terça-feira, 16 de janeiro de 2018

ESPERANÇA, FÉ E CIÊNCIA

Frente a tomada de consciência que nos coloca de acordo com a realidade, a esperança parece ser recurso fundamental. Uma vez que essa experiência inclui o reconhecimento da vulnerabilidade da vida frente ao mundo. Sendo assim, a esperança aparece como importante expediente para que não se caia no desespero. Cada experiência de consciência, que leve à quebra do narcisismo, no deslocamento da posição que se ocupava e se desfrutava de poder ou proteção, para outra disposição menos favorecida, obriga o sujeito a se apoiar em algo para que não desista definitivamente da caminhada.
Os golpes sofridos devem, entanto, contar com uma cota de esperança para que seja possível enfrentar a busca por novos modelos. Assim como em 1917, no texto UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE, onde Sigmund Freud (1856-1939) levantou grandes desilusões sofridas pela humanidade, ao longo da história, que configuram-se feridas narcísicas. Esses desapontamentos careceram de esperança para serem superados.
Por maior que seja a segurança trazida pela ciência, nos avanços da tecnologia, esta mesma tecnologia presta-se a revelar, através de seu aparato, a magnitude de nossa vulnerabilidade frente à natureza e ao mundo. Isso pode ser percebido de modo macro, na imensidão infinita do espaço, que guarda grande mistério, sendo de proporção inimaginável frente a minúscula dimensão do planeta terra.
Também revela-sena força dos mares e dos ventos, nos desastres naturais, dos quais a ciência não pode prever e menos ainda dar conta para prevenir grandes desastres. Acontece também na dimensão micro, como é o caso das doenças físicas das quais a medicina nada consegue fazer. Mesmo na fragilidade natural do corpo físico, que ocorre com o avanço da idade. São inúmeras as nuances do mundo material que revelam o quão vulnerável é o ser humano frente a natureza, requerendo uma boa cota de esperança para que possa haver manutenção do “continuar vivendo”.
No entanto, esta verdade não se revela tão somente na dimensão material. A mente guarda manifestações que se revelam de forma inesperada e foi justamente Freud quem nos alertou sobre a parte inconsciente do nosso psiquismo. A fragilidade do ser humano que se revela pela imprevisibilidade do próprio humano, que frequentemente comete atos violentos, como nos ataques terroristas, muitas vezes provocando mortes em massa. Ainda, em relação a si mesmo, nos ataques de autodestruição que muitas vezes o sujeito inflige a si próprio, num intuito de se auto punir, por supostamente carregar algum sentimento de remorso.  Frente ao reconhecimento desses fatos, só mesmo a esperança parece ser recurso para que não nos desesperemos com as possibilidades das mazelas.

Nesse contexto exposto aqui é difícil não reconhecer a esperança como elemento fundamental para propiciar um fluxo saudável da mente. A palavra esperança vem do verbo latino SPERARE, que diz respeito a aguardar, esperar. Uma experiência que demanda de grande tolerância, já que aquilo do que se tem esperança não está subordinado ao tempo desejado por aquele que espera. A partir da esperança o fato que se tem expectativa, ocorrerá independente de prazos pré-estipulados e ainda, não exatamente como se espera ocorrer.
A primeira experiência que o sujeito tem com a esperança parece acontecer muito cedo. O bebê, quando nasce traz uma expectativa de mãe, mesmo antes de ter o menor conhecimento sobre ela. “O bebê espera o seio antes de conhecê-lo e assim vive a primeira chance de desenvolver a esperança.” (Martino, 2015). A meu ver, isso é o protótipo do que irá se manifestar como esperança no adulto. Na medida em que essa expectativa é suprida de forma suficiente, abre-se a primeira possibilidade da configuração da esperança em tudo mais que a vida proporá. “A mãe apazígua a angústia do bebê trazendo a esperança de que ele sobreviva e essa é a questão imprescindível para que seja capaz de sonhar.”. (Martino, 2015).
Essa afirmação está apoiada no fato de que, na primeira infância acontecem os registros mais marcantes, que definirão a maior parte das características da personalidade.
Com isso revela-se o fato de que a possibilidade de se desenvolver a real capacidade de esperança deve acontecer, assim como ocorre entre mãe e bebê, através do estabelecimento de vínculos que possam fornecer confiança. Aprender a confiar gera a esperança e isso tem um pressuposto na capacidade de tolerar frustrações. Sem um vínculo saudável o que se forma é simplesmente ilusão, que muitas vezes pode ser confundida com esperança. Por mais que aquilo do que se tem esperança ainda não tenha se realizado, mesmo assim, deve encontrar-se na ordem do que é razoavelmente admissível. Nisso se difere da ilusão, que está distante do que é provável.
“A saber, a ilusão é talvez a pior forma de se esperar por algo, pois não conta com experiências saudáveis com a realidade nessa expectativa; sendo que a melhor maneira de se esperar por algo é pela esperança, naquilo que, apesar de estar fora do real, se encontra dentro do possível.”. (Martino, 2015).

