segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

IDENTIFICAÇÃO OU AFINIDADE

Dentre os fatores que propiciam a ligação e também são responsáveis por manter vínculos afetivos, dois deles carecem de atenção cuidadosa, já que correm o risco de serem confundidos e até mesmo tratados como unívocos. Popularmente, o termo identificação é frequentemente usado como um sinônimo de afinidade, no entanto, quando são submetidos a experiência afetiva é então possível reconhecer grande diferença entre os dois conceitos.

Dentro das formulações psicanalíticas, a ligação por identificação é a forma mais primitiva de relação com o outro além do eu. O conceito de identificação vem do idem, que quer dizer “o mesmo” e que também é a origem da palavra “idêntico”. Sigmund Freud (1856 - 1939) nos orientou sobre isso em 1921, no seu célebre texto PSICOLOGIA DE GRUPO E A ANÁLISE DO EGO. "A identificação é conhecida pela psicanálise como sendo a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa." (Freud, 1921) Parece ser a única maneira que o bebê encontra para lidar com a quebra da ilusão de onipotência, na introdução da realidade de que existe alguém além dele. 

A ligação por identificação deve ser uma forma transitória de se relacionar com o outro, durante o período do desenvolvimento psíquico denominado narcisismo primário e que sucede o autoerotismo.  No autoerotismo, o bebê não é capaz de reconhecer a existência do outro, por mais que seja justamente o outro que provê e da manutenção à sua vida. Durante o período do autoerotismo, o bebê se auto satisfaz nas demandas libidinais, mesmo que seja através da mãe, da qual não é capaz de reconhecer como sendo outra pessoa. “Mostramos em outro ponto que a identificação é uma etapa preliminar da escolha objetal, que é a primeira forma - e uma forma expressa de maneira ambivalente - pela qual o ego escolhe um objeto.” (Freud, 1917) O narcisismo primário ocorre numa etapa que antecede a capacitação para a ligação objetal, que carece de maior tolerância às frustrações. Na ligação objetal é possível reconhecer o outro, efetivamente como sendo realmente outro, independente da expectativa do bebê. 

Em SOBRE O NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO, Freud traz a proposta de que: "As pulsões autoeróticas, contudo, estão ali desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao autoerotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo”. (Freud, 1914) Sendo assim, ao perceber com maior acuidade a presença da mãe, o autoerotismo vai se dissolvendo e dando lugar ao narcisismo primário, contudo, ainda reconhecendo o outro sem conseguir diferenciá-lo de si mesmo com tanta clareza. Aí se dá a ligação por identificação. Uma fase caótica, onde o ‘eu’ se confunde com o outro. Em conformidade com a semântica da palavra, essa é uma etapa do desenvolvimento emocional-afetivo que predomina a confusão. O termo confusão tem origem no latim, CONFUNDERE, “misturar”, formada por COM-, “junto”, mais FUNDERE, “derramar, fazer fluir”. Sendo assim, na ligação por identificação, o sujeito se mistura com o outro, onde uma personalidade tende a anular a outra, em detrimento da noção de limite.

Quando o sujeito, por algum motivo, é forçado a se afastar e ficar privado da presença sensorial do objeto do qual mantinha uma ligação por identificação, ocorre um quadro de empobrecimento da suposta autoestima, que se mantivera até então. Ocorre assim uma fragmentação na personalidade, que sem o objeto, não consegue se sustentar em sua integração. Isso acontece, pois o sujeito ainda não teve oportunidades favoráveis para que pudesse aprender a viver sem o objeto ora perdido. Em 1917, Freud denominou esse modelo de melancolia, que ocorre na impossibilidade de se viver o processo do luto. Esse estado mental ocorre quando não houve tempo e condições que propiciassem o desenvolvimento da relação por identificação para o modelo da ligação objetal. Nesse segundo modelo, existe maior capacidade para reconhecimento do outro em suas particularidades e maior desenvolvimento na autonomia do sujeito.

