Esse ensaio é uma
proposta de reflexão sobre o conceito de contemplação na busca pela expansão
daquilo que está compreendido na capacidade afetivo/emocional. O conceito de
contemplação, que é foco dessa reflexão, indica uma manifestação da ampliação
da capacidade de estar de acordo com a realidade do eu, e sendo assim é sinal
da possibilidade do acordo com a realidade última, numa integração com a
natureza das coisas.
Também na perspectiva
do desempenho da prática psicanalítica a contemplação aparece como elemento de
expansão. Quando nos propomos a refletir sobre a contemplação estamos diante de
uma experiência perfeitamente adequada à aplicabilidade psicoterapêutica da
psicanálise. Assim como numa obra de arte, que
mesmo retratando uma situação triste, ainda assim existe certa beleza a
ser contemplada. Do mesmo modo que uma música triste pode despertar emoções
dignas de contemplação. Também uma sessão de psicanálise, por mais que seja
triste e dolorosa deve ser bela e adequada à contemplação.
Entretanto, a
experiência da contemplação enfrenta normalmente, no mundo contemporâneo, uma
serie de ameaças, que vão desde a escassez de tempo pela demanda financeira,
até a ridicularização feita por aqueles que zombando do contemplador, se acham
superiores estando sempre tão ocupados com 'sabe-se lá o que'. Assim, por conta
dos afazeres, na pendência da materialidade, onde o sujeito se vê obrigado a
correr como um louco a angariar dinheiro para dar conta de inúmeras cotas que
na realidade muito pouco é capaz de questionar se realmente necessita ou no
mínimo, indagar se isso ainda faz sentido na sua vida, o sujeito muitas vezes
nem pode reconhecer a importância ou mesmo o que significa a capacidade de
contemplação.
Na dimensão da
psicanálise a proposta da capacitação contemplativa configura-se então num
campo mais delicado ainda. A busca pela cientifização, que poderia sugerir um
ar de credibilidade pode fazer com que o conceito de contemplação pareça não
confiável ou mesmo uma perda de tempo na prática psicanalítica. A pressa no
diagnostico, assim como a urgência na suposta solução breve dos problemas de
ordem emocional fazem gerar teorias e metodologias psicológicas que se
distanciam muito da proposta contemplativa. De qualquer forma, a busca por
cultivar experiências como as de meditação e contemplação acaba por se tronar
uma tarefa quase impossível para aquele que vive num mundo como o nosso, onde
tudo deve acontecer muito rápido, assim como o sinal que movimenta a internet.
Ora, com pressa não se contempla nada. Vivemos num tempo onde a tolerância às
frustrações parece não ser algo muito desenvolvido e a paciência parece rara.
Assim como coloca o psicanalista Walter Trinca "Todo o planeta parece estar mergulhado na poeira de um vendaval
que obscurece os valores sagrados do espírito, semeando incompreensão, confusão
e destruição." (Trinca, 1997). Assim, esse ensaio tem o intuito de
atentar para a necessidade de buscarmos a paz interior no desenvolvimento de
meios mais serenos de se viver, que se desdobrem às práticas cotidianas desde
às experiências afetivas até a prática profissional, seja ela qual for.
A contemplação está
presente em inúmeras áreas do pensamento humano, desde as formas mais
primitivas até os modelos mais nobres e evoluídos. Apesar disso, para que esse
conceito seja genuíno é imprescindível que possa contar com a inocência no
encontro com o que há de mais brando na naturalidade do ser. Quando um bebê em sua total ingenuidade, olha
fixo nos olhos da mãe dedicada e possuída por seu instinto materno a amamentá-lo,
realiza-se então de forma recíproca, a experiência da contemplação. Na plena
candura de completa simplicidade, ele se vê nos olhos dela como se numa
extensão de si mesmo e ela o contempla como a dádiva que concebeu, admirando no
rosto dele a realização de sua geração. Num momento de conexão com o todo no
mundo é que a contemplação se realiza,
sendo assim uma propriedade de Eros. Numa experiência de ligação de profundo
amor e dependência, assim como quando estamos integrado à natureza das coisas,
plenos em nossa existência. Quando livres de interferências defensivas e
desobstruídos de padrões pré-estipulados, podemos contemplar os atributos da
mãe natureza assim como o bebê puro o faz junto da mãe dedicada.
