quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

MAS, E SOBRE O AMOR?

 


Arrisco-me, mais uma vez, nessa tarefa aventurosa de dissertar sobre o amor. Assim como amiúde, agora também correndo o risco das duras críticas dos catedráticos e doutores com suas gravatas apertadas e suas gavetas lotadas de diplomas. Mais uma vez aqui, exposto aos olhares reprovadores dos grandes estudiosos da psicanálise, que, com o acúmulo dos mais variados títulos, questionadores certamente estarão, sobre a validade, fidedignidade e até a utilidade desse texto, para a ciência ou mesmo para suas psicanálises. Muito provavelmente, indagarão sobre eu estar sendo pretensioso ou mesmo piegas com essa proposta de cogitação. São inúmeras as ameaças para aquele que se arrisca nessa direção do pensar.


De qualquer maneira ainda mantenho minha proposta. Se bem que o farei tendo como condição levar em conta o limite do que se pode saber sobre algo que está quase que em sua totalidade imerso no mundo desconhecido das emoções.

Os gregos sugerem alguns tipos de amor como Eros, o tipo de amor passional. Platão nos fornece um belo modelo no seu BANQUETE, por volta de 380 a.C., onde cogita sobre certa “genealogia do amor”. Philia é uma outra forma de amor, segundo os gregos, o amor virtuoso e fraternal. E também Ágape, o amor puro da alma. Como na Primeira Epístola aos Coríntios, onde fica evidente a importância de certo amor genuíno. No capítulo 13, pelas palavras do Apóstolo dos Gentios, Paulo de Tarso, encontra-se em forma de poesia uma definição belíssima do amor.


Sigmund Freud (1856 – 1939), numa a Carl Gustav Jung (1875 – 1961), chega a propor o fator capital na evolução pela psicanálise: “Poder-se-ia dizer que a cura é essencialmente efetuada pelo amor.” (Freud, 1906). Freud tem uma coleção de ensaios que abordam a questão do amor, onde surgem reflexões geniais das vicissitudes dos elementos brutos contidos na mente, no caminho rumo à expansão. Como numa escala evolutiva, a psicanálise parte das paixões desenfreadas como protótipo daquilo que pode ou não se transformar em modelos mais nobres do que poderia ser amor.


Dentro do modelo clássico da sua Teoria das Pulsões, Freud dedicadamente nos ensinou usando do mito de Eros (pulsão de vida), sobre a projeção da pulsão do interior para aquilo que está para além do eu, configurando-se na libido objetal. Por outro lado, usa do mito de Tânatos (pulsão de morte), que é o caminho inverso na direção dessa pulsão, na libido do ego. A mistura dessas duas tendências, que segundo a psicanálise nunca anulam uma à outra, é que define a qualidade dos vínculos, e definiria então a qualidade disso que tentamos chamar de amor. Enquanto o primeiro propõe desligar-se de si para ligar-se ao outro, o segundo propõe desligar-se do outro e retroceder em direção a si mesmo, num movimento narcisista.


No entanto, não é necessária qualquer formação ou graduação que possa trazer o título de sociólogo, psicólogo ou psicanalista, para que o sujeito possa perceber que interesses narcisistas estão, de uma forma geral, em primeiro plano na configuração de como o humano atual vem se relacionando entre si e com os outros - se é que um dia isso foi diferente. Isso é um sinal claro da limitada capacidade desse humano em articular sobre o amor. O ser humano está sempre se defendendo dessa ordem de experiências, a não ser que se encontre extremamente carente e se veja desprotegido o bastante para arriscar-se na abertura afetiva.


O materialismo e o interesse em “ter” sem dúvida vêm sobrepondo as tentativas na capacitação para o “estar sendo”. No entanto, não existe dúvida de que aquilo que qualifica o sujeito para amar está no “estar sendo”. Aquele que está sendo pode amar, enquanto aquele que apenas possui (ter) não guarda essa capacidade. Lembro-me de um amigo me presenteando com um ditado popular de sua terra, diz: “o sujeito era tão pobre que só tinha dinheiro”.


Mesmo tendo em mãos um grande cabedal de conceitos teóricos, mesmo com toda colaboração literária de alto valor e da mais refinada origem, ainda assim somos extremamente desqualificados para falar sobre o amor. Pois aí repousa o conceito que só nos interessa mediante a certa experiência boa o suficiente para preencher o vazio da palavra, que por si só não tem conteúdo. Não sabemos o que é o amor, entretanto necessitamos do exercício do amar para nutrirmos nossa alma. Realmente questiono se é possível saber o que é o amor, mas por outro lado, acredito ser perfeitamente possível saber com clareza o que não é amor.