A partir das propostas de Freud, quanto à ligação por identificação, associada ao mecanismo de projeção, também proposto pelo pai da psicanálise, Melanie Klein (1882 - 1960), propõe, em seu texto NOTAS SOBRE ALGUNS MECANISMOS ESQUIZÓIDES, o mecanismo de identificação por projeção. Para Freud, com o mecanismo de defesa da projeção, busca-se a origem do desprazer, no mundo exterior, já que o sujeito não suporta reconhecer como próprio. “Uma percepção interna é suprimida e, ao invés, seu conteúdo, após sofrer certo tipo de deformação, ingressa na consciência sob a forma de percepção externa.”  (Freud, 1911) Freud propõe que a projeção é uma defesa de origem primitiva, peculiar dos casos de paranoia, porém, também está presente no funcionamento saudável, assim como ocorre com a ligação por identificação. A partir daí, Klein expande a ideia para desenvolver o conceito de identificação projetiva. “Consiste na fantasia primitiva de expulsão de substâncias perigosas do self para dentro da mãe.” (Klein, 1946)  

Junto com as evacuações, partes escindidas do ego são também projetadas na mãe ou, para dentro da mãe. Isso implica num empobrecimento do eu. 

No texto SOBRE A IDENTIFICAÇÃO, Klein expande sua proposta. "Identificação por projeção implica uma combinação de excisão de partes do self e da projeção dessas em (ou melhor, para dentro de) outra pessoa.” (Klein, 1955) Com isso, o outro adquire características do sujeito, potencializando a fusão. "O objeto torna-se em alguma medida um representante do ego e esses processos são, a meu ver, a base para a identificação por projeção ou 'identificação projetiva'." (Klein, 1952).

Enquanto que para Melanie Klein, a identificação projetiva incidi num mecanismo evacuatório defensivo, para Wilfred Bion (1897 – 1979) em APRENDENDO DA EXPERIÊNCIA, identificação projetiva é a forma mais primitiva de comunicação do bebê na relação com a mãe. Bion chamou de rêverie, uma característica da função-alfa da maternágem que deve dar conta de conter e transformar os conteúdos projetados pelo bebê. 

“Rêverie, usado nessa estrita acepção, é aquele estado de mente que está aberto à recepção de quaisquer “objetos” provenientes do objeto amado e que, portanto, é capaz de receber as identificações projetivas da criança, independentemente de a criança senti-las como boas ou más.” (Bion, 1962)

A mãe, quando continente, é capaz de rêverie, convertendo elementos-beta (caóticos, desordenados, desconectados) em elementos-alfa (digeríveis, integráveis, pensáveis) pela função-alfa. “Em suma, rêverie é um fator da função-alfa da mãe.” (Bion, 1962) Para a mãe, propiciar função-alfa para o bebê, ou ainda, para um psicoterapeuta se dispor a esse modelo com seus pacientes é provavelmente possível, no entanto, nas relações corriqueiras do cotidiano, entre adultos, passa a ser inviável. 

Hanna Segal (1918 - 2011), psicanalista seguidora de Melanie Klein, chama a atenção para a tentativa de controle ocorrente na experiência da fusão com o objeto. “Na identificação projetiva, partes do eu (self) e objetos internos são expelidos (split off) e projetados no objeto externo, o qual então, se torna possuído e controlado pelas partes projetadas, identificando-se com elas.” (Segal, 1964) Portanto, metaforicamente, nesse modelo de vínculo, é como se uma só alma habitasse dois corpos. Um prolongamento da configuração da fusão umbilical, ocorrente na vida intrauterina. 

Na incapacidade de elaborar o luto, fica impossibilitado o processo de simbolização do objeto perdido. Assim, predomina o que Hanna Segal chama de equação simbólica, onde o símbolo se iguala ao objeto original, que despertou a carga afetiva. O símbolo (interno) se confunde, equalizando-se com o objeto no nível sensorial (externo) e são percebidos idênticos a ele. A distinção entre o eu e o outro, fica obscurecida. “Então, já que uma parte do ego é confundida com o objeto, o símbolo – que é uma criação e função do ego – torna-se, por sua vez, confundido com o objeto que é simbolizado.” (Segal, 1983).