Mestre Patanjali |
Mestre Padmasambhava |
Santa Teresa de Ávila ( 1515 — 1582) |
Sendo a atitude
contemplativa equivalente ao amor, não é possível alcançar essa experiência sem
que exista uma dedicação à purificação do afeto e entrega na relação que seja
digna dessa ordem de experiências. A capacidade afetiva começa ser contaminada
desde a mais tenra infância, quando começamos a ter de abandonar o que
realmente somos para passar a ser aquilo que esperam que nos tornemos.
Contaminação essa que contribui para uma visão dualista de mundo, obstruindo a
possibilidade de desenvolvimento da contemplação, que necessita de integração.
Mestre Eckhart (1260 – 1328) |
Apesar disso, a
intenção dessa abordagem do tema da contemplação não é a de um discurso do
idealizado, numa quase inalcançável prática contemplativa, restrita aos monges
e mestres privados da vida do cotidiano das cidades e confinado em seus
mosteiros, mas a proposta aqui está na possibilidade diária de momentos de
despojamento das materialidades e entrega num olhar poético para as coisas simples
da vida. Ainda, a contemplação aqui cogitada não diz respeito ao empenho
intelectual, mas a uma atitude lúdica de reencontro consigo mesmo, onde a
compreensão racional não consegue alcançar.
Assim como em seu belo texto
Escritores Criativos e Devaneio , Sigmund Freud (1856 - 1939) afirma que: "Afinal, os próprios escritores criativos gostam de diminuir a
distância entre a sua classe e o homem comum, assegurando-nos com muita
frequência de que todos, no íntimo, somos poetas, e de que só com o último
homem morrerá o último poeta." (Freud, 1908)
Sigmund Freud (1856 - 1939) |
Na psicanálise amiúde
encontramos o conceito de contemplação como sendo uma capacidade que incide na
extensão da relação consigo mesmo, no resultado da expansão da maturidade
emocional. A contemplação da qual proponho reflexão aqui está na ordem do
reconhecimento de si mesmo através do reconhecimento do belo no mundo.
No seu
artigo Sobre a Identificação (1955/1969), Melanie Klein (1882 —1960), se
utiliza da estória " If I Were You " (em português: Se eu fosse você)
de autoria do romancista francês Julian Green
(1900 —1998), que foi um escritor religiosos de orientação católica,
para descrever uma forma muito especial de contemplação.
Melanie Klein (1882 —1960) |
Julian Green (1900 —1998) |
Klein interpreta ainda
que a insistente contemplação do personagem Fabian para com as estrelas seria
uma tentativa de recuperar seus objetos bons, que sente perdidos ou distantes.
Para tanto a que se disponibilizar a mente para que seja possível atingir o
desapego das futilidades que obstruem a chance contemplativa, acessível a todo
aquele que humildemente se coloca a disposição dessa experiência.
"É
preciso quebrar a casca
se quisermos extrair
o que contém.
Pois se você quer o cerne, é preciso romper o invólucro.
Assim, se você quer descobrir a
nudez da natureza,
é necessário destruir
seus símbolos e quanto mais
você penetrar dentro", tanto
mais próximo estará
da essência: Quando chegar ao Uno, que reúne e concentra em si todas as
coisas, aí você deve permanecer". (Eckhart,1941).
O bebê encontra-se
puro, totalmente entregue a mãe dedicada e isso permite a eles viverem uma
relação de entrega total numa experiência mutua de contemplação. No entanto
momentos de contemplação, nem sempre são possíveis. Mesmo na relação mãe/bebê,
assim como Melanie Klein ainda nos ensina, em sua obra “Inveja e Gratidão” de
1957, esses momentos de integração são intercalados por experiências de não
integração numa intensa impossibilidade de harmonia vincular. A contemplação
pura em que o bebê recebe a mãe acontece quando seu aparato sensorial está
disponível e se coloca de forma aberta e arranjada, já que a quantidade de
fatos armazenados na memória do bebê é mínima.
Bem, conforme a maior frequência de experiências bem sucedidas com a mãe, que resultem em acolhimento, vão sendo registrados símbolos de paz e tranquilidade, referentes aquilo que foi vivido com ela. Isso se dá num reconhecimento de sua bondade e dedicação à ele e assim também se amplia a capacidade de contemplação e com isso desenvolve-se o desejo de retribuição. Porém, quando o objeto de desejo do bebê (a mãe) se mostra inacessível, a inveja se intensifica e a capacidade de contemplação fica comprometida. Dessa maneira, fica claro que a capacidade de contemplação está diretamente ligada às capacidades de gratidão. Disponibilizar o aparato sensorial para a contemplação é ser capaz de desapegar-se das experiências sensoriais anteriores e dirigir uma novo apreciação daquilo que se contempla, num olhar com bons olhos.
Bem, conforme a maior frequência de experiências bem sucedidas com a mãe, que resultem em acolhimento, vão sendo registrados símbolos de paz e tranquilidade, referentes aquilo que foi vivido com ela. Isso se dá num reconhecimento de sua bondade e dedicação à ele e assim também se amplia a capacidade de contemplação e com isso desenvolve-se o desejo de retribuição. Porém, quando o objeto de desejo do bebê (a mãe) se mostra inacessível, a inveja se intensifica e a capacidade de contemplação fica comprometida. Dessa maneira, fica claro que a capacidade de contemplação está diretamente ligada às capacidades de gratidão. Disponibilizar o aparato sensorial para a contemplação é ser capaz de desapegar-se das experiências sensoriais anteriores e dirigir uma novo apreciação daquilo que se contempla, num olhar com bons olhos.
"Reconhecer
tanto por ser grato, quanto como no desenvolvimento da capacidade de se
desvencilhar de dados armazenados na memória e propor-se a conhecer novamente.
A mãe/continente reconhece o bebê em cada encontro, grata pelo presente que
recebeu da vida. O bebê aos poucos vai reconhecendo a bondade da mãe e, grato,
tenta retribuir. Com a autoconfiança, resultado do autoreconhecimento aprendido
na relação com a mãe - por ter sido reconhecido por ela - o bebê posteriormente
poderá expandir-se num bom vínculo com o mundo, para além do vínculo primitivo
com a mãe, onde o pai ainda é uma expectativa sem experiência externa."
(Martino, 2015, pg.78)
A partir da realidade
física, desenvolve-se a capacidade sensorial que então abre a possibilidades da
ampliação da realidade com suas características superficiais para a expansão na
pneumática supra sensível à realidade simbólica, que permite a capacidade de
contemplação na realidade ultima do 'estar sendo'. Aquilo que se mantém dentro
da perspectiva da contemplação não pode compor-se simplesmente dos dados
armazenados na memória, através da captação dos órgãos dos sentidos, mas se
encontra para além disso, na possibilidade da recordação. "A recordação, diferente da
memória, que necessita ser caçada e capturada, emana espontaneamente, ungida de
afeto, num dar novamente ao coração."
(Martino, 2015, pg.92). Num movimento de ver com o coração, a
contemplação parte da capacidade afetiva e isso pouco tem haver com padrões
pré-estipulados, justamente o que poderia fazer parte dos compartimentos da
memória. A capacidade contemplativa está diretamente ligada à capacidade de
simbolização e o símbolo é criado a partir de referenciais afetivamente
saudáveis. Assim como a raposa de Antoine de Saint-Exupéry (1900 - 1944) no “Pequeno Príncipe”, aprende a contemplar
os campos de trigo, que antes não importava a ela, por recordarem o
principezinho que havia partido.
“Vês,
lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim não vale nada.
