sábado, 19 de dezembro de 2009

A memória da perda

Já tivemos, em outra oportunidade, a chance de pensarmos sobre a distinção entre o “saudável” e o “prazeroso”.  Contaremos com os argumentos cogitados nessa ocasião para abrirmos o assunto contido no texto aqui presente. Já que falaremos de experiências emocionais de cunho um tanto quanto desconfortáveis, contudo de extrema necessidade se a intenção a priori é a de classificarmos um modelo de desenvolvimento da mente, expansão do pensamento logo, da qualidade do vínculo que se pode ter com pessoas e coisas.


Arthur Schopenhauer 
(1788-1860)
Se partirmos de certo intento onde como propõe o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) a angústia suscitada pelo medo da morte é a expressão máxima do sofrimento humano, então talvez fosse um tema digno de cogitação aquele cujo objeto parte das emoções geradas conforme a consciência sobre a decadência e a morte. Um saber que da ao humano o título de homo sapiens. O sabedor de sua vulnerabilidade e mortalidade, assim como referente a aquele que ele ama. Certo conhecimento mobiliza o mundo interno e cobra alguma ação psíquica no intuito de diminuir ou amenizar o efeito da descarga libidinal gerada nesse contato com a verdade. Verdade essa referente à incontestável realidade humana ou até mesmo a realidade de todo e qualquer ser vivo. A mesma angústia que ocorre aos deuses, assistindo-nos do Olímpo. Contudo, de forma inversa e velada, talvez os deuses invejem-nos a possibilidade de descansarmos um dia da obrigação do mortal em manter-se vivo, mesmo cônscio da imutabilidade do fato da morte.

Sigmund Freud 
(1856-1939)
De qualquer forma, a geração de ansiedade frente á idéia do desamparo, declínio e morte é um recurso natural do aparelho mental. A introdução dessa realidade no âmbito do funcionamento psíquico não é um processo simples. De forma hipotética, poderíamos aqui levantar algumas possibilidades de desenlace dessa experiência. Uma delas, e a que me parece ser a mais primitiva, é aquela em que o sujeito do conhecimento do real, automaticamente pronuncia a ação física. Ao ser inundado pela angústia, parte logo para ação (no mundo externo) no intuito de aplacar o desconforto gerado. A falta de recursos mentais mais aprimorados e a incapacidade de conter impulsos fazem o bebê espernear e berra quando se sente assim angustiado. Em uma linguagem psicanalítica, nesse caso a pulsão de morte é direcionada para fora do eu (em direção ao outro). Um segundo modelo seria aquele em que o sujeito, ao perceber a ineficácia da ação mecânica em conter os impulsos, o reprime, e submerso na desesperança, desiste da atuação. A partir daí, sob a regência desse modelo de funcionamento a pulsão de morte volta-se para o eu (para dentro). Como na melancolia descrita por Sigmund Freud (1856-1939) em 1917, o sujeito desse funcionamento sente como irremediável o prejuízo dessa realidade pairando sobre o eu. Como se a partir da ciência do real, nada mais despertasse seu interesse a não ser a fantasia (que exclui o próprio real). Estes dois modelos têm a função exclusiva de afastar o desconforto psíquico e estão enquadrados num funcionamento mental do qual Freud denominou em 1911 como principio do prazer-desprazer.

Um terceiro modelo e o que nos interessa sobre medida nesse momento, é justamente aquele que faz pensar. O que implica para Freud (1911), a entrada do principio da realidade. O que permite adiar certas ações através da contenção do impulso que assim ganha à chance de transformar-se em pensamento simbólico. A capacidade mental em tolerar desconfortos é que proporciona o que chamaríamos de continência psíquica e definirá o norte dessa experiência com o real. Contudo, conter emoções desse calibre, de maneira saudável, exige essencialmente criatividade. A consciência do nascimento e morte obriga a criação de um espaço entre esses dois fatos. Justamente a subseqüência de um processo do qual aprendemos chamar de “vida”.



Gradiente evolutiva

Se depois de pensarmos nesses modelos de formação psíquica, estamos de acordo, e até aqui nos faz certo sentido em comum, podemos então desenvolver a idéia de uma escala evolutiva do pensar. Uma escala onde podemos até tentar eleger um ponto de partida, contudo, assim como seu apogeu, ele nunca coincidirá com idéias acabadas ou saturadas em sua dimensão. Estamos falando do percurso seguido pelo elemento mais primitivo da mente rumo ao seu desenvolvimento, ou mais adequadamente falando, sua expansão. Um impulso gerador de fantasias no contato com a consciência da perda. Podemos sugerir talvez, a sensação gerada pelo contato com aquilo que se é capaz de chamar de realidade, como ponto de partida e a formação da idéia simbólica (a saber, a capacidade de tolerar a ausência do real sensorial), como pretensão de objetivo a se alcançar. Parece-me que isso definirá algumas experiências que se possa viver com a memória da perda e ainda o que isso pode representar. Algo como prejuízo na estrutura do ego (personalidade), ou no extremo oposto, vitória e superação de limites e consequentemente fortalecimento e expansão do eu?

Joseph Breuer 
(1842-1925)
De qualquer forma, a ideia ou o pensamento simbólico, se manifesta na capacidade de relatar em palavras a história da própria vida, já que transformar fatos em palavra exige certa habilidade simbólica. Foi a partir desse modelo que Freud abandonou o método catártico da hipnose. Em 1891, Freud publica “Contribuições à Concepção das Afasias”, obra que firmar, categoricamente, o rompimento com as hipóteses sobre os “estados hipinóides” e o método catártico de Joseph Breuer (1842-1925). O pai da psicanálise começou a perceber e a partir dessa percepção passou a criar instrumentos para identificar no discurso de seus pacientes a parte da mente que exigia cuidado.


Assim, podemos mensurar a dimensão da importância da memória da perda assim como a necessidade de nos tornarmos consciente dela para o bom funcionamento mental. Cada iminência de perda remete á experiências de sensação de desamparo ocorrida num tempo onde o acolhimento, sensação de segurança, ou de se sentir contido num ambiente saudável, eram a única maneira e justamente, o que definiria a sensação de estar vivo. A confusão do que é a morte da abstração e o que é a morte efetiva.

Renato Dias Martino
Psicoterapeuta e Escritor
Fone: 17-30113866
renatodmartino@ig.com.br

Nenhum comentário: