quarta-feira, 13 de março de 2019

PSICANÁLISE E AS FORMULAÇÕES RELIGIOSAS


Para aquele que faça uma breve pesquisa sobre a psicanálise, logo encontrará duras críticas de Sigmund Freud (1856 –1939) a respeito da religião. Freud atribuía á religião uma reedição das vivências infantis mal sucedidas. Ele apoiava que a origem da religião está no sentimento de desamparo da criança, que faria, a partir disso, gerar certa ilusão em massa. Em 1910, Freud publica uma obra sobre a vida de Leonardo da Vinci e nele propõe que a psicanálise tenha conseguido revelar a relação direta entre o complexo de Édipo e a crença em Deus. Freud apóia que a psicanálise “Fez ver que um Deus pessoal nada mais é, psicologicamente, do que uma exaltação do pai...” e continua afirmando que “diariamente podemos observar jovens que abandonam suas crenças religiosas logo que a autoridade paterna se desmorona.”. (Freud, 1910).

Além dessa ocasião, Freud teve várias iniciativas de criticar duramente a religião, como é o caso de sua obra O FUTURO DE UMA ILUSÃO de 1927, onde trata a religião como sendo uma grande quimera. Por alguma razão, Freud enviou um exemplar deste livro ao seu amigo Romain Rolland (1866 – 1944), que foi um novelista, biógrafo e músico francês. Freud respeitava muito Rolland, grande estudioso das formulações religiosas. Rolland concorda com a visão de Freud contida no texto quanto à religião, no entanto, também lamenta o fato de que seu amigo não tivesse sido capaz de contemplar adequadamente a verdadeira origem da religiosidade.
Para Rolland a religiosidade se fundamentaria num certo sentimento oceânico, configurada numa percepção de eternidade, onde as fronteiras são desfeitas. Freud escreve em seu MAL ESTAR NAS CIVILIZAÇÕES,de 1930, que não consegue perceber em si mesmo esse sentimento “oceânico”, mas admite que “Não é fácil lidar cientificamente com sentimentos”. (Freud, 1930). Freud tinha o olhar científico como principio de sua pesquisa. “A criação e desenvolvimento da psicanálise, naquela época, sofria com essa necessidade de atender a certos critérios científicos, caso contrário correria o risco de ser desacreditada.”. (Martino, 2018). No entanto, não é novidade o fato de que os critérios rígidos da ciência comum, muito pouco se aplicam ao que se pode chamar de ciência no âmbito psicanalítico. Já que o conceito de ciência, na esfera comum é bem aplicável tão somente aos objetos que são apreensíveis pelos órgãos dos sentidos, no âmbito material. Assim como nos orienta Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979), “... não é adequado para representar uma abordagem daquelas realidades com as quais a “ciência psicanalítica” tem que lidar.”.  (Bion, 1970).

Ora, se o próprio pai da psicanálise atribui à religiosidade uma forma de ilusão em grupo e a espiritualidade como sendo uma espécie de reprodução do passado não elaborado, qual seria a real possibilidade de diálogo entre os enunciados religiosos e as formulações psicanalíticas?
Bem, Freud tinha em sua historia de vida um fator que o faria sentir uma especial repulsa quanto à religiosidade. Freud sofrera conflitos quanto a sua posição religiosa da qual sentia como um rigoroso destino numa carga penosa. “O fato de ele ser judeu, e todo o ônus que carregaria vida a fora, por conta dessa condição.”. (Martino, 2015). O fato de Freud ser judeu, o coagiu a se mudar do lugar onde viveu a maior parte da vida. Idoso e sofrendo muito com um câncer de palato, fora perseguido pelas tropas alemãs na invasão da Áustria. Refugiou-se, então na Inglaterra, onde foi acolhido por Marie Bonaparte (1882 - 1962). “Em março de 1938, acontece a invasão da Áustria pelas tropas alemãs de Adolf Hitler (1889 - 1945). Freud era judeu e Hitler, tomado por sua intensa perseguição a esse povo, então, mandou queimar qualquer livro que possuísse a assinatura do pai da Psicanálise.”. (Martino, 2012). Ainda assim, em Londres, não conseguiu resistir por muito tempo, morrendo em 23 de setembro de 1939. Entre inúmeros outros fatores de ordem pessoal, que permearam sua vida, da infância até a morte, havia um grande receio de Freud que a igreja ameaçasse o desenvolvimento da psicanálise.
As ideias da sexualidade infantil e do complexo edípico chocavam a sociedade católica, muito intensa na Viena da época. De qualquer forma, motivos não faltariam a Freud para justificar sua aversão à religiosidade.
Então, estamos diante de um grande desafio. Conformar-se com uma proposta saturada sobre a realidade nunca foi um atributo da psicanálise. “A psicanálise consiste numa grande procura. A busca pela verdade sobre si mesmo. Uma verdade da qual nunca seremos possuidores, mas que tem o nobre propósito de nos guiar. Sendo assim a verdade é a orientação e não o objetivo.”. (Martino, em PSICANÁLISE DO ACOLHIMNETO Vol. 1, 2017). Dessa maneira, a pesquisa psicanalítica segue, mesmo depois de Freud buscando expandir para além do âmbito que tenha sido possível a ele explorar e no que se refere às formulações religiosas não parece ser diferente.
Mesmo sendo Freud avesso à essa ordem de formulações, pensadores posteriores ao pai da psicanálise trouxeram possibilidades de incluir a proposta religiosa como um rico instrumento de reflexão e expansão de pensamento no universo mental, que proporcionou à psicanálise grande expansão.
Um belo exemplo disso acontece em 1977, quando Françoise Dolto (1908-1988), importante médica e psicanalista francesa, publica A PSICANÁLISE DOS EVANGELHOS. Essa obra foi traduzida em nove línguas e trata de um ensaio que foi criticado tanto por boa parte dos cristãos e teólogos, quanto por inúmeros psicanalistas, criando grande polêmica na época, assim como ainda hoje. “Entretanto, ainda assim, a obra de Dolto revela-se uma bela e rara contribuição da capacidade de utilizar-se da psicanálise no âmbito do acolhimento e suas implicações para a ampliação da consciência.”. (Martino, 2015).
Mesmo antes de Dolto, Wilfred Bion já se utilizava das reflexões religiosas. Em sua obra TRANSFORMAÇÕES propõe que: “Ainda assim, os enunciados religiosos mais atendem aos requisitos de transformações em O, que os da matemática.” (Bion, 1965). Um reconhecimento enriquecedor nas articulações psicanalíticas, assim como acontece com inúmeras outras intuições bionianas. “Com essa colocação, Bion reconhece que, para falar sobre a dor da alma, nas angústias e ansiedades, a religião é mais adequada do que formatações racionais.”. (Martino, 2015).
Para Bion “O” é o símbolo utilizado para representar a realidade última, o elemento supremo da procura psicanalítica. Bion afirma que não é possível qualquer avanço na experiência psicanalítica sem que haja um reconhecimento da existência da realidade última, numa evolução para "estar-uno-a-ela". Bion ainda propõe que os místicos religiosos possivelmente foram os que conseguiram se aproximar mais de expressar a experiência da verdade absoluta. “Sua existência é igualmente fundamental para a ciência e para a religião. De modo inverso, a abordagem cientifica é tão necessária para a religião como o è para a ciência, e tão ineficaz quanto, até que ocorra uma transformação K > O"." (Bion, 1970). Sendo que “K” para Bion é o símbolo daquilo que pode ser conhecido, diferente de “O” que está na dimensão do incognoscível, no que só pode se “estar sendo”.
Quanto à inclusão das formulações religiosas,no que se refere à expansão do conhecimento, Bion toma como exemplo o físico Isaac Newton (1643 — 1727). Bion propõe que as preocupações de Newton quanto ao domínio místico religioso, que foram rejeitadas como sendo um absurdo, mereceriam ser consideradas a origem de onde suas formulações matemáticas partiram e evoluíram.