Os campos de trigo não me lembram de coisa algu¬ma. E isso é triste! Mas tu
tens cabelos doura-dos. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O
trigo, que é dourado, fará com que eu me lembre de ti. E eu amarei o barulho do
vento no trigo...” (Saint-Exupéry, 1943).
A imagem de uma mulher
idosa por exemplo, pode ser muito mais adequada à contemplação do que uma jovem
maquiada e muito bem arrumada. Isso pois a contemplação acontece independente
das características de valor palpável, mas se estabelece através de algo que
transcende a materialidade das coisas. A estética contemplativa se encontra num
nível independente de julgamento e próximo do silencio interior.
Wilfred Bion (1897 - 1979) |
"Não
podemos nos dar o luxo de botar de lado as conjecturas imaginativas, com o
argumento de que elas não são científicas — você poderia também jogar fora a
semente de uma planta, com a justificativa de que não é um carvalho ou um
lírio, mas apenas lixo. Isso se aplica a tudo que ocorre no consultório. Mas eu
digo que valeria a pena considerá-lo não o seu consultório; e, sim, o seu
ateliê. Que espécie de artista é você? Um ceramista? Um pintor? Músico?
Escritor? Na minha experiência, um número enorme de analistas não sabe que tipo
de artistas são." (Bion, 1986)
Assim como coloca em
sua obra As Transformações, de 1965, Bion inclui numa só categoria todas as
manifestações do pensamento humano possíveis de evolução para a contemplação,
também a psicanálise deve se enquadrar nessa classe, na expansão da mente em
direção à realidade ultima.
Wilfred Bion (1897 - 1979) |
Bion privilegia o
silêncio, que assim como no artista permite a intuição contemplativa,
simultaneamente união e admiração silenciosa da contemplação. Bion denominou At-One-Ment (estar-uno-a), a experiência
do acordo com ser compassivo, termo que é derivada do termo religioso atonement,
que por sua vez significa redenção, reconciliação, concórdia. A possibilidade
de estar-uno-a, assim como coloca Bion, no capitulo Realidade Sensorial e
Psíquica, de sua obra Atenção e Interpretação, é fundamental para que seja
possível passar do nível do saber "K", para o nível do ser
"O".
"Nenhuma
descoberta psicanalítica é possível sem que haja um reconhecimento de sua
existência, evolução e um "estar-uno-a-ela". Os místicos religiosos
provavelmente foram aqueles que chegaram mais perto de conseguir expressar a
experiência da verdade absoluta. Sua existência é igualmente fundamental para a
ciência e para a religião. De modo inverso, a abordagem cientifica é tão
necessária para a religião como oo è para a ciência, e tão ineficaz quanto, até
que ocorra uma transformação K > O"."
(Bion, 1970/2007, p.g.44)
Bion se utiliza do
termo At-One-Ment no sentido da
compaixão, a comunhão possível entre a mente do analista e a do paciente,
propiciando a presença da realidade última. Porém, para se atingir esse estado
de contemplação é necessário restaurar o equilíbrio numa reparação dos danos
causados pela saturação dos órgãos dos sentidos, que com intensidade aguçados,
não permitem a possibilidade de transcendência da apreensão. A reintegração das
partes da personalidade carece de reconciliação consigo mesmo para tornar-se
inteiro novamente. A busca de um esvaziamento da mente, numa diminuição
drástica da memória, do desejo e ânsia pela compreensão se dispondo a um novo
olhar curioso, respeitosamente interessado e contemplativo sobre aquilo que se
observa.
A contemplação acontece
sempre no tempo presente, assim, não
pode se realizar no passado, muito menos no futuro. "Podemos considerar as memórias como possessões; diz-se que os
desejos - embora situados "na" mente da mesma forma que as memórias,
e, portanto, sendo igualmente "possessões" - "possuem" a
mente." (Bion, 1970, p.g. 47).
Esse estado de não saturação da mente é representado por Bion pela noção de “capacidade negativa”, na possibilidade
de permanecer num estado de dúvidas e incertezas, sem apressar-se nas formações
de significados.