Pois bem, isso que chamamos de amor pode partir de certa forma rudimentar de relação emocional, em sua forma mais simples, de ligação intensa e momentânea que expira assim que se alcançou esse objetivo. Se assim for, certamente está na ordem da satisfação sexual. No entanto, pode também se estender, de maneira durável, muito provavelmente por ser possível prever o retorno da necessidade que acabara de cessar através da satisfação. Não parece absurdo afirmarmos que é esse o primeiro motivo para criar-se uma forma duradoura de relação com o objeto sexual.

Sem dúvida é esse o primeiro e maior motivo para que seja possível continuar ligado a ele, enquanto não se encontra apaixonado.

Esse vértice de pensamento tem início nas obras de Sigmund Freud, que publicou vários ensaios tratando das cogitações sobre o amor e em PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EGO, que traz uma importante dissertação sobre o estudo do amor. No capítulo VIII, Freud descreve de maneira muito clara certa etapa do desenvolvimento afetivo da criança, quando ela se liga afetivamente pela primeira vez em um ou outro dos pais, direcionando ali todos seus instintos sexuais. Logo ocorre certa repressão e a obriga a renunciar à maior parte desses objetivos sexuais infantis. Essa experiência gera densa alteração no vínculo com os pais. “A criança ainda permanece ligada a eles, mas por instintos que devem ser descritos como ‘inibidos em seu objetivo’.” (Freud, 1921).


Sendo assim, é possível dizer que a saúde dos vínculos depende, então, da capacidade de efetuar certo grau de síntese entre o amor não sensual e afetuoso e o amor sexual que parte do instinto. E esse modelo primário de experiência de vínculo servirá ao sujeito como molde para as relações futuras em sua vida amorosa. Fica claro que a capacitação adquirida das experiências vividas nas primeiras relações servirá de base para que o sujeito se sinta seguro o bastante para enfrentar a dura tarefa de vinculação fora do âmbito da família original.

Dentro dessa perspectiva, passamos tratar o amor como certa ordem de capacidades, e, como toda capacidade, também o amor depende do exercício de falhas e êxitos para que possa se desenvolver. Sendo que, não se aprende no êxito, mas sim das falhas. Assim, é possível afirmar que se aprende a amar, amando.


Essa capacidade é permeada pela experiência da perda, como não poderia ser diferente, já que a origem da palavra vem do latim capacitas, referente à largura, amplidão, ou ainda de capax, que diz respeito a aquilo que pode abranger muito, um exercício que conta com a presença do vazio. Só pode desfrutar da amplidão aquele que abrange o vazio, o que nos remete diretamente à ideia do psicanalista indiano naturalizado inglês Wilfred R. Bion (1897 – 1979), em sua obra publicada em 1970, ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO, quando nos propõe a inteiração entre continente e contido. Nesse modelo Bion descreve um continente que se dispõe vazio, podendo receber com acolhida certo conteúdo. Não precisaremos ir muito além desse ponto de vista para percebermos que aquele que é capaz de conter-se a si mesmo é mais capacitado para amar (acolher) o outro.

Não obstante, aquilo que não pode estar “dentro” (contido) não poderá ser amado. Permanece tão somente no mundo externo, material e dependente dos órgãos dos sentidos, dessa maneira deve receber o valor que compete a essa dimensão. Isso coincide com a ideia do princípio do vazio, sobre a qual os mestres orientais já cogitavam. O vazio é um dos conceitos fundamentais do pensamento oriental, no qual Bion muito provavelmente tenha se inspirado para o desenvolvimento de seus estudos. A importância do conceito fica evidente se percebermos que aquilo que está lotado não pode receber nada. Se estivermos tratando da dimensão emocional, enquanto a mente estiver entulhada de preocupações, estaremos obstruídos de nos ocuparmos para pensar (amar).


Isso nos leva a propor que aprendemos a amar justamente na falta do objeto amado. A cada experiência de perda, por mais dolorida que possa ser essa ordem de experiências, é justamente através dela que teremos a chance de nos amadurecer afetivamente e nos tornarmos mais capazes de amar. Além disso, é justamente na perda que temos a chance de reconhecer nossos próprios limites, o que será muito útil e nos qualificará para arriscarmos nas próximas ligações afetivas.

Uma ocorrência de grande importância nessa proposta de pensamento é o fato de que a condição fundamental para lidar melhor com a perda está justamente na qualidade do vínculo que pôde se estabelecer com aquele que se foi. Quando o modelo de ligação afetiva esteve na ordem de certa extrema dependência, ou seja, na situação do outro encontrar-se demasiadamente apossado do amor do eu, quando ele se afasta, o eu sente-se impossibilitado de amar-se a si próprio. O sujeito passa então a se culpar pela solidão sem aquele que tanto (o) amava. Condena-se por não ter sido bom o bastante ou por outra justificativa dessa mesma ordem. Freud chamou este estado de funcionamento da mente de melancolia (Freud, 1917).