A esperança depende da capacidade de tolerar frustrações e sincronicamente é geradora da expansão desta mesma capacidade, num processo de retroalimentação para a ampliação. O desenvolvimento da capacidade de esperança é fator fundamental no rebaixamento da ansiedade gerada pelo desejo. E se aqui apoiamos a hipótese de que o medo é filho do desejo, aquele que conserva esperança deve ser menos acometido por medos infundados. Assim como no fato passado existe uma diferenciação entre uma simples memória, que não passa de dados armazenados nos compartimentos mentais, de uma recordação que é uma lembrança rica de amor, também existe uma distinção sobre o fato futuro, entre as expectativas ilusórias, baseadas num desejo egoísta, da esperança que é o que permite a tolerância necessária para que a vida siga seu fluxo natural de expansão. A esperança do qual tratamos aqui não diz respeito a esperar algo especifico, como acontece na expectativa do desejo, mas sim, ser capaz de esperar que a vida siga seu andamento, antes de antecipar-se e intervir no desenvolvimento do tempo natural das coisas. Nisso a esperança passa a ser elemento fundamental da contemplação.
Um correlativo da esperança é a fé. Enquanto a esperança está pautada no tempo futuro, libertando da ânsia do desejo desmedido, a fé relaciona-se com o tempo presente e diz respeito à confiança na existência de algo que não pode ser confirmado pelo aparato sensorial. Esse termo vem do Latim FIDES e significa confiança, ou ainda crença. Não é possível saber sobre o tempo presente, o que é possível é apenas ter conhecimento parcial daquilo que já passou. No tempo presente só se pode “estar sendo” e nunca “saber sobre”. Por conta disso o ato de fé passa a ser fundamental para que não se evada tanto para o passado através das memórias sobre o que já passou, quanto para o futuro através do desejo do que será.A capacidade de fé ainda proporciona o reconhecimento de que as adversidades têm um propósito nobre na função de propiciar aprendizado.
O conceito de fé é quase sempre mal visto quando se trata da perspectiva científica. Um cientista, usualmente não se prende a essa ordem de estados da mente, pois segue os critérios do que é cientificamente comprovável,com rigor e objetividade. O cientista, habitualmente se apóia em condições onde predominem o racional, num saber acumulativo, relacionados à investigação metódica. Essa razão ainda deve estar no domínio decerta lógica da experimentação e averiguação, de outra maneira será enquadrada, não como informação científica, mas como conhecimento filosófico.
Arthur Schopenhauer (1788-1860) deixou um trabalho que foi publicado em 1860, somente após sua morte, onde descreve sua visão quanto a fé.
“A fé e o saber não se dão bem dentro da mesma cabeça: são como o lobo e o cordeiro dentro de uma jaula; e o saber é justamente o lobo, que ameaça devorar seu vizinho.O saber é feito de uma matéria mais dura do que a fé, de modo que, quando colidem,a última se quebra.” (Schopenhauer, em A ARTE DE INSULTAR, 1860).
Apesar da relação usual da ciência com a fé, Wilfed R. Bion (1897 — 1979), em sua obra ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO de 1970, introduz a fé como elemento fundamental na prática do analista. Para Bion enquanto memórias e desejos não são bem vindos na prática clínica, à fé de que existe uma realidade última é de fundamental importância para o psicanalista. A fé na verdade que se configura infinita, desprovida de forma e que, justamente por conta disso, não podendo ser alcançada pelo conhecimento, somente será alcançada pela fé. É possível saber sobre ela, mas não conhecê-la. Não pode ser reduzida a nada; não há qualquer conceito que possa defini-la relativamente, nenhuma categoria pode ser abrangente o suficiente para contê-la.
No entanto, Bion orienta que para que se possa atingir este estado de mente é necessário alguma renuncia por parte do analista. “O primeiro ponto é o analista impor a si mesmo uma disciplina positiva de evitar memória e desejo. Não quero dizer com isso que seja suficiente “esquecer”: é necessário um ato positivo de abstenção de memória e desejo.” (Bion, 1970). Isso corresponde a busca por certa purificação da percepção da realidade, que permite o desenvolvimento da capacidade de alcançar o não sensorial. A realidade última da qual Bion se refere é representada pelo símbolo “O” e é inerente aos objetos dos quais a consciência tem contato pelas funções mentais derivadas do sensório, mas que está para além dessa dimensão da percepção. Por conta disso,na relação com “O” requer-se fé para se alcançar.
A despeito da visão usual dos cientistas comuns o “ato de fé”, segundo Bion, “trata-se de uma afirmação científica, pois para mim “fé” é um estado de mente científico e deve ser reconhecido como tal.”. (Bion, 1970).
Entretanto, essa “fé” configura-se na ausência de restos de memória e desejo. Ainda assim, por mais que seja necessário estar desapegado do aparato sensorial, que por sua vez, está subordinado à memória e ao desejo, a memória e o desejo devem contribuído com elementos para a formulação do conhecimento sobre a realidade última, na transformação de “K” (knowledge = conhecimento) para “O” e de “O” para “K”.