O termo aparece em 1970 no livro Atenção e Interpretação, e
foi extraído por ele de uma carta escrita pelo poeta inglês John Keats (1795 -
1821). Para Bion a capacidade negativa deve ser utilizada como um modelo de
abordagem para seus trabalhos. Se as pré-concepções do analista já estiverem
saturadas com o que se deve, ou se deseja encontrar, ele não tem como entrar em
contato com a experiência do momento presente, para que a mesma possa estar de
acordo com a realidade. Para Bion, "A
receptividade alcançada pela desnudação de memória e desejo (que é essencial à
operação de "ato de fé") é essencial para a operação de psicanálise e
outros procedimentos científicos." (Bion, 1970/2007, p.g. 40)
John Keats (1795 - 1821) |
Em Cogitações (1960-
1992), Bion revê o que propôs como conceito de função alfa, adicionando a necessidade do analista ‘sonhar’ o sonho
do analisando. A partir dessa proposta a
função revêrie permitiria a
contemplação estética e reflexiva da experiência emocional na sessão
psicanalítica. Contudo, para que isso seja possível é necessário que ocorra
profunda concórdia entre o analista e o analisando, estando ambos
suficientemente entregues à essa experiência emocional.
Bion não se poupou de resgatar sua origem indiana com todos ensinamentos meditativos e contemplativos, nos passa tempos de Sri Krsna contados a ele por sua babá indiana, sua querida Ayah, nos ensinamentos do Bhagavad Gita, a "Canção de Deus", assim como, mais tarde, buscou nos místicos São João da Cruz, Jan Ruysbroeck (1293 - 1381), que rebateu o formalismo intelectualista de sua época, Isaac Luria (1534-1572), emblemático medieval da Cabala, e Mestre Eckhart, na sua busca pelo desprendimento.
Bion não se poupou de resgatar sua origem indiana com todos ensinamentos meditativos e contemplativos, nos passa tempos de Sri Krsna contados a ele por sua babá indiana, sua querida Ayah, nos ensinamentos do Bhagavad Gita, a "Canção de Deus", assim como, mais tarde, buscou nos místicos São João da Cruz, Jan Ruysbroeck (1293 - 1381), que rebateu o formalismo intelectualista de sua época, Isaac Luria (1534-1572), emblemático medieval da Cabala, e Mestre Eckhart, na sua busca pelo desprendimento.
Entretanto, por maior
que seja o grau de maturidade e o alcance de evolução na expansão da
consciência, inúmeros fatores, além desses, devem contribuir para que essa
prática contemplativa se torne acessível e então seja possível a entrega à essa
ordem de experiências. Uma mente conturbada não pode ser capaz de contemplação.
O sentimento de culpa não elaborado pode ser um fator obstrutivo do
desenvolvimento dessa ordem de capacidades. Quando inundado pela culpa e sem
capacidade de se responsabilizar pelo fato do qual se sente culpado, o sujeito
pode julgar-se não merecedor daquilo que muitas vezes o rodeia. Dessa maneira,
o que seria digno de contemplação passa despercebido e assim fica desprezado do
olhar do possível contemplador. No entanto, não pode haver culpa no que está acima de todas as divisões.
Immanuel Kant (1724 - 1804) |
"Para
considerar algo bom, preciso sempre saber que tipo de coisa o objeto deve ser,
isto é, ter um conceito do mesmo. Para encontrar nele beleza, não o necessito.
Flores, desenhos livres, linhas entrelaçadas sem intenção sob o nome de
folhagem não significam nada, não dependem de nenhum conceito determinado e
contudo aprazem. A complacência no belo tem que depender da reflexão sobre um
objeto, que conduz a um conceito qualquer (sem determinar qual), e desta
maneira distingue-se também do agradável, que assenta inteiramente na sensação."