Bion se utiliza de grandes nomes do misticismo religioso como o faz em TRANSFORMAÇÕES de 1965, onde cita Juan de Yepes (1542 – 1591), pensador que recebeu o nome de São João da Cruz, em seu poema Noite Escura, para ilustrar seu conceito de "turbulência psicológica". Com esse termo Bion alude a um estado mental de grande aflição.
O frade dominicano Mestre Eckhart (1260 -1328) também é um nome muito cogitado por Bion. “Mestre Eckhart propõe o exercício na busca pelo desprendimento, que para esse pensador consiste no desapego sobre todas as coisas transitórias, num retorno em direção a uma realidade essencial.”. (Martino, 2015).  O grande problema é que propostas como as de Mestre Eckhart, assim como são às formulações religiosas necessitam de elevada capacidade de tolerância num desprendimento da materialidade das coisas. “Com o desprendimento, ele é capaz de amor, é humilde e misericordioso, à medida que o desprendimento implica essas virtudes como sua matriz e sua unidade.” (Eckhart, em SOBRE O DESPRENDIMENTO).
Um nível de desapego do qual nem todo psicanalista consegue atingir, mas que ainda assim, tal expansão deve trazer à prática da psicanálise, imensuráveis possibilidades de ampliação nas articulações. Se isso deve ser difícil a um psicanalista, que pelo menos à priori estaria num constante processo de elevação emocional, por conta de suas analises pessoais e seus atendimentos clínicos, mais ainda em um cientista que lida com experimentos que incluem muito pouco as relações afetivo-emocionais.
Para que seja possível desenvolver esse nível de desapego a tolerância à frustração é requisito fundamental, não só na pratica da psicanálise, mas também nas formulações teóricas. Isso deve encontrar uma bela ilustração na vida de Jesus Cristo, já que a base do cristianismo se encontra na disponibilidade à renúncia. Em Matheus 16 Jesus coloca como condição para segui-lo a renuncia de si mesmo e então a responsabilização de sua própria cruz. Uma metáfora de desapego às futilidades na realidade material, que trazem a ilusão de configurar o verdadeiro eu, mas que não passam de dissimulações do falso eu. “Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas aquele que tiver sacrificado a sua vida por minha causa, recobrá-la-á.”. (Matheus 16.25). Ora, o que mais pode ser a psicanálise que não seja um instrumento de se abrir mão daquilo que se gostaria que o mundo fosse, pra entrar em contato com aquilo que o mundo realmente é? 
Na religiosidade oriental temos muitas reflexões importantes para a expansão dessa ordem de experiências que muito contribuem para a psicanálise. Como é o caso do BHAGAVAD GITA, sublime Canção do Divino Mestre, fazendo parte das escrituras que compõem o MAHABHARATA, nos VEDAS, datado muitos anos antes de Cristo, é provavelmente o mais antigo texto na história da humanidade. “O BHAGAVAD GITA trata da necessidade fundamental do exercício no desapego, em busca da elevação na consciência.”. (Martino, 2015). Krsna, que se conforma na Suprema Personalidade de Deus na ocasião se coloca como cocheiro, orienta o guerreiro Arjuna quanto a insegurança, que “quem a tudo renuncia, jubiloso, alcança, já agora, a mais alta paz do espírito; mas quem espera vantagem das suas obras é escravizado por seus desejos”. Em SABEDORIA DO DESAPEGO, quinto capítulo do BHAGAVAD GITA, verso XII.
Porém, toda essa proposta pode sofrer um efeito inverso. Quando um sujeito tem a mente imatura, muito machucada, ou ainda, deveras adoecida, ele pode usar das formulações religiosas para se auto-acusar ou fazê-lo com o outro, por exemplo. Além disso, não pode ser coerente que tanto a proposta da psicanálise quanto a da religiosidade, na expansão da maturidade emocional e na organização mental, possa ser conseguida por imposição. “Qualquer que seja a tentativa de introdução da religiosidade que possa ser feita através de obrigação no cumprimento já se invalida em si mesma, logo de início. E ainda, algumas características como as de disputa, crítica ou julgamento são tão inadequadas quanto a imposição.”. (Martino, 2015). Isso não é diferente quanto a psicanálise! Imposição, coação e duras críticas, definitivamente não são elementos de psicanálise. Só fazem por gerar culpa numa “fiel ovelha”, que por ser passiva e, portanto, bem acomodada nessa confortável posição, nada realizará tanto em seu próprio desenvolvimento, quanto no âmbito da espiritualidade. Se assim for, o que pode provocar é tão somente empobrecimento da personalidade.
Torna-se importante nessa altura do ensaio esclarecimento sobre o termo religiosidade e ainda, sobre que experiência atribui-se aqui o nome de religião. “A autenticidade da religião se encontra não só no seu significado literal do termo, do latim religio, ‘reverência ou respeito pelo que é sagrado’, mas se estende para a origem do verbo religare, ‘atar novamente’, de re, novamente, mais ligare, unir, atar.”. (Martino, 2015). Numa proposta de reatar laços entre os seres humanos e o divino, a religião que propõe selecionar ou restringir está distante de cumprir o seu significado real.
Sendo que recusar, rejeitar, ou ainda menosprezar os que não se enquadrem nos dogmas defendidos pela suposta religião, anula seu próprio propósito. Portanto, a ideia da religião é a da integração do estar sendo dentro da rede universal de todos os seres. Essa rede não pode ser dividida por cor, crenças ou regras culturais, mas se entrelaçam numa incessante procura universal pela paz. A sociedade está doente quando se divide por tom de pele, nacionalidade, gênero, orientação sexual... 
A grande argumentação de Freud, assim como dos psicanalistas avessos à espiritualidade é que seria ela uma ameaça a pesquisa cientifica, no entanto, muito antes da estruturação da psicanálise, Francis Bacon (1561-1626), o fundador do método científico moderno afirma que "Um pouco de filosofia inclina a mente humana para o ateísmo, mas o aprofundamento na filosofia reaproxima a mente humana da religião”. (Bacon, 1605, em O PROGRESSO DO CONHECIMENTO). Quando Bion, em ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO propõe a renúncia de memória e desejo ele o faz buscando um exercício do que chamou de ato de fé.
“Receptividade adquirida por despojamento de memória e desejo (que é essencial para a operação de “atos de fé”) é essencial para que a psicanálise e outros procedimentos científicos operem.”. (Bion, 1970). Além disso, cada dia mais o desenvolvimento da ciência tem se expandido norteando-a na direção das formulações religiosas, tão rejeitadas até então, pela própria ciência. Isso vem ocorrendo, sobretudo na física quântica que teve seu início por volta de 1900, através dos trabalhos do físico alemão Max Karl Ernst Ludwig Planck (1858 — 1947), corroborado pelos posteriores estudos do físico dinamarquês Niels Henrick David Bohr (1885 — 1962), do alemão Werner Karl Heisenberg (1901 — 1976) e do austríaco Erwin Rudolf Josef Alexander Schrödinger (1887 — 1961), em meados de 1920. 
Todos os pensadores citados tinham grande respeito para com a espiritualidade, sendo que alguns deles conservavam profunda fé em Deus. Em uma palestra a respeito de religião e ciência, em 1947, Max Planck disse que desde sua infância cultiva fé firme e inabalável no Todo Poderoso e Todo Bondoso e afirmou que a confiança Nele auxilia nas provações mais difíceis. Plank ainda afirmou que a religião está junto da ciência natural no combate constante contra a descrença e o dogmatismo. O pai da física quântica ainda sustenta que “...a palavra de ordem nesta luta sempre foi e para todo sempre será: em direção a Deus!". Nessa mesma palestra Plank ainda propõe que a maior prova da concordância entre religião e ciência natural “... é o fato histórico de que justamente os maiores cientistas de todos os tempos, homens como Kepler, Newton, Leibniz, estavam imbuídos de profunda religiosidade." (Plank, 1950). Isso ainda que sob análise minuciosamente detalhada.
Heisenberg, que ganhou o Prêmio Nobel de Física de 1932, escreve em seu artigo CONHECIMENTO DA NATUREZA E VERDADE RELIGIOSA que: "Ainda que eu hoje esteja convencido da invulnerabilidade da verdade científica em seu campo, nunca me foi possível simplesmente rejeitar o conteúdo do pensamento religioso como parte de um nível superior da consciência da humanidade..." (Heisenberg, 1973). O austríaco Schrödinger era um grande admirador do pensamento de Athur Schopenhauer (1788 - 1860), que por sua vez fora grandemente influenciado pelo budismo e da tradição védica, na leitura dos VEDAS, e também dos místicos cristãos como Mestre Eckhart, assim como Bion o foi.
Schrödinger afirmava que o mundo observável é apenas aparência e isso equivale ao conceito védico de maya.

