Cada sujeito que tenha
vivido uma experiência em comum com outras pessoas deve guardar na memória
elementos dessa ocasião dos quais mais se identificou e isso deve se
diferenciar do que outra pessoa que vivera a mesma experiência possa ter
arquivado em suas lembranças. Uma pessoa relata um ocorrido de forma bem
diferente do que outra pessoa que esteve no mesmo local e momento do ocorrido.
Isso, pois a descrição do acontecido depende muito mais da interpretação
daquele que vive a experiência do que daquilo que realmente aconteceu.
A memória é falha por
selecionar elementos e nunca conseguir registrar o todo da experiência. Por
vezes deixando escapar partes cruciais para que pudesse ser possível se
perceber a situação de maneira razoavelmente autêntica. Mesmo que a situação
tenha sido registrada por aparelhos de alta tecnologia, que consigam grande
poder de apreensão e que apresentem grande potencial de definição, ainda assim,
inúmeros aspectos, se não, a maior parte deles, ficarão ausente do registro e
impossíveis de serem revelados.
“A fotografia da fonte da verdade talvez
seja muito boa, mas, da fonte após turvada pelo fotógrafo e sua máquina; mesmo
assim, continua o problema de interpretar a fotografia. A falsificação do
registro é maior, por emprestar verossimilhança ao já falsificado.”. (Bion,
1962).
Ainda que esse fato tenha sido relatado por uma grande quantidade de
pessoas, que concordem com a mesma versão, ainda assim temos inúmeros motivos
para acreditar que possa existir um pretexto que esteja guiando esse grupo para
uma falsa interpretação do que realmente ocorreu e que ainda assim a maior
parte dos aspectos legítimos do ocorrido estará ausente da conclusão. Além
disso, conforme o tempo passa o relato do que ocorreu pode sofrer modificações,
tanto por suscitar novas lembranças, quanto por estar suscetível ao
esquecimento de partes do ocorrido. Por conta disso, o registro de fatos
ocorridos é sempre duvidoso. No dito popular “quem conta um conto aumenta um
ponto” encontramos um representante dessa ordem de reflexões da qual proponho
aqui. O que tem de verdadeiramente real num fato relatado, ou mesmo registrado
é a questão de ordem.
O tema do registro dos
fatos ocorridos é um tema de grande importância para a prática clínica da
psicanálise. “O que aconteceu só se
mantém através da memória, e a memória é seletiva, traiçoeira em potencial, por
fundir-se ao conteúdo impensado da mente, invalidando assim sua fidedignidade
com a realidade dos fatos.”. (Martino, 2015).
Aquele que tenha feito
uma pequena pesquisa na obra de Wilfred Bion (1897 – 1979), deve ter percebido
a característica nociva da memória para o analista em seu trabalho na prática
clínica. Na procura pelo fato psíquico em questão no processo psicoterapêutico,
aquilo que já passou não deve ser mais objeto de atenção, se tornando então um
obstrutor da possibilidade da apreensão do fato presente. Assim como a
expectativa do que acontecerá no futuro se configura num elemento danoso para a
apreensão do fato presente. Bion propõe que quanto maior for a capacidade de
armazenamento de dados na memória, menos o psicoterapeuta será capaz de
perceber aquilo que se apresenta no tempo presente; justamente onde se
manifesta a realidade.
“Um analista cuja
mente for desse tipo é alguém incapaz de aprender, porque está satisfeito.”.
(Bion, 1970). Só pode aprender aquele que tem a consciência de sua ignorância e
aquilo que supostamente se imagina saber está armazenado na memória. “A tentativa de lembrar ou registrar destrói
a capacidade para a observação dos eventos psicanaliticamente significantes e a
interrompe.”. (Bion, 1970). Aquilo que foi registrado está distante do que
realmente aconteceu.
Guimarães Rosa (1938 - 1967) |
“Precisávamos
de imaginar, depressa, alguma outra estória, mais inventada, que íamos
falsamente contar, embaindo os demais no engano.”. (Rosa, em
Pirlimpsiquice, 1962). Ainda assim, esta expressão tem seu uso condenado por
muitos estudiosos, por ser considerada invenção brasileira e sem necessidade de
existir. Diferentemente, a palavra história é utilizada quando a intenção é se
referir sobre a ciência, como relato do registro factual com base em supostos acontecimentos reais.
Mas, se concordamos aqui, com a ideia de que todo registro do passado sempre guarda uma grande cota de contaminação da visão daquele que relata o ocorrido e ainda, que o relato do que ocorreu no passado sofre inúmeros reveses até que possa chegar numa conclusão, que de fato nunca será realmente conclusiva, então o termo mais inadequado não é "estória", mas justamente “história”. Já que o relato do passado só pode ser considerado uma aproximação do que realmente ocorreu e que a maior parte dos elementos que definiriam a fidedignidade do ocorrido fica encoberta pela limitada capacidade de registro. Então, o relato dos eventos factuais está sempre subordinado à interpretação daquele que registra e então tenta relatar.
BION, W.R.(1962). APRENDENDO COM A EXPERIÊNCIA. Rio
de Janeiro: Imago,1962.
________ (1970). ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO. Rio de
Janeiro, Imago, 2007.
MARTINO, Renato Dias. O LIVRO DO DESAPEGO - 1. ed.
-- São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2015.
ROSA. J. G. Pirlimpsiquice, in PRIMEIRAS ESTÓRIAS -
Texto integral, Editora Nova Fronteira, Rio de janeiro, 2005/1962.
Um comentário:
Belíssimo texto professor Renato , encaixou como uma luva, me fez muito sentido , grata por compartilhar conosco
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