(Kant, 2005, p. 52)
Artur Schopenhauer ( 1788 — 1860) |
A inspiração de Schopenhauer para a contemplação deriva, além do estudo dos Upanishads, também das leituras de Platão e de Kant, que fundamentariam a elaboração e a compreensão de seu próprio pensamento. Apesar de buscar em Kant os conceitos de nôumeno ou da coisa-em-si, que constitui o incognoscível, inacessível ao conhecimento e o fenômeno (do Grego Phainomenon, “o que é visto, o que surge aos olhos”), que representa o empírico, na aparência das coisas, para o filósofo Shopenhauer a coisa-em-si é vista como vontade, que antecipa-se aos fenômenos e assim pode, então ser atingida por meio da contemplação estética. Assim, também, em relação a Platão, a vontade é a ideia si mesmo e antecipando as percepções sensíveis, sendo arte, por exemplo, um meio para contemplação das ideias.
"
Esta transição possível, porém, sempre excepcional, do conhecimento comum de
coisas individuais, ao conhecimento da ideia, ocorre de modo repentino, ao
arrancar-se o conhecimento ao serviço da vontade, por cessar precisamente o
sujeito de ser meramente individual, tornando-se agora sujeito puro do
conhecimento, destituído de vontade, não mais se ocupando, conforme o princípio
de razão, das relações; mas repousando e sendo absorvido na contemplação firme
do objeto oferecido fora de quaisquer conexões com outros."
(Schopenhauer, em O Mundo Como Vontade e Representação, Livro III, #34).
A arte, em Schopenhauer
pode ser capaz de reportar as ideias eternas, sendo acessadas por meio da
contemplação, agindo independente do principio da razão, que busca seu valor
nas materialidades das coisas práticas da vida. Para Schopenhauer, através da
arte é possível uma superação da dualidade sujeito-objeto. Pela capacidade de
contemplação profunda da experiência estética, a distinção entre o si mesmo e o
objeto contemplado passam a constituir uma unidade: o cerne comum que é
compartilhado.
"Como
vontade, fora da representação e de todas as suas formas, ela é uma e a mesma,
no objeto contemplado, e no indivíduo que, elevando-se por esta contemplação,
se torna consciente de si como puro sujeito; estes dois por isto não são em si
diferenciáveis, pois em si são a vontade que se conhece a si mesma, e é somente
do modo pelo qual este conhecimento se lhe constitui, i.e. somente no fenômeno,
graças à sua forma, o princípio de razão, multiplicidade e diversidade." (Schopenhauer,
em O Mundo Como Vontade e Representação, Livro III, #34).
Essa experiência
descrita pelo filósofo, que segundo Freud, mais contribuiu para a estruturação
do pensamento psicanalítico, é representada de forma bela na relação entre o
bebê fixo no olhar da mãe dedicada. Schopenhauer ainda distingui o homem comum
do gênio, justamente na disponibilização do gênio para o olhar contemplativo
enquanto o homem comum busca na investigação e dedução seu encontro com as
coisas do mundo. O humano comum, para Schopenhauer busca o conhecimento através
de uma lanterna que ilumina o caminho, mas gênio tem o sol que revela o mundo,
trazendo a marca da intuição, da contemplação.
"...e
a essência do gênio consiste justamente na capacidade predominante para tal
contemplação: como esta requer um esquecimento completo da própria pessoa e de
suas relações; assim a genialidade nada mais é do que a mais perfeita
objetividade, i.e. orientação objetiva do espírito, contraposta à subjetiva,
dirigida à própria pessoa, i.e. à vontade."
(Schopenhauer, em O Mundo Como Vontade e Representação, Livro III, #36).
No entanto, a grande
dificuldade encontra-se em grande parte no fato de que a possibilidade de
desenvolvimento da capacidade contemplativa está distante das atividades do
cotidiano da maioria das pessoas. Se dispor à essa ordem de experiências
representa uma parada catastrófica numa quebra do ritmo desenfreado do
cotidiano, que está focado na busca pela materialidade das coisas. Por conta
disso é sentida à princípio como desagradável, na maioria das vezes. Nessa
questão a religiosidade pode surgir como um recurso eficaz na busca pela paz
interior. Assim como no verso 33 do Bhagavad Gita, onde Arjuna diz:“Kṛṣṇa, esse Yoga que foi ensinado por você
como igualdade; eu não vejo a existência firme dessa igualdade devido à
inconstância da mente”. E no verso
seguinte diz: “Pois a mente é
inconstante, atormentadora, poderosa, obstinada, ó Kṛṣṇa! Eu considero o
controle da mente tão difícil como o controle do vento”. Kṛṣṇa, então
responde ao guerreiro, no verso 35: “Sem
dúvida Arjuna, a mente é inconstante e difícil de ser controlada. Porém, ó
Arjuna,a través da repetição e do desapego, ela é disciplinada”.