A essência da física quântica é a descoberta de que a matéria tem tanto a propriedade de partícula, enquanto elementos localizados, quanto de ondas, enquanto agitações variáveis que se difundem de forma progressiva. Isso se configura numa dualidade onda-partícula. Quando existe a tentativa de mensuração no nível quântico existe certa mudança, onde a matéria passando de onda de possibilidade para a forma de partícula real, no que em física quântica se denomina colapso da função de onda.
Com o avanço das pesquisas quânticas, que se ocupa de estudar as menores partículas mensuráveis, o paradigma “religião contra a ciência” tem se dissolvido, onde uma área do pensamento pouco a pouco, tem se aproximado da outra. Em sua obra DEUS NÃO ESTÁ MORTO: Evidências Científicas da Existência Divina, Amit Goswami físico quântico indiano contemporâneo, propõe que a compreensão adequada do evento “colapso da função de onda” traz a possibilidade de reviver a idéia de Deus na ciência.
A hipótese de Deus levantada por Amit Goswami não é a de um imperador todo poderoso que nos julgará após a morte, sentado num trono lá no céu, mas de uma consciência cósmica, presente tanto na esfera imanente do nível sensorial, quanto no transcendente das coisas não sensoriais. Deus é, então, a consciência não-local sustentado pela nova ciência. Para além do bem e do mal, num não dualismo, onde os contrários são complementares. A ciência quântica revelou que os corpos sutis e mesmo os corpos materiais configuram-se como possibilidades da consciência.
Com isso a ciência passa a explicar aquilo que as religiões têm tentado afirmar ha muito tempo. Sem ignorar toda a justificativa das atrocidades advindas das religiões, que inclusive Freud sofreu, aquele que é capaz de expandir sua mente ao ponto de perceber o enorme aprendizado contido nas religiões. “É muito provável que se possa conseguir muita paz de espírito no ambiente religioso, onde os conceitos, assim como a prática da compaixão, do amor e do perdão, podem ser trabalhados.”. (Martino, 2015). No entanto, é importante que o sujeito que se envolva com essa área de desenvolvimento tenha sua mente minimamente organizada. De outra forma, a busca pela religião pode se tornar uma perigosa experiência.
Goswami ainda aproxima o conceito de inconsciente de Freud do que chamou de Deus quântico. Amit Goswami propõe a ideia de que a hipótese de Deus, o agente da causação descendente, poderia auxiliar na tarefa de diferenciação entre os conteúdos inconsciente daquilo que está consciente.
 “E, apesar de Freud ter sido ateu, a psicologia que ele criou, a psicologia do inconsciente, hoje chamada psicologia profunda, nos oferece evidências incontrovertidas da causação descendente ou de seu agente, Deus. O poder
causal do id inconsciente origina-se do poder divino da causação descendente que preservamos, embora em sentido limitado, mesmo em nosso ego condicionado.” (Goswami, 2008).