Para que a perda do outro não seja desastrosa o sujeito deve impreterivelmente ser capaz de amar-se a si mesmo, isso garantirá uma forma menos drástica dessa experiência. Contudo, quando não se é capaz de reconhecer-se a si mesmo, e assim ser capaz de amar-se a si próprio, ficamos à mercê do amor do outro. Muitas vezes levando o sujeito a se manter em relacionamentos falidos, por medo das consequências da solidão. Impossibilitados no amor do si mesmo fica propensos a sofrer de forma arrebatadora na situação da perda do outro.

 Ora, essa é a base da experiência do desapego, como sendo a capacidade de tolerar a frustração implicada em não ter a confirmação da posse de algo, e que essa confirmação estaria sobretudo dependente dos órgãos dos sentidos, falamos então da capacidade emocional. A mente funciona em certo nível onde os órgãos dos sentidos não têm acesso, e sendo assim o apego não pode ter confirmação nessa ordem de experiências.

A psicanálise nos ensinou, e o fez com muita propriedade, que o bebê começa a aprender a pensar justamente na ocasião da ausência da mãe. É quando sente a falta dela que começa a imaginar o que está faltando, e percebe-se assim sendo outro, além dela. Esse é o princípio do processo do pensar, que gradualmente deve se desenvolve no bebê. Mas só se pensa em algo sendo capaz de tolerar a falta que esse algo possa fazer. Portanto, só pode aprender a pensar na ausência daquela mãe, na qual pôde se confirmar como sendo real. Ou seja, o bebê que se apegou à mãe agora aprende a desapegar-se através da mãe simbolizada, numa recordação afetiva. É como se o bebê dissesse: A mamãe continua existindo quando não a vejo, mas agora como símbolo dentro de mim.

Bem, se estivermos de acordo até esse ponto, então temos argumentos o bastante para afirmar que a capacidade de desapego deve representar sinal do contato mais próximo da realidade simbólica. Nascemos num mundo material onde a dependência orgânica (material) do outro (mãe) era inevitável, já que um bebê não pode viver sem sua mãe (ou alguém que se disponha a essa função), e aos poucos temos o desafio de nos desapegar dessa dimensão de experiências, para nos envolvermos com um mundo simbólico, onde na saúde mental, a necessidade de verificação pelos órgãos dos sentidos não deve ter tanta urgência. Isso deve definir o grau da maturidade emocional.

Se o intuito aqui for o de pesquisarmos sobre a realidade mental, logo perceberemos que o apego às materialidades da vida não passa de uma grande ilusão inerente ao desenvolvimento emocional, e é própria da imaturidade mental. Essa ilusão serve como defesa das partes primitivas da mente e é mantida pela incapacidade de reconhecer o fato de que aquilo se se pode obter não garantirá aquilo que se está sendo. Sabemos bem que aquele que pode desfrutar do reconhecimento do verdadeiro eu, passa a ser capaz de amar e certamente conseguirá obter aquilo que é necessário e o suficiente para viver e expandir-se cada vez mais em sua própria capacidade. Por outro lado, aquele que simplesmente obtém coisas, não conseguirá através de suas posses o mesmo resultado, pois sempre estará desconfiado se o outro está sendo alguém verdadeiro para ele, ou se o outro também foi adquirido, como tudo que conseguiu.

Fica claro então que aquele que desenvolveu a capacidade de amar abre mão da ilusão do “ter o outro” em nome da realidade do “ser para o outro”. Além disso, aquele que é demasiadamente apegado às coisas teme perder o que tem, enquanto aquele que ama terá para sempre, dentro do coração (simbolizado). Isso, tendo aqui certa concepção de que o verdadeiro amor liberta (simboliza).

Essa cogitação acaba se confirmando quando levamos em conta que só desejamos aquilo que ainda não obtivemos, depois que conseguimos ter já não desejamos mais. Assim, o desapego é fundamental para uma vida dinâmica de realizações e cada vez menos fundadas na mediocridade do objetivo de posse de pessoas e coisas. Nada mais empobrecedor do que a dedicação desmedida ao acúmulo de bens. Enquanto muito apegados às materialidades, somos impedidos da simbolização e passamos, assim, a ser dependentes de uma realidade que, por um lado, nos cobra constantemente e, por outro, nos empobrece de nós mesmos.

 BION, W.R. (1970) ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO. Rio de Janeiro, Imago, 2007.

FREUD, Sigmund. EDIÇÃO BRASILEIRA DAS OBRAS PSICOLÓGICAS COMPLETAS – Edição Standard Brasileira, Imago (1969-80)

FREUD, Sigmund; JUNG, Carl G. A CORRESPONDÊNCIA COMPLETA DE SIGMUND FREUD E CARL G. JUNG. 2ª ed. Revisada org. William McGuire; trads. Leonardo Froes, Eudoro Augusto Macieira de Souza. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

MARTINO, Renato Dias, O AMOR E A EXPANSÃO DO PENSAR: das perspectivas dos vínculos no desenvolvimento da capacidade reflexiva / Renato 

Um comentário:

Victor P. Faria disse...

Texto simplesmente fantástico!