A contemplação está
simbolicamente ligada ao olhar; olhar com bons olhos, sendo que seu inverso se
encontra na inveja que leva a olhar com maus olhos, no termo popular do mau
olhado. Pelo fato de que a contemplação está associada ao olhar, assim como,
olhar alguma coisa com atenção e cuidado, quando nos encontramos num movimento
de ciclo vicioso, em busca de adquirir e acumular bens materiais, o olhar não
estabelece contato contemplativo e não pode cria envolvimento, simplesmente não
vê. O ato de contemplação refere-se a capacidade de respeitar e a etimologia da
palavra nos orienta quando propõe que o termo vem do "Latim respectus, particípio passado de respicere, “olhar outra
vez”. Do re, “de novo”, mais specere, “olhar”: a ideia é de que algo que merece
um segundo olhar em geral merece respeito." (Martino, 2013, p.g. 57).
Na supervalorização do "ter" olhar o mundo com respeito se torna
incomum e infrequente e finalmente impraticável. Da mesma maneira, nosso mundo
interno fica privado desse olhar e tende a definhar, ausente de amor, respeito
e atenção. Isso pois, o olhar que dirigimos ao mundo externo reflete a forma
como olhamos para nós mesmos.
Em outra oportunidade
pude ensaiar sobre a reflexão de 'Como
Fazer Uma Leitura Proveitosa' e então propus que:
Fazer Uma Leitura Proveitosa' e então propus que:
"A
contemplação do conteúdo do texto é uma capacidade rara, e que não pode ser
aplicada a qualquer texto. Alguns textos trazem uma conotação poético-artistica
e permitem que o leitor desloque a leitura da busca cultural numa dimensão
contemplativa, tanto do conteúdo quanto da forma de escrita. Porém, a ânsia por
compreensão e a busca voraz pelo saber pode dificultar esse aspecto. Quando o
que se deseja é entender, muitas vezes, a contemplação se torna impedida."
(Martino, 2014)
|
"Quando
em 1873, ingressei na universidade, experimentei desapontamentos consideráveis.
Antes de tudo, verifiquei que se esperava que eu me sentisse inferior e
estranho porque era judeu. Recusei-me de maneira absoluta a fazer a primeira
dessas coisas. Jamais fui capaz de compreender por que devo sentir-me
envergonhado da minha ascendência ou, como as pessoas começavam a dizer, da
minha ‘raça’." (Freud em Um Estudo Autobiográfico,
1925 [1924])
Além disso, Freud
sempre se sentiu afastado da classe medico científica e a criação da
psicanálise, em grande parte, partiu desse sentimento de inadequação proposta
simplista de que o mal estaria no corpo físico.
"Fui
compelido, além disso, durante meus primeiros anos de universidade, a fazer a
descoberta de que as peculiaridades e limitações de meus dons me negavam todo
sucesso em muitos dos campos da ciência nos quais minha jovem ansiedade me
fizera mergulhar." (1925 [1924])
Romain Rolland (1866 — 1944) |
Ora, Freud tinha a
pretensão de compreender os sentimentos pelo olhar científico. A criação e
desenvolvimento da psicanálise, naquela época, sofria com essa necessidade de
atender à certos critérios científicos, caso contrario correria o risco de ser
desacreditada. Freud ainda reconhece que "Não
é fácil lidar cientificamente com sentimentos. Pode-se tentar descrever os seus
sinais fisiológicos." (Freud, 1930). Dessa forma a concepção freudiana
da religião não ultrapassa o plano da realidade psíquica, carecendo então de
outros pensadores, como Bion, trazer uma oportunidade de expansão para que a
psicanálise pudesse receber contribuições das formulações religiosas. Ainda
assim, mesmo que Freud relatasse sua dificuldade em reconhecer certa condição
dessa espécie em si mesmo, a criação e desenvolvimento da psicanálise nunca
poderia ter sido realizada sem uma grande capacidade contemplativa da natureza
psíquica.
