de ser conhecido e reconhecido como uma imagem boa. A capacidade de se manter relacionado com alguém onde a combinação de afeto e sinceridade é o que permeia a comunicação e define a saúde da experiência. O momento internalizado ou do simbolizar faz com que possamos passar anos longe de alguém sem que esta imagem seja destruída em nós. Insisto no símbolo que permite conservar algo no coração mesmo na impossibilidade de confirmação com os órgãos dos sentidos. A confiança, mesmo depois de muito tempo, pode se manter.

“A con-fiança que significa fiança compartilhada, mantida pelas partes, nutrida pela fé e assim geradora da fidelidade. O fio que permite, depois do conhecer, ausentar-se para que assim no regresso seja possível o re¬conhecer.” (Martino, 2014)

Penélope
Na “Odisséia de Homero”, o mito de Ulisses viaja por vinte anos e sua esposa Penélope passa a fiar, e a permanência deste fio (vínculo) é o que permitiu a espera e trouxe seu amado de volta. Durante os vinte anos, tanto um como outro estiveram expostos a vários ataques que ameaçavam este vínculo. A experiência que reúne amor e verdade, é onde se sedimenta um relacionamento de confiança, e isso é alcançado sempre com a boa convivência à demanda de anos.




Bion, W. R. Aprender com a Experiência. Imago, Rio de Ja¬neiro, 1991 (1962).
Freud. S. ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER, Imago - 1920.
Freud. S. INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS, 1900.
HOMERO - Odisséia, Tradução, Carlos Alberto Nunes. 2. ed. São Paulo: Ediouro, 2009.
Martino, R. D. O amor e a expansão do pensar : das perspectivas dos vínculos no desenvolvimento da capacidade reflexiva / 1. ed. - São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2013.






Prof. Renato Dias Martino
Psicoterapeuta e Escritor
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