As escolhas são feitas no inconsciente, não sendo possível conhecer esse processo. Freud mesmo nos alertou para o fato de que "o ego não é o senhor da sua própria casa”. (Freud, 1917). Sendo que a consciência cósmica, Deus, que se encontra no nível mais próximo de nossa própria natureza, ou seja, o id inconsciente, justamente o que escolhe por nós.  Portanto, quanto maior e mais harmonioso possa ser o intercâmbio entre o inconsciente e o "eu" consciente, tanto mais próximo estaremos da realidade ultima, por tanto de Deus. Isso, já que as escolhas serão manifestadas pelo pensamento e é só o ego que pode fazê-lo. Bion denominou barreira de contato, o limite entre interno e externo, inconsciente e consciente. A barreira de contato estabelece a cesura, numa espécie de contorno que separa e une ao mesmo tempo. “Esta, em processo contínuo de formação, indica contato e separação entre elementos conscientes e inconscientes e inicia a diferenciação entre ambos.”. (Bion, 1962). Isso fornece a sensação de integração com o todo e essa experiência só pode ocorrer no nível do “estar sendo” e nunca pelo “saber sobre”. Isso, pois, a realidade em sua plenitude não pode ser conhecida, assim como o próprio Bion escreve: “A convicção de se saber ou vir a saber a respeito da realidade é falaz por não ser ela algo de que se possa saber.” (Bion, 1965).