"Mas,
se quisesse relatar meus próprios sonhos, a consequência inevitável é que eu
teria de revelar ao público maior número de aspectos íntimos de minha vida
mental do que gostaria, ou do que é normalmente necessário para qualquer
escritor que seja um homem de ciência e não um poeta."
(Freud, 1900)
Além do mais, Freud era
um grande apreciador da poesia e admirador de poetas como Shakespeare e Goethe, se utilizando amiúde
desses gênios da escrita contemplativa para ilustrar suas teorizações
psicanalíticas. Na realidade, a dificuldade da experiência da contemplação no
âmbito oceânico, me parece ser um problema na ordem do discurso e Bion nos
orienta em sua obra As Transformações quanto à dificuldade que temos nessa articulação, quando propõe que:
"É
mais fácil aceitar como verdadeiro que alguém não pode entender música ou não
pode entender pintura do que aceitar a existência de uma dificuldade semelhante
quando se considera o discurso. Mas, às vezes, penso que é assim: o próprio
meio do discurso não é compreendido." (Bion,
1965/2004, p.g. 78).
Assim, a palavra não
deve ser confundida com a coisa-em-se, assim como nos ensina Kant, já que como
nos orienta Bion, ainda em Transformações:
"A
palavra falada parece importante apenas por ser invisível e intangível; a
imagem visual, de modo similar, é importanteo por ser inaudível. Toda palavra
representa aquilo que não é – uma não-coisa; que deve ser discriminada do
nada." (Bion, 1965)
São João da Cruz
propõem a condição de maturidade emocional e espiritual, que dispensa as
certezas, das quais a ciência nos oferece, para que se esteja preparado para
passar da oração discursiva, para a configuração contemplativa da oração, que
então, seria solitária e silenciosa. Numa transformação das configurações dos
elementos da mente o desapego de tudo que até então ocupava os sentidos.
Despojar-se da ponderação do intelecto na racionalidade das coisas, em direção
da paz interior, na quietação e descanso. Nessa perspectiva os atos e
exercícios intelectuais são obstrutores da atenção dedicada e amorosa em Deus.
e
quedei-me não sabendo,
toda
ciência transcendendo.
Noite Escura - São João
da Cruz
Para São João da Cruz, a princípio a contemplação acontece de forma sutil, quase imperceptível. Para esse importante místico amplamente citado por Bion, a passagem da oração discursiva, para a oração contemplativa só pode acontecer após um longo período do que chamou de "noite passiva dos sentidos".
Assim fica claro que a
maturidade emocional é a condição fundamental para que a capacidade
contemplativa se expresse de modo pleno. Porém, é importante lembrar que maturidade
não constitui-se em termos de idade cronológica, logo, em qualquer idade é
possível desenvolver recursos para vivenciar momentos de qualidade
contemplativa, instantes de profunda integração e harmonia na universalidade do
sentimento. Esta universalidade subjetiva realiza uma espécie de senso comum,
numa comunhão de sentimentos que aproxima a humanidade.
Bion, W. Atenção e Interpretação . Rio
de Janeiro: Imago. Dias, C. Amaral. 1991 [1970]
______ (Seminário realizado em Paris, 10
de julho de 1978, Transcrição de Francesca Bion, 1999, Tradução de Wellington
Dantas (SBPRJ), Abril de 2000.
______ (2004). Transformações: Do
aprendizado ao crescimento. 2ª. ed. Trad. S. C. Paulo. Rio de Janeiro: Imago.
(Trabalho original publicado em 1965. Título original: Transformations: change
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