Mesmo na vida adulta, cada início de relação, com algo, ou alguém novo, estará, inevitavelmente, repleta de características de identificação. Nos aproximamos das pessoas e coisas do mundo, muito mais pelo que projetamos nelas, do que por características delas próprias. No entanto, para que se configure num vínculo saudável é imperioso que as características de identificação possam ir se dissolvendo, dando lugar para formas mais nobres e amadurecidas de relação. Quando a ligação por identificação se estende para além de uma configuração transitória, se instalando como fixação, passa então a manifestar características ambivalentes, gerando confusão, fusão com o outro, logo arma-se um ambiente de inveja, rivalidade e disputa. Portanto, aquilo que até então seria fator de ligação, torna-se em elemento de conflito.

Diferente da ligação por identificação, onde ocorre a equação simbólica, num vínculo por afinidade, ocorre o que poderíamos chamar de analogia simbólica, que abrange igualdades, mas também inclui diferenciações. Contudo, para que possa haver um vínculo por afinidade é necessário que se respeite o limite das partes. Assim como na semântica, a palavra afinidade vem do latim AFFINIS, “vizinho, contíguo”, de FINIS, “fronteira, limite, fim”. Para que haja afinidade é imperioso que as partes sejam capazes de reconhecer e respeitar seus limites, já que o limite é o que permite que duas coisas existam sem que uma anule a outra, numa fusão (confusão) com ela. 

Quando a ligação por identificação não está na ordem do transitório e se instala como fixação, não há possibilidade de crescimento, pois dois iguais não acrescentam nada. O ambiente de crescimento passa a existir quando, num clima de concórdia, as diferenças se perfazem, enriquecendo cada parte. Assim como o músico, quando afina as diferentes cordas do seu instrumento, colocando-as num acordo, mesmo cada uma soando notas diferentes, juntas promovem harmonia. Quanto maior for a fidedignidade de uma corda em relação sua própria nota, mais integrada ela estará com a outra, numa harmonização do todo. A saber, a palavra acordo vem do latim accordare, “estar em harmonia”, a junção ad, que significa “a, para”, mais cor, “coração”. Sendo assim, estar de acordo é, literalmente, dar ao coração. Tratamos de amor verdadeiro, que assim como na afinidade, inclui semelhanças, mas também abrange diferenças.

A partir da analogia da afinação do instrumento, passa ser possível nos aprofundarmos e expandirmos nas formulações religiosas, onde, no evangelho segundo Mateus, Jesus propõe: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a alma e de todo o teu entendimento. Este é maior e o primeiro mandamento. O Segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Toda a Lei e os profetas dependem destes dois mandamentos.” (Mt. 22, 37-30). Ora, as cordas do instrumento devem manter um acordo, afinadas conforme certa tonalidade em comum, que assim, passa a manter a harmonia entre elas. 

Fica enriquecido o que quer que seja a realizado na relação por afinidade, assim como o próprio vínculo que se enriquece a cada realização. Num vínculo de afinidade, se mantém a identidade das partes, que assim podem se complementar, já que uma traz aquilo que não há na outra. Isso aponta para um modelo mais amadurecido de relação. No vínculo por afinidade não existe espaço para rivalidade, já que as diferenças evidentes nas partes se complementam, num modelo de casamento, que de forma profícua, tende a gerar o novo. 

Por outro vértice, o convívio em ambientes de vínculos pobres ou ausentes de afinidade, quando se estende por longos períodos, pode se tornar nocivo ao ponto de se adoecer no âmbito emocional. Quando se é submetido a coexistência por tempo prolongado num formato de vínculo que não exista afinidade, pode haver desgaste emocional e empobrecimento afetivo. Isso ocorre, pois nessa situação, o aparelho psíquico carece de muita energia para gerar defesas. Passa a haver grande demanda para alimentar o falso eu, que se ergue, tentando proteger o eu verdadeiro. O sujeito se vê obrigado a dissimular para evitar conflitos, já que, sem afinidade o ambiente de concórdia fica sempre ameaçado. A energia psíquica que, em uma situação favorável, poderia ser investida em realizações e no cultivo de vínculos saudáveis, fica então comprometida com defesas. Isso empobrece o funcionamento psíquico, desestrutura a possibilidade de um pensar profícuo e obstrui o funcionamento emocional e afetivo saudável.

BION, W. R. O APRENDER COM A EXPERIÊNCIA. 1962 - Rio de Janeiro: Imago, 1991.

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