O termo ciência tem origem no Latim SCIENTIA e quer dizer “conhecimento”, de SCIRE, “conhecer, saber”. Comumente, a pesquisa científica tem a conotação da busca pela verdade através do domínio da razão. No entanto, estando a realidade para além da racionalidade a ciência deve ir para além do paradigma da razão para que seja possível ingressar no acordo com a realidade. Para tanto, o ato de fé, no estado intuitivo gerado pela renuncia de memória e desejo é fundamental. Na dedicação em sua pesquisa, a realidade pode ser percebida e reconhecida. Sabemos que ela existe, mas não podemos conhece-la. A realidade não pode ser dividida, configura-se na totalidade. O método usado pela ciência no intuito de compreender seu objeto de estudo é o de análise e para isso deve dividir esse objeto, o desvinculando do todo. Assim, as partes tornam-se inteligíveis à ciência tradicional,do conhecimento humano.
“Para tanto, é necessário dividir o tempo num período estipulado, enquanto na verdade encontra-se na dimensão do eterno, assim como é preciso dividir o espaço, que na realidade configura-se na dimensão do infinito, para que seja possível a compreensão, já que o conhecimento não consegue abranger tais dimensões da realidade.”. (Martino, em Psicanálise do Acolhimento Vol. 1, 2017).
Penso ser importante salientar que, apesar de Bion diferenciar o “ato de fé”, atribuído a metodologia científica, do significado religioso, as formulações religiosas devem contribuir muito mais que as formulações das exatas, assim como coloca em sua obra Transformações. “Ainda assim, os enunciados religiosos mais atendem aos requisitos de transformações em O, que os da matemática.”. (Bion, 1965). Ora, se o cientista critica a fé como inadequada deve então excluir da ciência grande parte da vida e d reconhecimento da própria realidade. Não é incomum que tais cientistas critiquem a psicanálise por não ser ela um método científico. Mas com a ajuda de Bion, é possível observar que da mesma forma, um artista pode não reconhecer a psicanálise como arte e também o religioso reconhecê-la como não- religiosa. São questões inabaláveis, já que cada representante de sua classe pode reconhecer características que julgue invalidar, apesar de a psicanálise não ter o compromisso de ser nenhuma dessas coisas, deve então, nutrir-se de todas essas áreas do pensamento humano. O grande problema surge quando a aplicabilidade do método psicanalítico descaracteriza-se a ponto de “não ser psicanálise”.
Bem, a psicanálise necessita da ciência, precisa de uma determinação no tempo e no espaço. Toda infra-estrutura que fornece aparato material para o psicanalista é graças a ciência e a tecnologia. A possibilidade de comunicar as teorias psicanalíticas nas publicações é mérito da ciência. Mas, o fato de a psicanálise estar subordinada à realidade última, é o que traz o questionamento de não ser ela cientifica. “Isso não significa que o método psicanalítico não é científico, mas sim que o termo ‘ciência’, como tem sido comumente usado até agora para descrever uma atitude para com os objetos dos sentidos, não é adequado para representar uma abordagem daquelas realidades com as quais a “ciência psicanalítica” tem que lidar.”.  (Bion, 1970).
Na realidade, a ciência esbarra em inúmeras variáveis, que podem obstruir o reconhecimento da realidade. Existem conveniências para que a pesquisa da verdade seja obstruída. Fortunas de indústrias se sustentam por conta de ilusões que são alimentadas. A dificuldade na tolerância, é um grande motivos. A maior dificuldade no reconhecimento da realidade e a incapacidade em tolera-la. Se manter ignorante traz inúmeros benefícios. Um sujeito ignorante é, sem dúvidas, muito mais feliz. Assim com lê-se em Eclesiastes, 1-18: “Porque quanto maior era a minha sabedoria, maiores eram as minhas preocupações; aumentar os conhecimentos apenas traz consigo aumento de aflições.”.



Prof. Renato Dias Martino
Fone: 17-991910375
prof.renatodiasmartino@gmail.com
http://pensar-seasi-mesmo.blogspot.com.br/










Bíblia Sagrada. Editora. 1991.
Bion. W. R. ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO(1970). Imago, Rio de Janeiro, 1991.
_____ . As Transformações (1965). Imago, Rio de Janeiro, 1991.
FREUD, S. Uma dificuldade no caminho da psicanálise (1917). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de S. Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1995,Volume XVII.
MARTINO, Renato Dias. O LIVRO DO DESAPEGO - 1. ed. -- São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2015.
_______________ PSICANÁLISE DO ACOLHIMENTO VOL. 1, 1. ed. São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2017.

Schopenhauer, Arthur, 1788-1860. A ARTE DE INSULTAR / Arthur Schopenhauer: organização e ensaio de Franco Volpi. — São Paulo: Martins Fontes,.2003.— (Breves encontros). Título original: Die KunstzuBeleidigen. "Tradução: Eduardo Brandão (italiano) e Karina Jannini (alemão) Bibliografia. ISBN 85-336-1803-4. 1.





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