A realidade parece se configurar num todo, onde as partes separadas levam à grande possibilidade de visão turva, que conduz à ilusão. Para que seja possível analisar e saber sobre algo, é imperioso dividir o que se estuda o desvinculando do todo. Assim, quando estudamos uma era, é necessário racionar o tempo nesse período estipulado, enquanto a realidade configura-se na no eterno. Da mesma forma dividimos o espaço no perímetro estudado, que na realidade está na dimensão do infinito.

Ora, se Deus é real e está representado na realidade última, então a inteiração com a consciência cósmica só pode ocorrer quando “sendo em relação à ela”, e nunca o conhecendo-a. “Sendo assim, é preciso criar uma dinâmica entre essas duas dimensões, onde seja possível passar do ser (integração com o todo) para o saber (desintegração do todo) e do saber para o ser numa mudança de vértice adequada a cada fase da experiência de aprendizado.”. (Martino, 2017). Fica evidente que para que se possa atingir essa concepção de Deus é fundamental que se desenvolva a capacidade de ir para além do saber, passando para o vértice do estar sendo. Um exercício que demanda de tolerância à frustração no desapego do lugar comum da racionalidade.
Ainda que não estejamos aqui atribuindo à psicanálise o titulo de ciência no âmbito usual, pois inclui o pressuposto do inconsciente, que não está disponível aos órgãos dos sentidos, temos um equivalente na ciência quântica a proposta de Princípio da Incerteza, enunciado pelo físico Werner Heisenberg. O grande problema encontrado por Heisenberg que o fez determinar esse princípio é o fato de que para se saber a posição de uma partícula é preciso incidir sobre ele um raio de luz. No entanto, o choque do raio de luz é devastadoramente perturbador na tentativa de medição. Por isso, há uma incerteza inseparável de toda medição em escala microscópica e a incerteza passa a ser inseparável da natureza dos corpos quânticos. Além disso, tanto na proporção micro quanto na proporção macro a mensuração é sempre inacessível, a não ser dentro da limitada capacidade humana. Sendo assim, o princípio da incerteza dos físicos quânticos é análogo ao inconsciente. “Quando nos propomos a pensar o conceito de inconsciente isso é sempre representado como incerteza e dúvida.”. (Martino, 2015). Dentro da perspectiva religiosa a fé é a única maneira de se entrar em contato com o Divino. Se for possível ter certeza de algo, isso não carecerá de fé. Nem religião, nem ciência, e muito menos a psicanálise, podem trazer certezas. Na realidade, me parece que a única forma de se obter certezas é através das ilusões.
“Dentro desse vértice do pensamento é possível reunir a espiritualidade em seus mistérios da fé, o princípio da incerteza das ciências quânticas e a dúvida constituinte dos processos inconscientes pro¬posta pela psicanálise, nos exercícios de capacitação à tolerância às frustrações para o desapego proposto nesse trabalho.”. (Martino, 2015).
De qualquer forma, é necessária certa mudança de vértice para que a religiosidade possa fazer parte das áreas mais nobres do pensamento humano. Uma transformação onde o sujeito passa da posição de um crente que pede o tempo todo ao Senhor Deus, que deve então, atendê-lo em suas necessidades, para o lugar do devoto responsável por si mesmo, grato e pronto para ser um instrumento da paz de Deus. Na realidade, Deus já nos proporcionou tudo que é necessário para uma vida humilde e digna para aquele que é capaz de viver com o suficiente.  Sendo que quanto aos problemas criados pelos humanos em seu suposto livre-arbítrio, cabe aos humanos resolvê-los.

Bacon, Francis, 2006 (Trabalho original publicado em 1605), O progresso do conhecimento, Unesp, S.P.
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2 comentários:

Mara disse...

Fantástico professor.��������

Telma da Luz disse...

Sensacional. Brilhante artigo.